Cenas da ditadura militar, por Luís Nassif

Meu apelido era Lacerdinha, fruto da influência de meu avô Issa Sarraf, udenista dos bravos e amigo de Carlos Lacerda

Cenas da invasão da PUC

Naquele início dos anos 60, o Brasil descobrira a fome, o nordeste, o analfabetismo. Eram os temas recorrentes nas Semanas do Estudante de Poços de Caldas. Reuníamos no teatro da Urca para discussões infindáveis sobre o tema.

De um lado, havia os internos do Marista, de direita. De outro, a esquerda católica, primeiro da UEC (União Estudantil Católica), depois, do GGN (Grupo Gente Nova). Mais à esquerda, os comunistas do Pelicano, o colégio da maçonaria.

Quebrávamos o pau na Semana, depois íamos a um bar, os mais velhos tomando cerveja, eu – que participei da minha primeira semana com 12 anos – indo no Guaraná Caçula.

O governo reformista de Jango tinha, em suas fileiras, técnicos que foram fundamentais na construção de políticas sociais mundiais – como Paulo Freire, Josué de Castro, Anisio Teixeira, Celso Furtado. Depois do início da industrialização, era o momento da construção das bases de uma sociedade civilizada. Tudo acabou com a extraordinária insensibilidade e ignorância do poder militar.

Naquele início de década, a bem da verdade, devo admitir que meu apelido era Lacerdinha, fruto da influência de meu avô Issa Sarraf, udenista dos bravos e amigo de Carlos Lacerda.

Meu avô me mandava sempre a última edição do Ação Democrática – revista da direita liberal. Meu pai tentava contrabalançar me mandando Política & Negócios, bem mais amena.

Foi na condição de lacerdista que acompanhei a caminhada com Deus e pela Família, que levou a Poços o execrável padre Patrick Peyton americano que liderava o Movimento pelo Rearmamento Moral, bancado pelos irmãos Grace, católicos irlandeses norte-americanos, donos da Caterpillar. Peyton foi autor de slogans como “a família que reza unida permanece unida” e “a família é a esperança do mundo”.

Quando veio o golpe, houve comemoração no Colégio Marista.

Não levou um mês para cair a ficha. De São Paulo, vinham notícias de militares espancando estudantes. Em Poços, passou a grassar o dedurismo mais execrável. Lembro-me até hoje do nome do dentista Júnio Amarante, um dos dedo-duros. Nossos amigos do Pelicano ou foram perseguidos ou tiveram que se mudar de Poços.

Periodicamente, a política política levava para Belo Horizonte nossos amigos comunistas, o eletricista Sebastião Trindade, e Zé Maria do Caé, dono de uma funerária.

Senti o bafo da ditadura no período seguinte, quando fui estudar em São João da Boa Vista. Lá, meu primeiro contato com militância política, da família Nicolau, que havia sido expulsa da cidade em 1964, por fazendeiros armados. Durval Nicolau, médico do INAMPS, voltou em 1968 e se candidatou a prefeito. Compus o jingle de campanha dele.

Concorreu contra três candidatos ricos da Arena. Fomos acompanhar a apuração no Palmeiras, clube social da cidade. Saimos de lá com o resultado final: vitória de Durval. Na praça, enquanto comemorávamos em passeada, veio a notícia de que a polícia fechara o clube, procedera a uma recontagem e dera a vitória a um dos candidatos da Arena.

Naqueles anos participei de inúmeros festivais de música e pude conhecer de perto a extrema ignorância do regime militar. Todas as músicas precisavam passar pela censura.

Minha primeira censura foi em uma peça de teatro do Chico Ciência, um amigo de minha então namorada, aluno de história em Campinas. A peça foi inteiramente censurada. Fomos a Campinas, houve uma passeata e a peça foi encenada nos degraus da PUC. Lá, pude conhecer alguns bravos conservadores liberais, como o cônego Amaury Castanho, de direita, mas que impediu o Exército de invadir o campus da Universidade, em defesa dos “meus alunos”.

Em um festival de Taubaté, foi censurada minha música “As curvas da marquesa de Santos” – uma referência à música “As curvas da estrada de Santos” -, porque “estava desrespeitando um personagem histórico”.

O máximo da cavalgadura foi na Feira Permanente da Música Populara Brasileira, da TV Tupi, organizada pelo grande Fernando Faro. Classifiquei uma música, o “Congresso Internacional do Medo”, abordando, de forma figurada, o programa de arrocho de Roberto Campos, que quebrara meio mundo. Não entenderam, mas invocaram com uma parte da letra – de meu talentosíssimo parceiro João Kleber Jurity – que falava em Senhor K, um personagem de Kafka. Cismaram que era “propaganda subliminar” de Kubitscheck e exigiram que trocasse por Senhor F. Como era programa ao vivo, ficou o pobre do Faro com um cartaz com uma imensa letra F estendido na nossa frente, para que não esquecêssemos da ordem da censura. Se insistíssemos em Senhor K, o programa seria tirado imediatamente do ar.

Teve muito mais e aí, curiosamente, aprendi algumas virtudes militares que certamente não estavam presentes na cúpula. Fui obrigado a fazer o Tiro de Guerra e eleito o presidente do grêmio. Os sargentos eram loucos para que fizéssemos um jornal, pois garantia pontos para eles junto à cúpula. Passei o ano inteiro boicotando o jornal, que não saiu.

Mas dois episódios me mostraram algumas características curiosas do meio. Uma delas, foi a vez que o Sargento Tigrão (como o apelidáramos) obrigou-nos a rastejar em roupas civis no chão cheio de pedregulhos do campo de treinamento. Indignados, saimos de lá e fomos queixar para o Tenente Hélio, maior autoridade militar da cidade, mas sem ascendência sobre o Tiro de Guerra. E estava lá o Avestruz, um negro homossexual, bom boxeador, que vendida salgadinhos no Tiro. E ele nos denunciou para o Sargento.

