Para advogado, negar possibilidade de trabalho é negar lógica da execução penal

Sugerido por Lenilson

Do O Globo

Contra o Direito

João Bernardo Kappen

Negar a quem está em regime semiaberto a possibilidade de trabalhar fora dos presídios é negar lógica da execução das penas privativas de liberdade 

Há um fato inegável: os presos famosos do presídio da Papuda estão ajudando a mostrar o nível de degradação moral e material do sistema carcerário e jurídico brasileiro. Não para nós, habitués de um mundo penal em ruínas, mas para os alienígenas obrigados a se confrontar diariamente com as manchetes dos jornais que estampam os suplícios daqueles que agora fazem parte da massa de encarcerados. Sempre soubemos que o cumprimento das penas impostas aos condenados no caso chamado de mensalão seria publicamente fiscalizado. No entanto, havia quem dissesse que, uma vez condenados, os réus não ficariam presos por muito tempo. Mas não sabiam eles que as execuções das penas impostas aos dois Josés, o Dirceu e o Genoino — estes que foram promovidos ao posto de inimigos públicos do país —, seriam, senão as mais, certamente duas das mais fiscalizadas da história penal brasileira. Não consigo me lembrar de um dia sequer em que os jornais não tenham noticiado a situação da execução penal de Dirceu e Genoino, desde o momento em que eles foram presos. Faz lembrar Graciliano Ramos que, sentindo na própria carne a perversidade do sistema penal, lançou em suas “Memórias do cárcere” que “certos crimes não desaparecem nunca; um infeliz ajusta contas com o juiz e fica sujeito ao arbítrio policial. Inteiramente impossível a reabilitação, pois não o deixam em paz”.

Há certa incredulidade de parte da comunidade jurídica e, em especial, dos advogados criminais com a quantidade de erros graves registrados no julgamento do chamado mensalão. Agora, são os erros na execução da pena que representam o motivo de maior preocupação, já que se sabe que quando o exemplo vem de cima, nesse caso da Suprema Corte, os de baixo deitam e rolam. Uma decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal proibindo o trabalho externo dos presos que cumprem pena em regime prisional semiaberto sem o cumprimento de um sexto da pena tem a potencialidade de causar uma verdadeira carnificina no sistema carcerário, pois avaliza decisões no mesmo sentido nas instâncias judiciais inferiores, o que teria como consequência prática o fim do regime prisional semiaberto. Por quê? Uma das razões reside no fato de não existirem colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos similares onde, como determina a Lei de Execução Penal, os presos em regime semiaberto deveriam ficar. E, com isso, milhares de presos que estão atualmente cumprindo pena em regime semiaberto e trabalhando fora dos presídios teriam que voltar ao confinamento integral dentro dos presídios com características de regime fechado, o que, evidentemente, é contra o direito de quem deve cumprir sua pena em um estabelecimento prisional compatível com as características do regime semiaberto. Os reais motivos que levaram o ministro a decidir da forma como decidiu podem e devem ser objeto de questionamento, mas é fato que resultou de uma interpretação absolutamente equivocada da lógica que orienta o sistema de execução das penas. Um artigo de lei não pode ser interpretado isoladamente como se não fizesse parte de um sistema com uma lógica própria previamente pensada. Aprende-se isso nos primeiros anos de faculdade.

A Lei de Execução Penal, considerando o ano em que foi projetada, 1983, representou e ainda representa um avanço em termos de execução penal. O que se precisa cobrar, por mais paradoxal que seja, é que seja cumprida. Está lá no item 14 da exposição de motivos da existência da lei que a pena deve ter como princípio a reincorporação do autor do crime à comunidade. Está lá também, no item 65, que o estabelecimento da garantia jurídica dos direitos dos condenados é fundamental na luta contra os efeitos da prisionalização. Por isso, por exemplo, o cumprimento progressivo da pena passando de um regime prisional mais rigoroso para um menos rigoroso representa a concretização do programa legal de reincorporação do preso à sociedade e de luta contra os efeitos nocivos da prisão. Negar, portanto, aos presos que cumprem pena em regime prisional semiaberto a possibilidade de trabalhar fora dos presídios é, antes de tudo, negar toda a lógica da execução das penas privativas de liberdade. Torceremos, ao bem do Estado de direito, para que a recente decisão do ministro Joaquim Barbosa não seja um entendimento prevalecente no Supremo Tribunal Federal.

João Bernardo Kappen é advogado

Redação

5 Comentários

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  1. Mais dia, menos dia, JB

    Mais dia, menos dia, JB sentirá que deu um tiro no pé. Pode isso acontecer por aqui mesmo, visto que suas ações são mal-vistas por ‘gente graúda’ da Justiça e fora dela, ou em por força da OEA. 

