A necessária Auditoria Cidadã da Dívida: um debate com os críticos

As propostas do movimento são claras: investigar os contratos de dívida, historicamente assumidos pelo Estado brasileiro, averiguar sua legalidade (ou não) e identificar a quem estamos pagando tantos juros

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A necessária Auditoria Cidadã da Dívida: um debate com os críticos

Auditoria Cidadã da Dívida – Núcleo Campinas (SP)

O recente veto da presidenta Dilma Rousseff à proposta do PSOL de auditoria cidadã da dívida pública brasileira foi apoiado por alguns economistas a partir de justificativas que guardam pouco ou nenhum respaldo com aquilo que o movimento da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) se propõe.

Parte dessas críticas afirma de maneira completamente equivocada que as propostas da ACD estão permeadas pelo discurso da demonização da dívida pública. Essa posição mostra uma falta de conhecimento acerca dos reais objetivos do movimento, a saber, a investigação de contratos de dívida assumidos pelo Estado brasileiro nas últimas décadas e as funções que esse financiamento público deve ter na sociedade.

José Luís Fevereiro, economista e dirigente nacional do PSOL, apesar da posição de seu partido em defesa da referida auditoria, em recente artigo publicado, compartilha alguns dos argumentos mal imputados à ACD e que tentaremos a seguir esclarecer.

Sobre a auditoria cidadã da dívida

O endividamento público de forma alguma é um problema, visto que para realizar investimentos em áreas como infraestrutura, transportes, saúde e educação, o Estado tem de buscar fontes de financiamento (inclusive por meio da emissão de títulos da dívida pública) como forma de assegurar que recursos sejam destinados a áreas estratégicas e de desenvolvimento do país.

Nesse sentido, assumir a defesa de que o Estado erradique sua dívida pública parece ingênuo e faz coro ao discurso neoliberal de que Estado eficiente é sinônimo de Estado poupador (aquele que deve gastar menos do que ganha).

Traduzindo para linguagem estilizada dos mercados: Estado que faz superávit primário – e que é capaz, portanto, de gerar saldo para pagar juros da dívida.

Aliás, curiosamente esse é o discurso posto em prática pelo atual Governo e que foi pouco debatido nas críticas feitas à ACD. Introduzido no Governo FHC, sob recomendação do FMI, o tripé macroeconômico é o verdadeiro responsável por criar a camisa de força dos gastos econômicos e sociais do Estado brasileiro.

Quem acompanha as publicações da ACD sabe que a crítica do movimento ao atual esquema da dívida pública questiona também a manutenção do tripé que impõe à política macroeconômica brasileira metas de inflação (que privilegiam a elevada taxa da Selic e que assim faz ampliar crescentemente a dívida pública), o regime de câmbio flutuante e a necessidade de fazer crescentemente superávit primário.

Sendo assim, atribuir ao movimento da ACD um caráter neoliberal, que rechaça o endividamento do Estado, mostra-se completamente equivocado.

As propostas do movimento são claras: investigar os contratos de dívida, historicamente assumidos pelo Estado brasileiro, averiguar sua legalidade (ou não) e identificar a quem estamos pagando tantos juros.

Aliás, a identificação dos credores da dívida pública é uma das reivindicações mais importantes do movimento, dado que não são divulgadas as instituições credoras da dívida pública, muito embora se acredite que seus maiores representantes sejam os grandes bancos (nacionais e internacionais) e outros grupos financeiros.

Assim, a ACD não propõe nenhuma solução mitológica do tipo “suspenda-se o pagamento da dívida e a profecia Bíblica de que o mel jorrará para todos se cumprirá”, conforme palavras de Fevereiro. Poderíamos dizer que a proposta da ACD é, precisamente, “retomar o controle público sobre a dívida, transformando-a em fator de financiamento do desenvolvimento econômico e social do Brasil”, novamente, conforme palavras de Fevereiro. E o primeiro passo, em um país dependente e elitista, é verificar a legalidade e legitimidade dos contratos e da legislação associados ao sistema da dívida.

