Ocupação São João: “O que vivemos lá dentro não foi guerra. Foi amor”

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Ocupação Líbero Badaró | Foto: Rodrigo Zaim/R.U.A Fotocoletivo

De /Ponte

 

“O que vivemos lá dentro não foi guerra. Foi amor.”

 

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Moradores da ocupação São João não esquecem as horas de pânico vividas na reintegração de posse e afirmam que é a compaixão entre eles que os mantém vivos

Fotos: Rodrigo Zaim/R.U.A Fotocoletivo
Edição de vídeo: Rafael Bonifácio

https://www.youtube.com/watch?v=yo8IjicL0hg width:700 height:394

Na entrada da ocupação de um prédio da Cruz Vermelha na rua Líbero Badaró, número 595, no centro de São Paulo, famílias se acumulam em um corredor estreito. São crianças, jovens, mulheres, grávidas, homens e idosos; brasileiros, peruanos, bolivianos e africanos. Esperam a chegada e a distribuição de doações. Faz frio. Não há cobertores suficientes. Alguns perderam tudo na mudança da ocupação São João, localizada quase na esquina da Avenida Ipiranga, a cerca de 700 metros do novo prédio. Entre os antigos e os novos moradores, aparece o rapper Emicida, que acompanha de perto o movimento por moradia. Um dos residentes prepara as refeições do primeiro dia, compradas com o recurso doado pela ONG “Apoio”. Outros se dividem em escala para cuidar da portaria e todos os homens se reúnem em mutirão para subir os eletrodomésticos dos novos residentes.

A ocupação da Líbero Badaró recebeu cerca de 180 pessoas expulsas da ocupação São João. O espaço, onde antes viviam 35 famílias, ganhou paredes de lençóis para acomodar os novos residentes. Foram recebidos com a mesma camaradagem e apoio demonstrados durante a reintegração de posse, que aconteceu nesta terça-feira, 16 de setembro.

A remoção dos pertences das famílias que viviam na São João só terminou na madrugada de quarta-feira, 17 de setembro. Com número insuficiente de caminhões e de carregadores, a empresa responsável pela mudança levou quase 12 horas para tirar toda a mobília das 200 famílias que viviam no hotel Aquarius, desocupado havia 10 anos. “Era para demorar até mais. Mas como não havia famílias acompanhando a mudança, desceram tudo de qualquer jeito”, afirma Ivaneti Araújo, uma das coordenadoras do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro). Moradores denunciam que os móveis levados para o depósito contratado estão quebrados. Foram necessárias 213 viagens (cada viagem corresponde a 1 caminhão cheio) para dar conta de transportar todos os pertences.

As cenas violentas da invasão da polícia na manhã de terça, 16/09, estão gravadas na memória dos sem-teto que resistiram a entregar o espaço em que viviam. Alguns levaram anos para conseguir comprar um fogão, perdido durante a mudança bruta. Basta começar uma conversa qualquer para a garganta apertar e os olhos marejarem.

O simples fato de terem saído com relativa saúde leva Orleane a uma comemoração inesperada: “Somos vitoriosos”.

“Foi um desespero total. Eu pensei em me jogar da janela”, conta a auxiliar de despesas Shirley Santana, de 35 anos. “Eu não conseguia respirar e aquela coisa queimando no rosto. Me perdi na fumaça e fiquei sozinha. Um morador voltou para me buscar. Se não fosse ele, acho que eu estaria morta uma hora dessas”, lembra, com o queixo e as mãos trêmulas. “Quando eu consegui sair do portão para fora, desmaiei no meio da rua. É a última coisa que eu lembro. Acordei no hospital.”

Shirley dividia um quarto na ocupação São João com a companheira, Orleane Matias Freitas, 33 anos, que cuida de crianças da ocupação. As duas tinham paredes e banheiro no cômodo de 15 metros quadrados dos quartos do antigo hotel. “Isso tudo foi muito humilhante”, relata Orleane enquanto a menina Raíssa, de 3 anos, beija seu rosto para cessar o choro. Mas o simples fato de terem saído com relativa saúde leva Orleane a uma comemoração inesperada: “Somos vitoriosos”.

Na mesma ambulância que levou Shirley ao hospital, estava a adolescente Jaquelaine. Deficiente, a menina perdeu a cadeira de rodas, destruída por um bombeiro durante a retirada dos moradores. Agora, a menina, seus dois irmãos e a mãe mudaram-se para a Líbero Badaró.

“Não é humano jogar bomba de gás onde tem crianças”, recorda Veronice Ribeiro Simões

A truculência da ação da PM é relembrada o tempo todo. “Não é humano jogar bomba de gás onde tem crianças”, recorda Veronice Ribeiro Simões, 35 anos, que teve que pedir abrigo a uma amiga para alojar o filho de 14 anos, de quem nunca se afastou. “Vi uma mãe colocando o filho bebê para fora da janela para ele respirar. Quando conseguimos sair, achando que a gente estava livre, foi que eles começaram a bater na gente. Me chamaram de vaca, de vagabunda. Me bateram nos braços com cacetete”, diz Veronice. “Passei a noite cuspindo sangue.” É importante pontuar também que a maioria das pessoas que viviam na ocupação São João é de trabalhadores, ao contrário do que argumentam muitos. Todas as pessoas que a Ponte entrevistou trabalham. Porém, o maior salário é de uma gari, que ganha R$840 e sustenta cinco filhos.

Ocupação Líbero Badaró | Foto: Rodrigo Zaim/R.U.A Fotocoletivo
Ocupação Líbero Badaró | Foto: Rodrigo Zaim/R.U.A Fotocoletivo
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Os moradores do prédio de 6 andares receberam, na quarta-feira, 17 de setembro, a visita do rapper Emicida. Ele acompanha a situação do movimento por moradia e esteve na ocupação São João na semana anterior à execução da reintegração de posse. Foi saudado com a mesma simplicidade e abertura com que foram acolhidos os novos moradores, mesmo com a reestruturação do espaço, como no cômodo em que agora vive Arno Rodrigues da Silva, 21 anos, que faz bicos como carregador. A fraternidade entre os integrantes das ocupações é o que dá força para seguir na luta.

“Só quem viveu para saber. Julgar é fácil, qualquer um julga.”

“Na hora senti aquela queimação na garganta, os olhos começaram a arder e pensei ‘Deus, não deixa eu desmaiar aqui, não. Tem muita mulher e criança para tirar daqui ainda”, lembra o educador Oncy Machado de Araújo, o “Tio”, de 35 anos. O pai de Bruno, 10, e Jéssica, 9, afirma que foi a solidariedade entre todos os ocupantes que o fez ficar firme durante a operação. “Na hora a gente não pensa nem na gente, só pensa no próximo mesmo. Essa é a realidade. Só quem viveu para saber. Julgar é fácil, qualquer um julga. A realidade é outra. Eu nunca tinha vivenciado isso na minha vida. Você esquece de você na hora”, diz. E completa, emocionado: “A gente é uma família aqui dentro. O que vivemos lá dentro não foi guerra. Foi amor.”

Para doações, entre em contato com a Frente de Luta por Moradia.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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