    Que Joaquim Bazrbosa sofrerá uma derrota fulminante, não sabemos em que dia, ele vai sofrer. 

  2. ÓTIMO ARTIGO

    Dr. João, o seu artigo é esclarecedor, mas não aborda a questão do trabalho para os apenados no regime semiaberto à luz da LEP-Lei de Execução Penal. Por isto, peço-lhe permissão para complementar o seu belo artigo.

    A LEP, nos artigos 36 e 37, dispõe que o apenado em regime fechado tem direito ao trabalho externo, desde que tenha cumprido 1/6 da pena.

    Ora, apenado em regime fechado que cumpriu 1/6 da pena, dependendo de seu comportamento na prisão, tem progressão de regime, passando do fechado para o semiaberto. Logo, se o apenado em regime fechado, que teve progressão para o semiaberto, tem direito ao trabalho externo, é questão de lógica e de bom senso que apenado em regime inicial ao semiaberto também tem o mesmo direito ao trabalho externo, sem a obrigação de cumprimento de 1/6 da pena no presídio,  uma vez que, a partir do momento da progressão de regime, ambos se igualam em direitos e deveres.

  3. O Brasil vai conhecer o Poder

    O Brasil vai conhecer o Poder Judiciário qdo os juízes de primeira instância começarem a fazer com a gente o mesmo que os do STF estão fazendo com os condenados ( e fizeram aos réus ) da AP 470. Não vamos nem poder chiar pq, a maior parte da sociedade aplaudiu o espetáculo. E, qto a incredulidade da comunidade jurídica; com todo o respeito, é covardia mesmo. Se, por um lado, a sociedade brasileira pode, através, desse julgamento, perceber qual o poder mais corrupto da República, por outro, pode  conhecer a categoria profissional mais elitista e omissa de todas. Podemos contar nos dedos, as vozes que se levantaram contra a ABERRAÇÂO que foi esse julgamento, desde a aceitação da denúncia. Ou seja, não existe a menor possibilidade de um operador do Direito, alegar incredulidade, espanto ou qq coisa do gênero. Hoje, se tem claros os motivos que levaram a OAB a promover a reserva elitista de mercado; fizeram a triagem dos que se venderiam ao novo Direito e eliminaram profissionais que poderiam fazer o contraponto. Aí está o resultado, o julgamento de exceção passou sem qq questionamento da OAB, Acadêmicos, associações, etc… O fascimo já chegou ao judiciário, vamos ver se conseguimos mantê-lo circusncrito a esse poder. Sempre, a porta mais escancarada para golpistas já que não representam a sociedade que desejam atingir.

  4. E a Pastoral Carcerária

    E a Pastoral Carcerária Nacional se posiciona contra a “solidariedade seletiva” aos réus do mensalão

    Nota da Pastoral Carcerária sobre o Mensalão: Estamos Onde Sempre Estivemos

    Após as recentes decisões do presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, no caso conhecido como “mensalão” (Ação Penal 470), amplamente divulgadas pela mídia e repercutidas entre juristas e organizações de classe, vários foram os questionamentos dirigidos à Pastoral Carcerária, que há décadas atua nos cárceres brasileiros ao lado dos presos e seus familiares, razão pela qual entendemos oportuno expor nosso posicionamento para nossos agentes e demais interessados.

    Primeiramente, não é novidade na literatura jurídica ou na jurisprudência o posicionamento do ministro Joaquim Barbosa, que, entre outras questões, entendeu necessário o cumprimento de 1/6 da pena no Regime Semiaberto para que fosse autorizado o trabalho externo aos condenados no processo em questão, sendo que, em nossa opinião, essa é uma interpretação descontextualizada e equivocada do art. 37 da Lei de Execução Penal, que não condiz com os objetivos legalmente declarados da pena e é, no mínimo, constitucionalmente duvidosa.

    Porém, se essa e outras decisões do presidente do STF no “caso mensalão” têm causado espanto para determinados setores da sociedade, certamente não surpreende às centenas de milhares de presos, seus familiares ou os egressos do sistema penitenciário, que desgraçadamente já se habituaram com condenações sem provas, decisões judiciais que rasgam a letra da lei e interpretações jurídicas absurdas por parte dos julgadores que, sem a sofisticação e empenho intelectual que vimos nesta Ação Penal, sequer mascaram sua pesada carga ideológica.

