Impudência e Sensaboria: em busca do termo perdido, por Eliseu Raphael Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Giotto Di Bondone (1267-1337). Alegorias da Justiça e Injustiça (1303-1305)¹

Impudência e Sensaboria: em busca do termo perdido

por Eliseu Raphael Venturi

“[…] uma Justiça cujo rosto comum e mesquinhamente regular era aquele mesmo que, em Combray, caracterizava certas boas burguesas devotas e secas que eu via na igreja e várias das quais já estavam engajadas na milícia de reserva da Injustiça”. (Marcel Proust)².

Nos últimos anos acirrou-se no país uma disputa que não é nova. Emergiram, e foram cultivadas, dicotomias diversas em tornos de todas as pautas: conservador e progressista; esquerda e direita; garantista e punitivista; democrático e autoritário; homem e mulher. Há muito, o pensamento humano problematizou e superou tanto operações por meio de dicotomias quanto, substancialmente, os horizontes para os quais estas dicotomias mesmo apontam. Tolera-se, hoje, um ou outro recurso pedagógico à dicotomização, rapidamente se recomendando seu apagamento diante da complexidade, diversidade e tonalização do mundo; assim como se os utilizam por necessidade comunicativa, mas sempre em um quadro argumentativo delimitado.

Nunca tivemos tantos recursos comunicativos (de som, imagem, vídeo e texto), nem tanto acesso a materiais diversos, mas, ao mesmo tempo, nunca tivemos escolhas de fontes tão equivocadas, bem como discursos tão repetidos e leituras tão rasas e simplistas – tais como as dicotomizadas.

O problema maior é quando o político e o jurídico, em uma mesma esteira da educação e dos meios de comunicação, são movidos por esse simplismo, aniquilador, ainda, de qualquer leitura ou visão que controvertam, problematizem ou aprofundem o debate. A grande armadilha desta estrutura de pensamento é tomar por possível o abjeto, parificando escolhas.

Se a falta da capacidade de pensar foi uma das grandes causas da banalidade do mal e do horror político totalitário, não parece menos distante dos nossos dias a incapacidade de valorar e de distinguir segundo uma visão histórica e jurídica minimamente balizada, deficiência concorrente a, pior ainda, uma vontade deliberada de realizar opções políticas apolíticas.

Tais são razões da ascendência autoritária no seio das liberdades democráticas e, também, do ódio pelos direitos e pelo político, decorrentes de um econômico tomado unicamente no seu aspecto predador. Novamente, não há nada de novo diante dos olhos, apenas sofisticações e perversões mais desumanas e cruéis da tecnologia da violação.

Há menos de cem dias das eleições de 2018, um presidenciável apresenta uma agenda de medidas flagrantemente intoleráveis e abjetas sob o ponto de vista jurídico. Até o mais inocente liberal dos pensadores, que conhecesse um pouco do texto constitucional (texto literal mesmo, nenhuma maior elaboração hermenêutica), assim como qualquer pessoa que acompanhou brevemente a história das ideias políticas nos últimos duzentos anos, ficaria realmente embaraçado e constrangido com tais medidas.

Contudo, tal presidenciável, além de ovacionado, apresenta chances consideráveis de eleição, segundo algumas pesquisas. Não fosse a necessidade do jogo democrático de se dar atenção a este tipo de pessoa, já poderia ter sido sua figura e discurso relegados ao esquecimento. Todavia, o tipo de cultura que lhe dá suporte, e sua presença no jogo democrática, obrigam a atenção e, sobretudo, a crítica.

Ainda há menos de cem dias das eleições de 2018, trava-se uma batalha judicial tragicomicamente pitoresca em torno da liberdade de um potencial presidenciável – preso político e vítima de “lawfare” – com flagrantes intervenções indevidas de magistrados ressurgidos das férias diante da atuação de desembargador plantonista competente para o ato. Desrespeito prepotente e deliberado às regras de competência e momentos de atuação processual, juiz e desembargador são louvados quando o cadáver da imparcialidade há muito exala seus odores.

