Xadrez para entender os dilemas da economia russa, por Luís Nassif

Em  vários  ramos,  como  metais  e  produtos  químicos,  os  empresários  russos  obtêm  lucros  substanciais  devido  a  sanções  e  contra-sanções. 

Uma entrevista com o economista russo Andre Yakovlev, por Ilja Viktorov PhD,  pesquisadora,  Departamento  de  História  Econômica,  Universidade  de  Estocolmo.

A guerra da Ucrânia está permitindo levantar informações sobre um dos temas econômicos menos estudados no Brasil: a queda da economia soviética e os erros cometidos, que impediram a Rússia de repetir a trajetória da China.

Dono de um vasto potencial científico, a rigidez da hierarquia soviética impediu que os estudos transbordassem para a economia. Enquanto a micro-informática transbordava por todos os setores da economia, na URSS os estudos ficavam restritos à indústria bélica.

Depois, veio o desmonte da ex-URSS e uma privatização selvagem, que substituiu a antiga hierarquia do partido pelos novos oligarcas, emperrando de vez o desenvolvimento do país.

Os dados abaixo foram retirados de uma entrevista com Andrei Yakovlev, diretor  do  Instituto  de  Estudos  Industriais  e  de  Mercado  da  Escola  Superior  de  Economia  de  Moscou. Ele se especializou em política industrial russa, gestão corporativa, relações entre Estado e empresas e economia política da transição.

Peça 1 – as distorções de preços

Desde a década de 1980, os modelos de negócios desenvolvidos na Rússia – fundado em grandes monopólios estatais e, depois, privados – privilegiavam a busca da renda, o enriquecimento rápido e exclusivo.

Havia uma enorme desproporção entre preços mais altos dos bens de consumo duráveis e bens de investimento, por um lado, e preços de matérias primas, por outro. Criou-se a ilusão de que seriam eficazes  investimentos em grandes plantas industriais em lugares remotos – como na Sibéria e no Extremo Norte.

Assim que a economia russa foi aberta, e o comércio exterior liberalizado, as exportações de matérias primas explodiram devido à diferença de preços entre os mercados interno e mundial.

Houve um período curto de liberalização descontrolada das exportações, que permitiu a um grupo altamente seletivo de exportadores especiais, a partir de meados da década de 90, controlar os fluxos de exportação. A exportação de matérias primas tornou-se, assim, a principal fonte de receita para agentes econômicos e estatais na Rússia pós-soviética.

A escala da economia e a disponibilidade de recursos abundantes, em vez de beneficiar, aumentaram as distorções na nascente economia de mercado russa. As distorções se espalharam pela economia, afetando a concorrência, impedindo regras claras de negócios.

Segundo ele, o  ambiente  de  negócios  que  emergiu  desse  processo  foi  caracterizado  por  uma  falta  de  concorrência  genuína  e  uma  violação  dos  direitos  de  propriedade.

Peça 2 – as privatizações da década de 1990

O  ministro  da  privatização  de  Boris  Yeltsin,  Anatoly  Chubais,  e  sua  equipe  tinham  o  claro  objetivo  político  de  tornar  a  privatização  irreversível. O processo se deu em período muito curto, de três q quatro anos. Os novos proprietários  privados  não  estavam  interessados  em  investimentos,  mas  principalmente  na  desmobilização  de  ativos. Somente  no  final  da  década  de  1990  os  proprietários  começaram  a  pensar  em investir em seus negócios.

Nesse quadro, apareceu um esquema de empréstimos lastreados em ações, que  colocou  os  ativos  estatais  mais  lucrativos  sob  o  controle  de  um  punhado  de  insiders,  os  futuros  oligarcas.  Essas  grandes  empresas  foram  vendidas  a  um  preço  com  muito  desconto;  foram  praticamente  doadas.

De um lado, essas essas  empresas  rapidamente  se  reestruturaram  e  começaram  a  crescer,  como  aconteceu  com a Norilsk  Nickel  e  a  Yukos.   O outro lado da moeda foi a  injustiça  social  e  a  falta  de  legitimidade  desse  tipo  de  privatização, que levou o povo russo a apoiar a ofensiva contra Yukos  em  2003  e  2004.  

Estrategicamente,  os  grandes  negócios  russos  perderam  a  batalha  porque  a  população  nunca  confiou  nos  novos  empreendedores  e  novos  negócios\  

Parte da desconfiança adveio da dramática queda do padrão de vida da maioria da população após 1991. Em 1998, a crise econômica agravou ainda mais a situação.

Quando Vladimir Putin assume, a economia estava em recuperação cíclica, mas a melhoria da situação foi atribuída ao seu governo que, de fato, agia de forma bastante  racional,  

redistribuindo  parte  da  renda  nacional  em  favor  da  população  como  um  todo.  

O círculo de amigos de Putin continuou se enriquecendo, mas Putin criou sua base social com o eleitorado de massa.

Peça 3 – o caso Yukos

O desfecho do caso da petroleira Yukos foi o elemento-chave  do  novo  regime  político-econômico  que  gradualmente  emergiu  sob  Putin.

Havia um conflito pessoal entre Putin e Mikhail  Khodorkovsky. Mas refletia uma disputa mais profunda, entre a burocracia federal e os oligarcas. Havia a necessidade de receitas para apoiar a estabilidade política, redistribuindo  a  renda  natural  em  favor  de  regiões  carentes  e  partes  da  população  para  

compensar  os  desequilíbrios  causados  pelo  crescimento  econômico  inicial  que  se  seguiu  à  desvalorização  de  1998.  

As maiores empresas exploradoras de recursos naturais rejeitavam a partilha dos fluxos de renda com o Estado. O desmantelamento da Yukos  fez  com  que  a  burocracia  federal  ganhasse  essa  batalha e alterasse o capitalismo oligárquico dominante.

Surgiu  um  novo  conjunto  de  regras  informais  que  pressupunham  o  controle   final  da  administração  presidencial  sobre  os  grandes  negócios.  Ao  mesmo  tempo,  os  proprietários  privados  podiam  manter  o  controle  operacional  sobre  suas  corporações  e  ainda  podiam  receber  uma  parte  bastante  substancial  da  renda  gerada.  

Esse  modelo  de  compromisso  institucional  trouxe  alguma  estabilidade  e  possibilitou  o  crescimento  econômico durante  as  duas  primeiras  presidências  de  Putin.  Os  investimentos  estrangeiros  também  começaram  a  fluir  para  a  Rússia, devido a uma certa estabilidade nas regras do jogo e a garantia de direitos de propriedade aos investidores.  

Peça 4 – a Primavera Árabe e o Izborsk  Club

Na crise de 2008, a Rússia  foi  uma  das  economias  com  pior  desempenho  do  Grupo  G20.  A  crise  inverteu  a  tendência  de  expectativas  positivas  dos  agentes  econômicos.  E demonstrou  que  os  que  estavam  no  poder  não  compreendiam  completamente  o  que  realmente  estava  acontecendo  na  economia.  

A burocracia russa entendeu o momento e iniciou novo  diálogo  com  a  comunidade  empresarial. Resultou, em 2011, no programa Estratégia  2020, com uma  série  de  reformas  institucionais  com  o  objetivo  de  aliviar  a  pressão  burocrática  sobre  a  classe  empresarial,  incluindo  a  criação  da  Agência  para  Iniciativas Estratégicas,  a  introdução  de  um  ombudsman  empresarial,  anistia  para  empresários  condenados  por  crimes  econômicos  e  outras  iniciativas  que  potencialmente promoveriam  os  interesses  das  empresas  russas.

Mas os interesses da população continuaram sendo deixados de lado, aumentando as críticas sobre um modelo que beneficiava apenas o andar de cima.

A Primavera Árabe foi a peça que faltava para um remendo de pacto que permitisse a Putin o apoio da opinião pública, sem abrir mão de seus oligarcas. Os movimentos de desestabilização política da região provocaram na opinião pública uma forte  postura anti-ocidental. 