    Na Pastoral Carcerária, ao observarmos esse moinho de gastar gente que é a Justiça Criminal, percebemos há tempos que não há decisão isenta ou puramente técnica em nenhuma instância. Os juízes decidem politicamente e buscam justificar com o Direito as suas próprias convicções, geralmente tendo como alvo preferencial nossos jovens pretos e pobres. Aliás, o fato de numa conjuntura muito específica uma “nova classe” de pessoas ter sido vítima da truculência e aparente incoerência desse sistema, apenas reforça seu caráter essencialmente político e claramente seletivo.

    Assim, obviamente, repudiamos o conteúdo das referidas decisões do presidente do STF, assim como repudiamos tantas outras decisões absurdas que diariamente são produzidas em nossos fóruns. Porém, nos recusamos terminantemente a fazer coro com vozes que agora se levantam para falar dos possíveis reflexos do “mensalão” para o restante da população carcerária, como se a barbárie e o desmando já não fossem a tônica da Justiça Criminal.

    No nosso entender, enfrentamentos individualizados apenas trarão respostas individualizadas e elitistas, deixando à margem, como de costume, os presos e as presas que padecem em nossas masmorras.

    Não é possível denunciar publicamente que determinado indivíduo está cumprindo pena em regime diverso daquele em que foi condenado sem levar em conta os outros milhares que sofrem com a mesma violação, ou desconsiderar a luta pela aprovação da Súmula Vinculante nº 57, que se arrasta desde 2011 no STF e, se aprovada, poderia garantir o direito ao regime aberto ou prisão albergue domiciliar para todos que ilegalmente não conseguem usufruir o benefício do semiaberto em função da falta de vagas.

    Não é possível atacar publicamente a ausência de tratamento médico especializado para determinado indivíduo preso e, ao mesmo tempo, ignorar que as pessoas no sistema penitenciário são privadas dos cuidados de saúde e higiene mais básicos, ainda convivendo com surtos de sarna e mortes por tuberculose em pleno século XXI.

    Não é possível enfrentar as restrições ao trabalho externo para um determinado grupo de presos sem cerrar fileiras com a massa de encarcerados, que sequer conseguirão um emprego ao cumprirem suas penas, em boa parte graças à ausência de políticas públicas de inserção no mercado de trabalho e à estigmatização social que persegue o egresso como uma verdadeira marca de Caim.

    Nesse mesmo sentido, nos posicionamos sobre a suposta dispensa da revista vexatória para os familiares dos condenados na Ação Penal 470. Essa é uma prática ilegal de revista, que expressa repudiável violência sexual, e é um dos inúmeros aspectos cruéis do cárcere, especialmente por ser uma espécie de “pena” que se estende dos presos para seus familiares, e que não poucas vezes provoca o rompimento total do convívio destes, já que muitos se recusam a passar por situação tão degradante, inclusive a pedido dos próprios presos, e acabam por deixar de visitá-los.

    Assim, obviamente, não defendemos que os referidos familiares se sujeitem ao mesmo procedimento degradante que os demais. Seja qual for o motivo da suposta dispensa, a Pastoral Carcerária continuará defendendo que nenhuma pessoa passe por revistas vexatórias, independentemente de sua cor, origem ou classe social.

    Sobre o tema, a Pastoral Carcerária já fez diversas denúncias e tem empreendido uma luta permanente pela abolição desse perverso procedimento de tortura, sendo que recentemente tem apoiado, fortemente, a aprovação do Projeto de Lei nº 480/2013, bem como auxiliado na construção de campanhas com o mesmo fim.

    Na luta contra o cárcere, seletivo e cruel em sua raiz, não podemos praticar uma “solidariedade” igualmente seletiva e, portanto, igualmente cruel, como se a injustiça doesse mais em uns do que em outros.

    Precisamos, sobretudo, abandonar a ilusão da prisão como instrumento de “ressocialização” e entende-la como ela é: uma ferramenta de exclusão, estigmatização e alienação social por excelência.

    Portanto, privar a pessoa presa de trabalho, educação, tratamento médico e convívio familiar apenas reforça essa característica “dessocializante” do cárcere. Não é por menos que o encarceramento em massa, longe de suprimir o crime, é causa de aumento da violência, sendo que os altos índices de reincidência atestam a falência dos seus objetivos declarados e demonstram que, quanto mais se encarcera, mais se mantem a pessoa na marginalidade social.

    Por fim, reafirmamos que a Pastoral Carcerária está onde sempre esteve, ao lado de todos os presos e presas, inclusive dos condenados na Ação Penal 470, e especialmente junto daqueles mais fragilizados e violentados em seus direitos, lembrando sempre que a prisão não é lugar de gente, é local de dor e morte, e fonte de sofrimento físico e espiritual.

    Brasil, 15 de maio de 2014

    PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL

    http://carceraria.org.br/nota-da-pastoral-carceraria-sobre-o-mensalao-estamos-onde-sempre-estivemos.html

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