Um conto de Páscoa

Noite de Páscoa, 2018. Entorpecido pelo sono sem conseguir dormir, escuto pancadinhas na cômoda. Quem é? Não, eu não respondi. Apenas imaginei a resposta. Mesmo assim recebi fiquei espantado ao descobrir que algo ou alguém ousava responder.

Prepare-se… hoje você receberá a visita de três fantasmas do passado.

O arrepio passou como se o fantasmagórico visitante  tivesse ido embora. Mas ele ainda estava ali, escondido numa outra dimensão em que eu mesmo não poderia estar.

Toc, toc, toc… Um cheiro nauseabundo de chulé invadiu meu quarto. A luz está apagada, a noite era um breu. E mesmo assim uma claridade lentamente começa a crescer na parede ao lado da cama. Não na parede, mas entre ela e a consciência que dela qualquer um poderia ter.

Meus olhos estão fechados? Abertos é que não estão… e mesmo assim vejo a luminosidade medonha crescendo e bruxuleando dentro da minha cavernosa consciência aterrorizada.

Hoje sou um fantasma vil, mas antes e depois da revolução de 1964 um grande estadista acreditavam que eu poderia ser… – diz o condenado arrastado por uma corrente feita de medalhas do Exército.

Me perdoe cidadão, me perdoe meu irmão… Eu não tinha a intenção de esmagar sua família ou de magoar o bebê inocente que você foi.

Não, não posso perdoar ninguém. Vá pedir perdão ao seu criador, você não foi criado por mim. Arqueado, o fantasma acorrentado começa a chorar. Ele chora copiosamente, as lágrimas dele queimam como se pudessem derreter meu coração… e mesmo assim não ouso lhe dar quartel. Se ele sofre, fez por merecer… digo para mim mesmo esquecendo que ele também pode ouvir meus pensamentos.

Não, meu jovem, eu mereci não… Quando agi, queria apenas salvar o país e você da guerra que singrava o Atlântico rumo ao Brasil.

Pois é, querendo me salvar você me condenou a sofrer. A mim parece que você salvou apenas aqueles que já estavam salvos. Vá mendigar simpatia em outra freguesia, cá você apenas colherá as pedras que colocou no meu coração.

As correntes de medalhas arrastam o fantasma chorão para o purgatório, mas ele ainda tem tempo de sussurrar algo.

Mande rezar uma missa por mim. Castelo Branco me chamavam quando andei livre pelo mundo.

Sinto muito, mas não sou cristão…

Assim que o espectro de Castelo Branco desapareceu o cheiro de chulé se desvaneceu. O chulé era dele ou era meu? Toc, toc, toc… Um novo fantasma chegou.

Você vai morrer filho da puta, você vai morrer…

Esse fantasma parecia uma vitrola quebrada tocando um disco riscado. Ele ficava repetindo a mesma frase sempre e sempre. Fazia isso como se pudesse cumprir a ameaça. Ri e lembrei algo que havia concluído décadas antes. A morte é o único privilégio do qual ninguém, nem mesmo um fantasma xarope, pode me privar. Agora é sempre um bom momento para morrer.

Aterrorizado o fantasma desapareceu. Não sem antes praguejar.

Maldito sejas tu, que além de não perdoar Castelo Branco se recusa a temer aquele que foi mais temido que qualquer outro general. Costa e Silva me chamei, todas as medalhas eu perdi e agora nem mesmo um civil de merda eu consigo atormentar. Ai de mim, ai de mim… Se tivessem me acorrentado pelo menos não ficaria zanzando entre as realidades fantásticas sempre a me frustrar.

Toc, toc, toc… um novo fantasma chegou. Ele chegou mostrando suas ferramentas preferidas: a pimentinha, o arame farpado, o boticão, o alicate e um instrumento cujo nome não aprendi, mas que certamente provocava muita dor.  

Vou torturar seus parentes, matar sua família e molestar você até você confessar. Confesse comunista filho, da puta, confesse…

Confessar? Eu confesso, eu confesso… mijei no comunista que foi meu pai. Nenhum outro crime cometi ou poderia cometer. A pobreza tortura meus parentes há décadas, mas nem por isso eles deixaram de viver bem… bem melhor do que você. Eles sabem que a pobreza não é um defeito moral, mas você não foi capaz de aprender que a violência avilta sempre mais quem a praticou do quem a sofreu.

O fantasma recua, saca a pistola e a dispara… mas o tiro se desfaz como se fosse fumaça no ar.

Desgraçado, você vai morrer, você tem que morrer, vou matar você, vou matar você…

Na boa mano… se os mortos pudessem matar um homem vivo você mesmo, que matou tanta gente de maneira tão cruel, teria morrido antes de envelhecer. Levanto a mão para saudar aquele que anunciou meus três visitantes e o último deles se encolhe e chora como se meu gesto fosse ameaçador.

Não me torture, não me torture… Torturado pela lembrança tenho sido desde que morri. No rio do esquecimento fui proibido de me banhar. Ustra me chamei, mas agora não há brilho algum em meu nome. Ele me persegue toda vez que alguém me levanta a mão.

O fantasma do torturador amedrontado se escafedeu. Toc, toc, toc… finalmente consegui dormir. A persistência do passado nunca mais será capaz de me aterrorizar. Agora eu mesmo sou capaz de infundir terror nos mortos. E nos vivos também.

 

 

PS: Esse conto de Páscoa vagamento inspirado no Conto de Natal de Charles Dickens (1812-1870) é uma modesta homenagem irônica ao general cretino que disse que o STF não pode deixar Lula ser candidato a presidente.

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador