A onda jacobina (3), por Sérgio Sérvulo da Cunha

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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A onda jacobina (3)

por Sérgio Sérvulo da Cunha

(comentários sobre o julgamento do habeas corpus impetrado em favor de Lula)

Na continuação do julgamento de habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Lula, o STF deverá deliberar sobre a possibilidade de se executar, uma decisão penal condenatória, imediatamente após o veredito de segunda instância, isto é, sem que se aguarde o trânsito em julgado.

Em sua sustentação oral, ao indicar os textos legais que incidem no caso – principalmente o art. 5º-LVII da Constituição – o advogado José Roberto Batochio desafiou a Corte: com que argumentos poderia ela afastar a aplicação dessas normas, que impõem, no caso, a concessão do habeas corpus?

Note-se: não se trata de aplicar ou não o princípio da presunção de inocência. Sendo esse um princípio positivado, trata-se de aplicar as normas que o incorporam ao ordenamento.

Se estivéssemos numa sala de aula, ou redigindo um tratado, caberia examinar como essa matéria vem sendo tradicionalmente versada, na legislação, na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Mas sejamos práticos, e busquemos, no acórdão correspondente ao habeas corpus nº 126.292 (fevereiro de 2016), os argumentos que foram ali inscritos, pela maioria dos ministros.

O relator Teori Zavascki assinala que o tema “envolve uma reflexão sobre o alcance do princípio da presunção da inocência, aliado à busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intrincado e complexo sistema de justiça criminal”. Citando a ministra Ellen Gracie, observa que “em nenhum país do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”; e por fim acrescenta que os recursos extraordinários  destinam-se à preservação da higidez do sistema normativo, e não a examinar a justiça ou injustiça em casos concretos.    

São três argumentos, manejados nos votos da maioria segundo diferentes facetas, que na verdade se resumem a um só: a morosidade no julgamento do recurso extraordinário (de competência do STF) põe em risco a segurança pública e a efetividade da jurisdição penal. Logo, deve-se afastar a incidência da norma constitucional: “salus reipublicae suprema lex esto”. São argumentos “de lege ferenda” e “contra legem”, de efeitos destrutivos, que usurpam os poderes do Legislativo.

Também não são novos. São panaceias apregoadas desde que se manifestou a chamada “crise do Supremo”, e, desde que se afastou daquela Corte o ministro Vitor Nunes Leal, vêm sendo utilizadas para extirpar o recurso extraordinário – depois do habeas corpus e do mandado de segurança, a mais eficiente via de proteção dos direitos individuais. Empregadas, de início, para criar medidas obstativas desse recurso, evoluíram no sentido de se hipertrofiarem os poderes do STF. E culminam, agora, por se voltar contra os direitos fundamentais e suas garantias.

Caiu-me o queixo ao ler, naquele acórdão, os votos que justificam, em nome da celeridade, a imediatidade da execução penal. O judiciário, afinal,  descobriu o princípio da celeridade, inscrito no art. 5º-LXXVIII da Constituição! Mas na contra-mão: são as garantias voltando-se contra os garantidos! Ao mudar seu nome, de “direitos e garantias individuais”, para “direitos e garantias fundamentais”, o constituinte de 1988 não imaginava que eles fossem invocados, um dia, para proteção da sociedade contra os indivíduos! Invoca-se o princípio da celeridade para antecipar o cumprimento da pena, mas não para acelerar o recurso do réu! Ele pode esperar preso, visto que o objetivo do seu recurso não é fazer-lhe justiça, mas “preservar a higidez do sistema”.

Por isso, não é teoricamente consistente (embora, no caso, seja alternativa prática), a solução proposta pelo ministro Toffoli, e depois encampada pelo ministro Gilmar: a de que a sentença penal condenatória possa ser executada somente após o julgamento do recurso especial, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Se deixamos de ter garantias, se os direitos fundamentais são suficientemente protegidos pelo duplo grau de jurisdição, não haverá mais necessidade de uma Corte Suprema. Se é assim, em vez de suprimi-la, por que não reformá-la? Aumentar o número de ministros, criar mais turmas, extinguir a vitaliciedade, e eliminar os hiperpoderes? 