Diante disso, uma Presidenta do STF emite nota cujo direcionamento é completamente obscuro e metafísico, acompanhado de uma decisão da Presidenta do STJ pela teratologia, uma denúncia da PGR em evidente criminalização seletiva de uma atuação judicial (erguendo outro cadáver malcheiroso, o da independência); outra magistrada nega entrevistas pelo preso…

A autocrítica e autocontrole não apenas estão sepultados quanto, há muito, há um nítido sentido antijurídico de atuação – afinal, ética judicial pra quê? Grande mídia e seus paladinos, entre aplausos, relatam entusiasmados o resgate de uma caverna – numa contrametáfora do seu encarceramento platônico-ideológico.

Mais uma vez: não fosse a necessidade do jogo democrático de se dar atenção a este tipo de agentes sociais, pela antijuridicidade de suas atuações, já estariam relegados ao esquecimento enquanto figuras do Direito; contudo, os efeitos deletérios à democracia de sua atuação obriga, novamente, à atenção e ao questionamento. Afinal, diante de qual fenômeno se localiza diante de tamanhas arbitrariedades?

O léxico tradicional remeteria, com razão e sem titubear, à ilegalidade ou inconstitucionalidade, posto que o direito moderno, por vocação, deve propor soluções de modo simples (não simplista) e objetivo. Contudo, diante da truncada realidade jurídica da situação (em que, não raro, quem deve fiscalizar, controlar e sancionar não o faz), fruto das mais perversas distorções democráticas, seria necessário ir além, numa dimensão moral. Aí se falaria, então, em cinismo e impudência: se por um lado vemos a desfaçatez, por outro a sensaboria em todos os sentidos. Seria ir preciso mais além ainda.

A Filosofia do Direito Contemporânea, ou seja, aquela desenvolvida a partir da segunda metade do Século XX, adotou como seu campo de análise e possibilidade um campo expandido de problemáticas complexas, com aberturas em relação aos dogmas do positivismo moderno: passam-se a considerar questões de valores como integrantes da problemática jurídica, assim como questões institucionais, discursivas (da argumentação e hermenêutica) e as respectivas aos novos desafios das tecnologias e das complexas dinâmicas culturais (interculturalidade, multiculturalismo etc.). Isso sem abrir mão dos problemas do Direito natural, dos direitos humanos, da normatividade.

A despeito desta qualificação e ampliação do debate, fato é que o realismo jurídico não se desenvolve “pari passu” com a discussão dogmática do Direito e, muito menos, com o estado da arte da Filosofia do Direito. Este é um dos grandes motivos dos ataques e acusações do senso comum à Filosofia (idealismo, utopia etc.), quando, em verdade, são os agentes concretos da história que abrem os lapsos quando de suas atuações desvinculadas. Isto remeteria a um termo muito simples: “vazio”, estamos diante do cínico vazio.

Mais uma vez, a despeito desta qualificação histórica do Direito pela assunção da complexidade de sua construção linguística, portanto, não deixamos de ver nossos agentes jurídicos exercendo simplismos que vão desde os vícios consagrados de sua linguagem repetitiva, somados à indiferença de suas declarações públicas: está tudo ali, posto na textualidade da enunciação, a arrogância perpassada nos tons de vozes; talvez a única honestidade e transparência que ainda encontremos em todo o seu vazio e em todo o seu cinismo.

E destes vazios, tal qual nos caminhos de Swann ante o afresco de Giotto, nos deparamos com realidades maiores: “Mais tarde, porém, compreendi que a estranheza impressionante, a beleza especial daqueles afrescos, provinha do considerável lugar que ali ocupava o símbolo, e o fato de estar ele representado não como um símbolo, pois o pensamento simbolizado não se achava expresso, mas sim como real, como efetivamente sofrido ou materialmente manejado, dava à significação da obra qualquer coisa de mais literal e preciso, e a seu ensinamento qualquer coisa de mais concreto e incisivo”³.

O rosto comum e mesquinhamente regular… de uma Justiça engajada na milícia de reserva da Injustiça.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.
 
¹ Giotto Di Bondone (1267-1337). Alegorias da Justiça e Injustiça. Le allegorie delle Virtù, 1303-1305. Disponível em: <https://www.tuttartpitturasculturapoesiamusica.com/2011/09/le-sette-virtu-giotto-1267-1337-la.html>. Acesso em: 12 jul. 2018.
 
² PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2006. p. 66.
 
³ Idem.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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