A experiência do Equador

A experiência da auditoria da dívida equatoriana evidencia a importância de se combater essa forma de endividamento público que aleija a economia nacional. Diante do comprometimento crescente do orçamento estatal, o presidente Rafael Correa criou em 2006 a Comissão Especial de Investigação da Dívida Externa.

Dentre as responsabilidades da comissão, estavam: verificar a legitimidade da dívida pública externa; analisar os efeitos e impacto socioeconômicos das renegociações; e, recomendar medidas e diretrizes a serem adotadas para o endividamento público e pagamento da dívida externa.

A comissão especial analisou a evolução e os contratos da dívida externa pública e privada no período 1976-2006. Segundo o relatório final, nesse período, a dívida externa contratada pelo país foi de quase US$ 30 bilhões, distribuídos em 672 contratos de crédito junto a organismos multilaterais (BID, BRID, FMI) e a governos, bancos e credores de títulos públicos.

Nas centenas de contratos auditados e durante diversas conjunturas políticas e econômicas, foram observadas uma série de irregularidades e ilegalidades, entre as quais: endividamento em moeda estrangeira com a taxa de câmbio do dia da liquidação; excessiva e imprecisa legislação sobre o tratamento da dívida pública; submissão aos organismos multilaterais quanto às condições de renegociação da dívida e do serviço da dívida; incompatibilidade de informações entre as estruturas do governo sobre o valor da dívida e seu pagamento; manipulação de dados e registros por parte de instituições que administram a dívida pública.

Diante de todas as evidências, a comissão concluiu que as cifras da dívida pública continham um alto grau de incerteza e orientou o governo equatoriano a formar uma comissão especial para investigar todos os contratos e empréstimos tomados pelo Estado.

Assim, em 2007, é criada a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (CAIC). Formada por 16 membros nacionais e internacionais (entre estes, Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da ACD), a CAIC auditou tanto a dívida pública externa, quanto a interna.

Durante as suas atividades, ficaram novamente comprovadas as inúmeras ilegalidades e irregularidades no processo de endividamento público em benefício das elites financeiras. Face a essa situação, o presidente Rafael Correa suspendeu o pagamento aos detentores dos títulos da dívida externa e submeteu o relatório do CAIC às instâncias jurídicas nacionais e internacionais.

Findo esse processo e com apoio dessas instâncias, o presidente anunciou que somente reconheceria 25% a 30% do valor dos títulos da dívida externa comercial. Evidentemente, aqueles detentores dos títulos que discordaram dos termos puderam recorrer judicialmente. Mas, diante dos indícios de irregularidades e ilegalidades, não é de se estranhar que 95% dos detentores dos títulos aceitaram a proposta.

E quais foram os resultados dessa mostra de soberania nacional e popular do governo do Equador? Em primeiro lugar, ao questionar o sistema de endividamento que comprometia crescentemente o orçamento público, a estrutura financeira e fiscal, foi possível aumentar tanto os gastos em saúde e educação, como o investimento em infraestrutura.

Em segundo lugar, a auditoria da dívida no Equador deu base para a aprovação de uma nova institucionalidade tributária e financeira que estabeleceu regras mais claras para a política de endividamento. Assim, a partir de 2007 houve diminuição do risco-país, ao mesmo tempo que o custo da tomada de crédito foi reduzido.

Por fim, a audaciosa e necessária experiência equatoriana revela que a auditoria da dívida foi o primeiro passo para tornar “a dívida uma aliada do desenvolvimento”, como defende Fevereiro. Contudo, ao contrário do que ele preconiza, a auditoria não significou uma suspensão/moratória e ela decididamente não promoveu arrocho do orçamento que comprometesse os gastos sociais.

Sim, uma pizza!