Essa  mudança  afetou  tanto  a  política  externa  quanto  a  doméstica,  implicou  repressões  contra  a  oposição e trouxe outras consequências. A principal delas foi a criação do  think  tank  conservador  antiocidental,  o  Izborsk  Club,  em  

2012,  com  o  apoio  inicial  da  Administração  Presidencial. 

Reuniu alguns  economistas  famosos,  como  o  conselheiro  presidencial  Sergey  Glazyev  e  Mikhail  Delyagin,  mas  também  algumas  personalidades antiocidentais  radicais,  como  o  escritor  Alexander  Prokhanov.  

Em janeiro de 2013, uma mensagem do primeiro  vice-primeiro-ministro,  Dmitry  

Rogozin, em russo e inglês, deu a linha dominante: haverá muitos anos antes de se chegar a uma democracia autêntica. A escolha real, segundo o manifesto, seria entre a modernização autoritária liderada pelo Estado ou o caos. 

A tese principal é que, nos próximos cinco a sete anos, o mundo enfrentaria a Terceira Guerra Mundial, iniciada  pela  oligarquia  financeira  global  e  dirigida  contra  todos,  mas  principalmente  contra  a  Rússia,  porque  Putin  foi  um  dos  poucos  que  tentou  resistir  à  hegemonia  desta  oligarquia.  

A  segunda  tese  trata  da  mobilização  da  economia  e  da  sociedade  russas  semelhante  às  mobilizações  históricas  anteriores  sob  Pedro,  o  Grande  e  

Stalin.  

O  restante  do  documento,  incluindo  as  sugestões  práticas,  como  a  reforma  do  aparelho  de  Estado  e  assim  por  diante,  baseia-se  nessas  duas  disposições.  O  Izborsk  Club  vê  a  Rússia  como  uma  fortaleza  sitiada  que  estaria  em  conflito  com  o  resto  do  mundo.  

Ponto 5 – os oligarcas e o liberalismo

Até  recentemente,  as  elites  políticas  e  econômicas  russas  eram  extremamente  pró-ocidentais.  Eles  mantêm  seu  dinheiro  em  bancos  suíços,  seus  filhos  estudam  no  Reino  Unido  ou  nos  Estados  Unidos  e  não  desejam  participar  do  crescente  confronto  com  o  Ocidente,  especialmente  com  a  Europa.  

O  apoio  inicial  que  o  Izborsk  Club  recebeu  da  administração  presidencial  acabou  diminuindo.  

Os liberais russo não foram capazes de criar alternativas às idéias do Clube  de  Izbork. Continuam presos às velhas  visões  sobre  democratização,  liberalização  e  afins,  enraizadas  na  realidade  política  dos  anos  1990. As reformas prometiam  grandes  oportunidades  e  liberdades  para  a  maioria.  Na  realidade,  porém,  apenas  uma  pequena  minoria  poderia  desfrutar  dessas  liberdades  e  usar  essas  oportunidades.  Essa  é  uma  das  razões  pelas  quais  o  clima  antiocidental  entre  a  população  russa  começou  a  crescer  já  na  década  de  1990,  especialmente  durante  a  guerra  em  Kosovo. E  as  reformas  liberais  da  década  de  1990  estão  intimamente  associadas  à  influência  ocidental.

A volta do império russo e do sentimento anti-ocidental foi a maneira de manter o poder político, sem abrir mão da aliança com os oligarcas. Putin  é  de  fato  o  líder  russo.  Sua  decisão  de  desencadear  um  período  de confronto  aberto  com  o  Oeste defende  os  interesses  fundamentais  da  classe  dominante  da  Rússia  que  era  e  continua  a  ser  pró-ocidental.  Oss oligarcas são os mesmos, mas seu poder não é legitimado mais pelos princípios do liberalismo ocidental, mas pela volta do grande império

Ponto 6 – a modernização autoritária

A Rússia não enfrenta o dilema entre democracia e autoritarismo. As alternativas em jogo, como já dito, são ou a modernização autoritária, liderada pelo Estado, ou o caos.