Sérgio Sérvulo da Cunha é advogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Sobre a justiça

    Prezado Sr. Sérvulo Cunha,

    Ainda que me cause alguma náusea a quase sempre hipócrita saudação que o meio jurídico emprega, gostaria de o parabenizar por sua peça.

    Não pelo quanto eu concorde ou discorde dela, mas pela elegância da apresentação, a sustentação da ideia principal, a tratativa sinóptica e justa dos argumentos contrários.

    Não sou do meio, ainda que tenha cursado alguns anos da dita Ciência Jurídica, mas me presto a atentar em relação a  tudo que envolve nossa condição de cidadão e de pessoa.

    O que apresentarei a seguir, tem mais caráter de dúvidas, para as quais agradeceria esclarecimentos.

    A Corte dentre outros argumentos, atribui a necessidade de celeridade da justiça, algo que a sociedade aparentemente requer, ainda que seja, apenas, quando se sente como a parte ofendida.

    Curiosamente, o CNJ afirmou em 2017 que um em cada três presos estão presos provisoriamente e, que o julgamento demora entre 172 a 974 dias. Apenas não esclarece o fundamental: quantos desses são inocentados? Se apenas um destes, estivesse preso na condição de inocente, não constitui de per si, grave afronta à sociedade? à Constituição?

    A Corte, constituída de homens que se ofendem de modo tão ilustre, não recorreriam ao argumento rasteiro de que se trataria de um “pequeno custo” em nome do interesse da sociedade. Argumentariam entre a necessidade do equilíbrio entre as garantias individuais constitucionais e a necessidade punitiva?

    Sem ser tão dramático, reformulo a história: dos delitos e das penas. Considerando que os presídios são medievais, como afirmou a douta presidente da Corte, ao condenar alguém a tal pena, isto é equivalente ao delito?

    É justo pois, aplicar pena atroz aos delitos cometidos? é esta a sociedade da qual falam? é isto que se espera do direito? Assim, não me parece.

    Celeridade. O tempo que se leva para iniciar um julgamento criminal no país, é enorme. Recentemente se noticiou que um sujeito foi levado a julgamento pelo assassinato da esposa, 17 anos depois do crime. É desta celeridade a que se referem os juizes?

    Celeridade é sinônimo de investigação? Até as paredes sabem que os governadores criminosamente desaparelharam as Polícias Civis. Em termos técnicos, a polícia judiciária, que deve instruir os processos, investigar. Por esta impossibilidade, recuamos para a delação premiada, para a negociação clandestina, que será aceita como prova. É desta celeridade que os doutos tratam?

    Quem paga pelos erros crassos cometidos em instrução, em julgamentos? o Estado. Que Estado? aquele que aposenta compulsoriamente juizes negligentes ou criminosos? promotores irresponsáveis? delegados incompetentes? quem paga é o cidadão que cair em suas garras. alguns resgatam a honra à moda japonesa.

    Mas isto não interessa. Não se trata do indivíduo, mas de uma sociedade envenenada pela “comunicação” ou será pela mais insidiosa e rasteira “fofoca”?

    Prender após o segundo grau de jurisdição, é crer na “infalibilidade judicial”, arremedo daquela atribuída ao papa. Se a corte tem tal capacidade, qual o sentido da existência dos tribunais superiores. Não deveriam ser eles, em nome dos princípio constitucional da economicidade, eliminar tais cortes, posto que não há clara e inequívoca distinção nas atribuições desses tribunais, exceto por firulas como julgamento em foro privilegiado?

    A celeridade e economicidade não põem em xeque a estrutura do judiciário? esbanjador, lerdo, incompetente?

    não se torna necessário uma reforma judicial profunda, modficando tais estruturas?

    Não se faz necessário discutir de modo amplo, os riscos de uma sociedade vingativa, cruel, ignorante dos seus direitos e deveres?

    Com a palavra.

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