Fevereiro, ao criticar o gráfico em forma de pizza divulgado pela ACD (1), afirma que tal gráfico “confunde mais do que explica”. O autor prossegue afirmando que “se tivesse, junto à mesma ‘pizza’, algo que mostrasse a origem dos recursos do Orçamento Geral da União, veríamos que de 2003 a 2013 a maior parte dos recursos pagos na rubrica da dívida teriam vindo de captações de novos empréstimos com lançamento de novos títulos da dívida, restando uma parte menor paga com os superávits primários”.

Devemos, primeiramente, lembrar que o governo federal não desvincula seu orçamento tributário do orçamento financeiro para efetuar a rolagem da dívida (a Desvinculação das Receitas da União – DRU – é um exemplo disso) e que há a prática ilícita de emissão de novos títulos para pagamento de juros.

Por isso, o uso da dívida em sua forma bruta é feito pela ACD para mostrar, inclusive, a fraude de chamar juros nominais pagos pela União sobre a rubrica de amortizações. Ou seja, essas “amortizações” são pagas por meio da venda de novos títulos da dívida pública a taxa de juros atuais.

No ano passado, houve um salto considerável do montante da dívida bruta da União em relação ao PIB (cresceu R$ 600 bilhões em 9 meses) num momento de cortes orçamentários. Nós, como Fevereiro, questionamos exatamente essa contradição: como pode ter aumentado a dívida pública da União sem uma contrapartida de gastos sociais e investimentos?

Fica, portanto, evidente, que mesmo neste período em que o país incorreu em déficit primário houve um aumento do pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Também fica evidente o erro de utilizar somente a dívida líquida como recurso de análise do endividamento da União.

A ACD não defende o fim da dívida pública ou a geração de superávits para pagá-la. Pelo contrário, a ACD entende essa pauta como formas consolidadas dos organismos neoliberais e de rentistas beneficiados em manter o domínio sobre economias como a nossa.

Nesse sentido, o autor está em consonância com a própria ACD, ao afirmar que “o problema, portanto, da dívida brasileira não é o seu tamanho nem a sua existência. É a quem ela serve”.

Em tempos de crise, o “terrorismo” do capital financeiro que tem pressionado o Governo a realizar corte de custos em áreas sociais que ameaçam os direitos constitucionais, frente às “dificuldades orçamentárias” – resultantes não só do baixo nível de dinamismo econômico, mas também da opção por um modelo que preconiza uma aliança com o capital financeiro que é materializada pela política de superávit primário e pelo o pagamento de juros de contratos dos quais pouco se conhece – não parece minimamente razoável uma auditoria que busque dar maior transparência à dívida pública brasileira?

Não parece razoável entender por que destinamos mais de 45% do orçamento da União ao serviço da dívida, incluindo o pagamento dos juros e sua rolagem? Dessa forma, o gráfico de pizza não confunde, pelo contrário, é a síntese da forma atual de rolagem da dívida da União, que compromete elevado montante de recursos do Estado por meio de movimentações financeiras escusas e também por meio de desvios de recursos tributários para seu pagamento.

Os tempos são de crise, mas que permitem, paradoxalmente, que o grande capital financeiro, representado, sobretudo, pelos grandes bancos, continue a ampliar anualmente seus lucros. Frente às crescentes contradições sociais que se apresentam, questionar o caráter rentista da dívida pública brasileira torna-se tarefa urgente quando se propõe buscar soluções que viabilizem o desenvolvimento do país.

***

Tentamos nesse breve texto mostrar quais são os objetivos do movimento pela auditoria cidadã da dívida, como a auditoria da dívida é um instrumento importante na luta por um desenvolvimento nacional e popular e como que o atual sistema de endividamento compromete tanto o orçamento tributário quanto o financeiro.

Longe de querer esgotar o assunto, esperamos que as explicações possibilitem aprofundar esse importante debate, principalmente entre as forças progressistas. Acreditamos que o movimento pela auditoria pode se constituir numa questão estratégica para todas as organizações que combatem o caráter elitista e rentista da economia nacional.

Nota

(1)Esse gráfico mostra a participação da dívida pública no Orçamento Geral da União que, em 2014, chegou a 45,11%.

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