E aí entram desafios complicados, semelhantes aos que atormentaram pseudo-democracias ocidentais, como a brasileira: a falta de consenso entre as elites para uma redefinição das regras informais do jogo sobre a redistribuição  dos  fluxos  de  renda,  única forma de viabilizar  a  alternativa  da  modernização  autoritária.  

Esse  consenso  deve  contar  com  uma  coalizão  de  interesses  ampla,  com a  burocracia  federal,  os  oligarcas  e  os  serviços  de  segurança,  e  incluir  representantes  do  setor  empresarial  de  nível  médio  e  do  setor  público.  Segundo Yakovlev, o caráter  da  propaganda  midiática  antiocidental,  a  dramática  desvalorização  do  rublo  em  dezembro  de  2014  e  o  assassinato  de  um  dos  principais  políticos  da  oposição,  Boris  Nemtsov,  nos  arredores  do  Kremlin  em  fevereiro  de  2015,  entre  outras  coisas,  demonstraram  que  o  atual  sistema  político  e  econômico  na  Rússia  não  funciona  adequadamente.

Ponto 7 – as sanções econômicas  

Paradoxalmente, o isolamento econômico imposto à Rússia oferece oportunidades novas. 

Por exemplo, as contra-sanções russas – reduzindo as importações de alimentos – oferece  novas  oportunidades  de  crescimento  para  a  agricultura  russa,  e  as  empresas  envolvidas  começaram  a  obter  bons  lucros  com  isso.  

A  recente  e  dramática  desvalorização  do  rublo  torna  os  produtos  russos  ainda  mais  competitivos  no  mercado  doméstico.  O  queijo  de  alta  qualidade,  que  anteriormente  era  importado  principalmente  da  UE,  em um ou dois anos voltará a ser fabricado na Rússia. 

Após  a  desvalorização  do  rublo  de  1998,  era  impossível  comprar  iogurte  em  

Moscou,  porque  até  a  crise  financeira  de  1998  todo  o  iogurte  era  importado  da  Alemanha.

No  entanto,  a  demanda  da  população  levou  ao  surgimento  de  produtores  russos  confiáveis  de  iogurte.

O desafio será a maneira como os lucros serão reaplicados, devido às incertezas políticas. Em  vários  ramos  e  indústrias,  como  metais  e  produtos  químicos,  os  empresários  russos  obtêm  lucros  substanciais  devido  a  sanções  e  contra-sanções.  O dilema está em investir  para  expandir  seus  negócios  ou  convertê-los  em  moeda  estrangeira  e  retirá-los  da  Rússia  para  contas  no  exterior.  

A  situação  atual  de  isolamento  econômico  da  Rússia  persistirá  por  muitos  anos e abrirá novas oportunidades. O desafio será aprender  a  viver  nesta  nova  situação.

Luis Nassif

3 Comentários

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  1. ” O Izborsk Club vê a Rússia como uma fortaleza sitiada que estaria em conflito com o resto do mundo. ” E SEMPRE FOI. Houve um refresco apenas quando foi um “lugar de bárbaros ‘slaves'”. Espaço grande demais para os bando ocidentais, mesmo assim sempre campo do caça.

  2. O desconhecimento sobre a Rússia é imenso. Frequento o país há dez anos. A olhos vistos, a economia do país cresce junto com sua classe média. Aliás, a Rússia é um dos únicos países do G20 onde a classe média cresce e a concentração de renda diminui. A Rússia, rapidamente, vai se tornando autosuficiente em termos manufatureiros e de produtos agroindustriais, particularmente no ramo alimentício. Não falta nada nos mercados e supermercados russos. Mais de uma vez tenho escutado comentários de que o Putin teme uma Ucrânia próspera, liberal e “democrática” baseada no euro, logo ali, em confronto com a realidade econômica do “pobre” povo russo “oprimido”. A experiência me diz que o contrário é muito mais provável e verdadeiro: o imperialismo ocidental atlanticista teme e por isso combate os exemplos contemporâneos de sucesso das economias capitalistas de estado da Rússia e da China.

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