
O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início à discussão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF), que trata da descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação.
A presidente da Corte, ministra Rosa Weber, votou pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez durante sessão virtual, que foi suspensa por pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso. Com isso, a discussão terá continuidade durante sessão presencial do Plenário, em data a ser definida.
O Jornal GGN conversou com a advogada Letícia Ueda Vella, integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde com atuação focada na promoção e defesa de direitos das mulheres, sobre o impacto positivo para a saúde pública brasileira que a descriminalização do aborto teria no país.
Confira abaixo:
Sobre o voto favorável da ministra Rosa Weber e os pontos importantes da movimentação:
Na madrugada de hoje, a gente teve uma movimentação a respeito da ADPF 442: nós tivemos o voto favorável da Rosa Weber que se coloca enquanto relatora pela discriminalização do aborto, nas doze primeiras semanas de gestação, entendendo essa como uma questão de saúde, essa com uma questão de direito das mulheres. Um voto muito acertado.
Do outro lado, a gente também já tem agora nas movimentações do processo, um pedido de destaque do ministro (Luís Roberto) Barroso que tem como resultado garantir com que o julgamento, que se iniciou de maneira virtual, seja discutido em plenário físico.
Algo (discussão em plenário) que, honestamente, eu realmente concordo porque acho que esse é um tema para plenário físico, dada sua complexidade e a necessidade de manifestação de múltiplos atores da sociedade civil, que devem sim, se colocar de forma aprofundada sobre esse tema. É uma oportunidade também para a gente demonstrar o impacto que é gerado para vida de mulheres, meninas e pessoas que gestam.
O que propõe a ADPF 442: ela propõe a análise da compatibilidade dos artigos 126 e 128 do Código Penal Brasileiro com a Constituição Federal. Falando de uma maneira mais simples, o que se analisa é se a criminalização do aborto nas 12 primeiras semanas de gestação é compatível com a nossa Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, em realidade, está analisando a possibilidade de descriminalização do aborto nas duas de primeiras semanas de gestação no Brasil.
Juridicamente falando, quando começa a vida? Os argumentos de que a interrupção da gravidez são um crime contra a vida, quase como assassinato, são válidos?
Em primeiro lugar, o que vale destacar é que a personalidade civil no Brasil, de acordo com o Código Civil, se adquire com o nascimento. Então, do ponto de vista jurídico, quando a gente tá falando da vida, de proteção a vida, de quando começa a vida e no caso especificamente do aborto, a gente está falando de contraposição, realmente, de um direito à vida, direito à vida de mulheres, meninas e de pessoas que gestam. E de outro lado, de proteção à vida em potencial, né? Então é uma vida em potencial, e não necessariamente uma vida concreta, estabelecida do ponto de vista jurídico.
E é justamente por isso que não faz sentido algum associar aborto a uma questão de assassinato. Acho que essa é meramente uma retórica, uma retórica bastante complicada de movimentos que são anti-aborto, que tem por objetivo na verdade reforçar os estigmas que são colocados em torno do aborto, né?
Cabe tratar a questão do aborto como uma questão criminal? Me arrisco a dizer que não. Na realidade, o aborto é uma questão de saúde pública. A criminalização é extremamente ineficiente para reduzir a quantidade de abortos. A criminalização tem como principal consequência a busca por abortamentos inseguros e, portanto, ela [a criminalização] acaba por transformar um procedimento de baixo risco, seguro, em um procedimento arriscado para mulheres. Especialmente para mulheres em situação de maior vulnerabilidade, mulheres jovens, mulheres negras e mulheres de classes sociais menos abastadas.
Vale falar que há uma controvérsia muito grande do ponto de vista religioso, moral, de quando começa a vida, mas acho que há dois pontos também que merecem ser tragos: o Estado é Laico, então ele não pode beber de fontes religiosas ou de concepções religiosas para determinar qual o momento de início da vida e transportar isso do ponto de vista jurídico.
As crenças religiosas existem e devem ser bem-vindas, mas isso depende muito da história individual de cada um. Não é ela [a religião] que deve ditar os caminhos do Estado e nem mesmo uma forma como o Estado vai compreender, em alguma medida, a proteção da vida em potencial.
P: A tese de “direito a vida” vale no quesito do aborto até a 12ª semana de gestação?
Sim, vale. A gente está falando de mulheres e meninas que, apesar da criminalização, acabam por realizar o procedimento e assim se colocam em risco. Colocam sua saúde, vida em risco. Então, cabe falar em direito à vida quando a gente está pensando em descriminalização, direito à vida de mulheres, direito à vida de meninas.
Essa é uma das argumentações centrais que a gente tem, e isso é tudo baseado em dados, né? Pesquisas mostram que uma a cada sete mulheres no Brasil, apesar da criminalização, já praticaram um aborto até os 40 anos de idade. Essas mulheres são, em sua maioria, mulheres jovens.
A Pesquisa Nacional do Aborto de 2021 mostra que mulheres negras realizam o procedimento 46% das vezes mais que mulheres brancas. Portanto, são elas as pessoas mais afetadas pelos efeitos da criminalização.
A gente também tem dados da Organização Mundial da Saúde que apontam o aborto como um procedimento extremamente seguro. Na realidade, é um procedimento quatorze vezes mais seguro do que a realização de um parto.
Mas o que a gente tem na realidade brasileira como resultado da criminalização é justamente o aborto hoje como a quarta causa de mortalidade materna no Brasil.
