Os palcos iluminados e os escravos das perdidas ilusões, por Sebastião Nunes

Introduzindo o massacre intelectual da classe média no mundo da cultura de massas, vou me aproximando aos poucos do encontro 2020-2084, com todos os horrores imagináveis.

Os palcos iluminados e os escravos das perdidas ilusões

por Sebastião Nunes

Montado no cavalo de cara preta, Adão ventura seguiu na frente dos amigos e se espantou com o que viu, ou melhor, com aquele cenário no qual emergiu. Luis Gonzaga Vieira, Manoel Lobato, Sérgio Sant’Anna, São Pedro e o arcanjo Gabriel, marchando atrás, suspenderam a caminhada a um gesto de Adão para que fizessem silêncio.

Eram três palcos gigantescos, explodindo uma tecnologia audiovisual anos-luz à frente do que se conhecia até então. Embasbacados, nossos amigos ficaram paralisados entre espanto e confusão. Que diabo seria aquilo?

Pareciam – apenas pareciam – cenários k-pop, o fenômeno de massas coreano, criado em 1998 pelo ex-cantor e empresário Lee-Soo-Man. Dono de uma mente cruel e voltada para a maximização do lucro, o k-pop, conforme disse o fundador da gravadora SM, um dos três maiores conglomerados de entretenimento da Coreia em 2020: “A era da tecnologia da informação dominou os anos noventa. Eu predisse que depois viria a era da tecnologia cultura”. O k-pop era, em suma, a essência do neoliberalismo.

Por tecnologia cultural, formulação quase matemática e extremamente rígida, Lee-Soo-Man entendia bases musicais e visuais sintéticas, resultando numa mistura de hip hop, rock, eurodance, funk, reggae, techno e country, com intervenção de sons africanos, árabes e asiáticos, ou seja, a mistura de todos os produtos de entretenimento de massa. Era a síntese pseudo-estética da globalização, adaptada ao olhar lascivo do erotismo ocidental e destinada a explodir nas redes sociais e nos eventos musicais do mundo. Para consolidar e expandir seus negócios, o empresário criou uma empresa de modelos semiescravos, com regras tão rígidas que sugeriam retrocesso aos tempos mais duros e sombrios da escravidão negra no Ocidente.

DEPOIMENTOS ESCLARECEDORES

Antes de continuar e penetrar, enfim, nos universos paralelos de 2020 e 2084, preciso mostrar como os artistas do k-pop chegaram a empolgar milhões de fãs em todo o mundo, a partir dos “laboratórios da gravadora SM e sua escola de modelos-escravos.

Alguns desses artistas se suicidaram, quando não aguentaram mais, a maioria deles adolescentes tardios, castrados em pleno voo performático.

Disse um dos sobreviventes: “Costumamos praticar danças com pesos de quatro quilos atados aos tornozelos durante dias, para nos acostumarmos a esse peso e, depois, nossos movimentos ficarem mais leves”.

ESCRAVOS NOS PALCOS ILUMINADOS

Todos são ídolos fabricados. As academias os treinam rigorosamente em canto, dança, idiomas, acrobacia, boas maneiras, uso das redes sociais e trato com a imprensa. Treinam de 12 a 15 horas por dia, com um dia de folga a cada duas semanas. Os alunos começam seus esforços por volta dos 11 anos. Através de softwares de simulação, a gravadora consegue saber como suas vozes soarão e que aspecto terão seus rostos uma década depois.

Os funcionários, também escravos do sistema, sabem de cor em que momento é preciso incorporar compositores, produtores e coreógrafos estrangeiros; que projeção de acordes usar em cada país; que cor de sombra de olhos funciona melhor em cada região; como mexer as mãos ao saudar segundo a cultura; ou que ângulos da câmera aplicar para os vídeos. Segundo essa estratégia, as estrelas musicais podem ser fabricadas como se fabrica um celular ou um computador.

IMORTAIS EMBASBACADOS

Em cima dos palcos, sob uma profusão quase indecente e totalmente hipnótica de sons, luzes e cores, grupos de jovens se exibiam com entusiasmo absurdo, segundo as regras do k-pop. Não pareciam pessoas, mas robôs.

No fundo de cada palco, três cartazes enorme mostravam figuras representativas do que viria a seguir. No primeiro, um retrato multicolorido e sorridente de Jair Messias Bolsonaro; no segundo, a imagem irritada de Donald Trump; no terceiro, um indivíduo que ainda não conheciam, mas logo viriam a conhecer: o Grande Irmão.

Sobre cada um deles, uma frase-slogan representativo do mundo sinistro em que estavam prestes a ingressar:

GUERRA É PAZ

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

IGNORÂNCIA É FORÇA

Os recém-chegados, de boca aberta e olhos arregalados, tentavam imaginar que diabo era aquilo e para onde seriam conduzidos. Mas sabiam eles que estavam na fluida e imaterial encruzilhada entre 2020 e 2084.

 

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(As informações técnicas e profissionais inseridas acima foram, em sua maioria, extraídas e adaptadas da matéria “Sob a perfeição do k-pop, contratos leoninos, dietas radicais e vigilância contínua” publicada no jornal El País, edição de 20-10-2020.)

Sebastiao Nunes

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