Botequim como instrumento da dialética jurídica, por Bruno Magalhães

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Do JOTA

Enquanto a ciência classifica, a realidade vivifica. É essa a conclusão a que chegou Goethe ao dizer que “toda teoria é cinza, mas verde é a árvore dourada da vida”. Lembro-me bem, é verdade, da retórica dos professores da faculdade de Direito em busca de convencer os alunos de que estávamos diante de uma ciência. O Direito, sob certo ponto de vista, é uma ciência. Do mesmo modo, sob certo ponto de vista, a cosmética e a sexologia também são. Isso já deveria ser suficiente para tirar qualquer dúvida sobre a legitimidade e a evidente necessidade dos juristas de botequim, contra quem o Dr. Edilson Vitorelli se voltou em seu artigo publicado no Jota. Porém, diremos mais sobre esse fenômeno tão complexo.

É dos bares que chega à justiça boa parte dos processos criminais da Justiça Estadual; é de lá, além disso, que é gerada parte considerável dos processos das varas de família. Um local em que a vida pulsa com tanta evidência não pode prescindir do apostolado dos filósofos e dos juristas. Por isso, esse subespécie do gênero “juristas” jamais me incomodou. Mas me incomodam, deveras, os cientistas que a pretexto de reforçarem sua imagem de imparcialidade buscam instituir uma reserva de mercado em favor de sua ciência. A ciência se ocupa de um recorte tão ínfimo da realidade que a pretensão de regular os debates públicos por um critério de cientificidade já é descabida por definição. Meus dados estatísticos não mentem: 97% do que dizem os cientistas do Direito não passa de doxa adornada de um vocabulário acadêmico.

A ciência de hoje tem usurpado o prestígio que nos últimos tempos a tecnologia angariou pelo mérito inegável de ter facilitado um pouco nossa vida prática. A ciência do direito, não tendo propriamente uma tecnologia exitosa em que se escorar, deve justificar-se a si própria ou, quando menos, tomar emprestada a boa fama que o ordenamento jurídico – cuja produção já foi comparada a uma complexa fábrica de salsichas – possa eventualmente ter em uma determinada sociedade.

Voltemos brevemente à Grécia Antiga. Em seu diálogo “As Leis”, Platão trouxe à cena personagens que discutem qual seria a melhor legislação para a Ilha de Creta. A discussão é complexa e abrange diversos aspectos da vida humana em sociedade. O curioso é que entre os elementos fundamentais para o bom funcionamento da sociedade os legisladores platônicos não colocaram propriamente o conhecimento, mas precisamente o vinho. É no vinho que está a verdade – assim pode ser resumida a lição platônica –, pois ele, que é um caso do elemento fogo, dissolve nossa carcaça e nos abre à expressão de nossa própria personalidade e também, portanto, à compreensão do outro.

Como bom discípulo de Sócrates, Platão não perdeu a lição do mestre: a verdade não é algo pronto e acabado que possa ser exibido em um pedestal. Eles diriam: a verdade não é aquele negócio pelo qual você paga os sofistas para lhe ensinar. A verdade, para Sócrates, só podia ser encontrada através do diálogo. De degrau em degrau, através uma atividade sincera, atenta e meditada, os interlocutores chegam (nós, em geral, chegamos) a um ponto de certeza que antes não se havia alcançado. Na sua Metafísica, Aristóteles atribui a Sócrates a primeira busca pelo conceito universal e a utilização, ainda embrionária, do método indutivo. Ora, é evidente, então, que Sócrates, tido como o pai da filosofia, fez de seu discípulo Platão o primeiro filósofo de botequim. E vejam que para o matemático Alfred North Whitehead toda a filosofia ocidental não passa de um conjunto de notas de rodapé a Platão. Logo, com todo o rigor científico é possível sustentar a hipótese de que a filosofia começou nas ruas e nos banquetes de Atenas e que continua existindo, em seus melhores momentos, justamente onde a vida se movimenta. Foi em seus piores momentos que a filosofia buscou refugiar-se dentro dos palácios e dentro dos muros das universidades; buscando afastar-se do coração das pessoas, acaba por ficar, ela mesma, sem coração.

Se a discussão acadêmica pura é praticada algures, perdoem-me os cientistas do Direito, mas ela é um assunto para anjos – puros espíritos que de Deus nunca se afastaram. O ser humano de carne e osso, que gosta de se reunir e de conversar com os amigos, pode e deve buscar uma melhor apuração conceitual, mas pode também errar e pisar fora da linha – sóbrio ou depois de duas cervejas. O direito que se discute nas mesas de bar é, como o futebol, mais arte que ciência. E não será arte o que se faz em cada uma das varas judiciais, das promotorias de justiça e dos escritórios de advocacia?