Um procedimento de baixo risco que poderia ser acessado com tranquilidade por mulheres no próprio Sistema Único de Saúde, deixa de ser esse procedimento de baixo risco e se torna então esse procedimento inseguro, que faz com que as mulheres realmente tenham suas vidas colocadas em risco. Então é dessa vida que a gente tá falando.
Quais os benefícios da descriminalização e legalização do aborto para uma nação, juridicamente falando? De acordo com os dados, se prendêssemos hoje todas as mulheres que cometeram um aborto, o sistema prisional receberia 5x o número atual de presidiárias.
A gente consegue perceber em países que descriminalizaram o aborto uma queda nos agravos de saúde relacionados a essa questão e uma queda da mortalidade materna relacionada também a essa questão. Ou seja: a gente tem países que efetivamente pensam na proteção da vida de mulheres e meninas, porque essa é a primeira grande mudança.
E quem são essas mulheres que vão ser mais protegidas, que majoritariamente vão ser menos afetadas pelos agravos à saúde da realização do abortamento? Justamente as mulheres em situação de maior vulnerabilidade, as mulheres negras, as mulheres de classes sociais mais baixas.
Dados mostram que há uma queda no número de abortos em países que apostaram na descriminalização, porque aí é quando a gente permite efetivamente um processo da informação sobre saúde reprodutiva, quando a gente efetivamente pensa na inserção dessa mulher nessa rotina de cuidados em saúde, e, portanto, na possibilidade de construção de uma decisão sobre ter ou não uma gestação de forma mais autônoma.
P: Diferença entre a decisão do STF e decisão pelo Congresso Nacional: como isso muda a legislação?
Na realidade ele assume o papel nesse caso, como em todos os outros, de Guardião da Constituição, né? Então basicamente o que o STF faz: ele analisa a compatibilidade das leis em relação à Constituição Federal. É um órgão completamente legítimo para decidir sobre essa questão.
A gente tem uma jurisprudência ampla na América Latina em que as cortes constitucionais entenderam essa questão como uma matéria de Direito Constitucional. Entenderam as leis restritivas ao aborto, inclusive como os leis que violavam direitos fundamentais, direitos constitucionais de mulheres e meninas.
Exemplo disso é tanto o caso do México, que é extremamente recente, como também o caso da Colômbia, que foi muito discutido nos últimos tempos.
O STF, ao contrário do Congresso Nacional – que seria responsável pela criação das leis – faz uma adequação e interpretação da lei à luz do que está colocado na Constituição Federal.
Qual a diferença entre a descriminalização e a legalização?
A descriminalização se refere a deixar de compreender o aborto como um crime. O movimento feminista em geral, defende a legalização do aborto, né? Defende a descriminalização, mas sempre com o objetivo de legalizar.
E qual a diferença de você deixar de compreender uma coisa como crime para a própria legalização? A legalização é quando a gente pensa efetivamente na construção de políticas públicas, promovidas pelo Estado, para garantir do acesso ao aborto descriminalizado. Então seria um passo dois – mas é possível descriminalizar para legalizar.
Então, primeiro deixar de compreender o aborto como crime para depois garantir que haja regulamentação estatal, para que esse acesso seja feito por meio das políticas de saúde – no caso do Brasil, para que esse acesso seja feito por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). É dessa maneira que a gente consegue garantir que as mulheres vão conseguir acessar um aborto seguro de maneira equitativa.
Se a gente deixa de pensar na perspectiva da legalização, o que a gente está dizendo é que as mulheres vão ter que buscar seus próprios meios para poder realizar o procedimento com segurança. E o que a gente entende é que essa é uma questão de política pública. Que cabe ao Estado garantir o acesso aos meios, as informações adequadas para que essas mulheres façam o procedimento de maneira segura.
Então a legalização defende, na perspectiva brasileira, justamente a inserção desse procedimento no Sistema Único de Saúde, permitindo que todas as mulheres acessem isso de uma maneira igualitária.
Estado Laico: como você enxerga a defesa da vida por uma perspectiva religiosa no Brasil, sendo o país orientado pelo Estado Laico?
Quando a gente pensa em um Estado Laico, argumentos religiosos acerca da defesa da vida não deveriam guiar as decisões estatais, muito menos a construção das nossas leis e as decisões judiciais. É claro, cabe dentro do âmbito de cada um realizar uma discussão própria sobre qual que é o momento do início da vida a partir da sua perspectiva religiosa. Mas, para a tomada de decisões estatais, a compreensão do início da vida a partir dessa perspectiva, é, em alguma medida, irrelevante para tomada de decisões.
A proteção do Estado Laico é uma proteção constitucional. Em relação a esse tema. vale olhar o trabalho que é desenvolvido por uma organização que se chama Católicas pelo direito de decidir e elas colocam de maneira muito evidente porque que a gente deve pensar a defesa de um estado laico, porque a gente deve pensar a defesa de um estado livre de concepções religiosas e que consiga, no caso do aborto, efetivamente tomar uma decisão que não seja a partir de premissas religiosas, mas que seja a partir da premissa da evidência científica.
As melhores evidências científicas apontam para ineficiência da criminalização do aborto do ponto de vista da saúde das mulheres e meninas. Elas apontam que as mulheres não vão deixar de realizar o procedimento. Mas elas vão sim colocar suas vidas e saúde em risco.
Então, o que a gente está falando é da necessidade de tomada de uma decisão estatal no caso da ADPF, baseada na melhor evidência científica. A gente passou por isso de forma muito evidente agora, e vimos como isso foi devastador e implicou na perda de milhares de vidas ignorarmos o que tem sido produzido pela ciência. Espero que a gente não faça isso novamente em relação à questão do aborto.

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