Não é possível negar, entretanto, que há uma Ciência do Direito viva hoje em dia, que ela tenta, aqui e ali, compreender o fenômeno jurídico com maior ou menor sucesso e que, eventualmente, contribui para o estabelecimento de focos de paz social. Porém, se há ciência e se há cientistas, a eles faço um apelo: não queiram regulamentar as conversas de botequim! Deixe-as a salvo de um sistema rígido de normas (“isso pode, aquilo não pode”). Façam o uso que melhor lhes parecer dessas conversas – ou as ignore, se assim recomendar o seu método de pesquisa. Mas não mexam nos botequins – um dos poucos espaços verdadeiramente democráticos (e, portanto, culturalmente interessantes) do país.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

2 Comentários

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  1. viva os botecos, a vida
    e os

    viva os botecos, a vida

    e os  becos com saída….

    dizer,depois de fouicault,  que há  alguma ciencia na área de humanas, parece mesmo piada…

  2. Normas de um botequim imparcial

    Gostei do romance. Ou da crônica… 

    Dizem que Rousseau também era um romancista. Um sonhador. Será? Perguntemos para Kant, o “verdadeiro”.

    Quanto a filosofia penso que um pontapé inicial  seria mais distante não? Tales de Mileto e não “Sócrates”.

    Mas, não vem ao caso. Também não vem ao caso a cosmologia dos gregos daquele tempo de escravidão. 

    ___________________

    A suposta  “regulamentação” das conversas de botequim – as quais são ótimas para os integrantes de uma mesa, eu incluso – não seria feita pelos “cientistas dos direito” mas sim pelo órgão que realmente legisla no país que é o órgão do poder legislativo.

    Exceto, claro,  se existir um botequim dentro de um tribunal, por exemplo. Aí poderiamos encontrar a condição do presidente do tribunal “baixando” normas de conduta  humana  daquele botequim do tribunal, sem se afastar da Cr/88 e da lei( do poder legislativo).

    Exemplificando, poderíamos imaginar a seguinte “regulamentação” de funcionamento – que não se confunde com alvará, tampouco com a lei e muito menos com  a CR/88-, a saber:

    Art 1 É permitido falar de filosofia, economia, sociologia, antropologia, futebol, religião, política, mídia, manipulação da opinião pública, teoria de comunicação, de Laswell, da persuasão, funcinonalista, crítica, hipodérmica etc,  fraude, corrupção ativa e passiva de todos e para todos, lavajato versus Zelotes, versus merenda versus sítio versus jornalista…,   desvio de dinheiro, cinema , cultura, globalização econômica, cultural, capitalismo da periferia versus central,  socialismo, Muro de berlim versus muro do México versus cerca da Síria;  Síria nas  versões abcdef… da Síria;  carga tributária, alta! ( e sonegação tributária igualmente alta!)  com viés para direita, para esquerda, centro, centro esquerda, centro direito, pra baixo, pra cima, pro lado que bem quiser o interlocutor desde que respeite o próximo ou não invada o “quadrado deste”, como, mutatis mutandis, dizia, dizem, Smith. 

    Parágrafo único: Ninguém será obrigado a ouvir ou deixar de ouvir uma conversa se não em virtude deste regulamento.

    Art 2 Fica proibido agressões verbais, tentativa ou realização de  crime de injúria, difamação e calúnia, insitação à “ditadura constitucional republicana”?,  fruto do “efeito manada” provocado pela repetição incessante  de “notícias” de “jornais” que visam lucro para todo o sempre e de qualquer jeito ou forma monopolística  com ou sem ética, imoral, amoral, sem vergonha,  enfim, pouco se lixando!  entre outras condutas afins,  sob pena sofrer medidas administrativas e operacionais para manter uma certa urbanidade ou ruralidade,  razoabiidade,proporcionalidade de pessoas normais considerando-se o que se espera de um ser humano médio brasileiro disposto a uma conversa entre pessoas razoáveis,  normais,  ainda que com alguns soluços. 

    Art 3  Nesse butequim não se aceita a prática do facismo nem do racismo e/ou discriminações de toda ordem que estejam  em flagrante afronta ao bom senso e  à CR/88. 

    Parágrafo Único: Pena de advertência imediata. E na repetição, prisão em flagrante. 

    Art 4  A polícia será imediatamente chamada em caso de debates acalourados, cujos debatedores estejam  prestes a “sair na porrada.”

    Art 5 Os brasileiros são brasileiros e grandiosos  em qualquer lugar do país. Povo do nordeste é o grande povo do  nordeste assim como o do sudeste, do sul, do norte e do centro oeste.

    Art 6 O  estabelecimento mantém alto padrão nutricional, razão pela qual  não se aconselha a venda de  coxinhas que pode causar obesidade. 

     

    Este regulamento entre em vigor na data de início do funcionamento do bar. 

    Revogam-se as disposições em contrário.

            

            Brasil, 24 de fevereiro  de 2016 ; 195º mais ou menos  da Independência e 128º mais para menos que pra mais da República. 

    Presidente do Tribunal  imparcial xyz.

    ______________________________________

     

    Supõe-se, todavia, que o problema maior seria a instalação de um  buteco copo sujo, dentro de um poder legislativo. Vale lembrar que a “fábrica de linguiças” e das leis, normalmente, como dizem,( só estou especulando)  vêm deste poder. Afinal,  este é o que tem , aí sim, a função PRECÍPUA de legislar toda e qualquer conversa, inclusive, as conversar daquele  botequim dos “cientistas do direito”. 

    Ademais, é de se supor,  conforme relatos na internet etc, que no Brasil  teríamos de início,  no mínimo,  três butecos:  o buteco do boi, o da bala e o  da bíblia e seus desdobramentos.

    Imaginem a regulamentação desses copos sujos…

    Saudações 

     

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