No dia seguinte, o Sargento me chamou à sua sala crente de que, como presidente do grêmio, representava o comando junto aos alunos.

– – Seu Nassif, eu soube que vários atiradores foram se queixar ao Tenente Hélio. Trata-se de uma insubordinação grave. Você ouviu falar?

– – Ouvi, sargento.

– – E sabe quem estava lá? Poderia me dizer.

– – Sargento, com segurança posso informar apenas uma pessoa que estava lá: eu mesmo!

– – Até o senhor, seu Nassif?!

Mas não me puniu.

No final de ano, com o Tiro já encerrado, fomos alvo de uma delação em São João da Boa Vista, por parte de um certo Acácio Vaz de Lima, aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e membro do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). O motivo foi nosso grupo de teatro ter montado a peça “Liberdade, Liberdade”, de Flávio Rangel e Millor Fernandes.

O Segundo Exército mandou soldados a São João, para interrogar a diretora Adélia Adib. Esperta, ela livrou o pessoal de São João e jogou toda a responsabilidade nas minhas costas. Já que eu era de Poços de Caldas, eles não poderia agir diretamente.

Foram duas intimações para Poços, uma para o delegado Honório, outra para o Tenen Hélio. Os sargentos do Tiro ficaram desesperados. Todo atirador que encontravam mandavam o aviso para eu não aparecer em São João, porque estavam armando uma armadilha para mim.

Cheguei em São Paulo em 1970 mas, aí, já sob a paz dos cemitérios. Não havia mais agitação estudantil. As principais lideranças tinham ido para a clandestinidade e tínhamso pouca informação, por não pertencermos a nenhuma organização.

A morte de Herzog chacoalhou tudo. Um pouco antes, havia vazado a notícia da Operação Jacarta – um grupo de militares radicais que repetiriam o que houve na Indonesia, com o assassinato de inúmeros opositores, grande parte dos quais jornalistas. Com a morte de Herzog, confirmou-se a suspeita.

Fomos todos para o Sindicato dos Jornalistas, onde havia a presença tranquila de Audálio Dantas. Depois, à missa na Catedral da Sé, um episódio emocionante que projetou, para sempre, a imagem de dom Paulo Evaristo Arns.

Pouco tempo depois, morreu Manoel Filho. E, ali, um episódio curioso. Na época, eu e minha irmã Regina nos juntamos para comprar um apartamento para nossos pais – que haviam perdido tudo em Poços. Compramos de um dentista super-simpático, pai do advogado Fernando Albino e do lobista Gesner de Oliveira. Ele foi nos mostrar o apartamento e nos levou à cozinha.

– – Ali recebi meu cunhado, general Ednardo, logo depois da morte do Manoel Fiel. Ele chorou muito e disse ter sido traído. Não falou por quem.

Nos anos seguintes, sentimos o peso do DOI-CODI e da Operação OBAN.

Na época, eu trabalhava na Veja, mas toda matéria propibida a gente encaminhava para o jornal O Movimento. Um dia o jornalista Bernardo Kucinsky, correspondente do The Guardian, me passou dados – já publicados no jornal inglês – sobre o financiamento da OBAN (Operação Bandeirantes)I pela Copersucar, na época em voga pela compra de empresas nos Estados Unidos e pelo patrocínio à escuderia dos Fittipaldi.

Eu já trabalhava na Editoria de Economia e levei a sugestão ao editor Emilio Matsumoto. Ele foi consultar o Publisher Roberto Civita e voltou com a informação de que ele autorizara prosseguir. Foi uma surpresa total até cair a ficha. Ele queria apenas um motivo para chantagear Jorge Wolney Atalla, o presidente da Copersucar.

Na época, a Abril tinha um Relações Públicas – Hernâni Donato. A Copersucar o contratou e ele me delatou a Atalla. Um certo dia o próprio Atalla me telefona me convocando para uma reunião no seu escritório. Gelei.

Na mesma hora liguei para uma fonte minha, Paulo Belotti, alto executivo da Petrobras e tido como homem de confiança de Ernesto Geisel. Perguntei sobre Atalla. Me disse que era temido em todo o goveron, por suas ligações com a OBAN.

A quem recorrer, se ele me detivesse? À Abril, nem pensar. Roberto Civita já era um infame desde aquela época. Enquanto Ruy Mesquita acompanhava pessoalmente os jornalistas do Estadão detidos pela ditadura, Roberto Civita entregava os jornalistas da Veja no saguão do 6o andar mesmo.

Só havia um caminho, a colônia libanesa. Aziz Nader, o grande patriarca da colônia, tinha sido padrinho de casamento de meus pais; e seu filho Fuad Nader foi meu padrinho de crisma. Além disso, tínhamos parentesco com os Bogus. Avisei minha mãe para ligar para eles se eu não voltasse.

A conversa com Atalla foi estranha. 

– – Como você me acusa de matar pessoas? Não tenho nada com isso. Apenas contribuo para a luta contra o comunismo.

E terminou com uma frase que deixou espantado:

– – Vou te dar um aviso: batrício não fode batrício!

Saí de lá incólume.

Nos anos seguintes, minhas irmãs Fátima e Inês foram detidas na invasão da PUC pelas tropas de Erasmo Dias. Na semana seguinte, um policial civilizado, o Lalau, foi visitar minha mãe para dar conselhos às meninas. Por coincidência, foi o mesmo Lalau que me levou preso na greve dos jornalistas em 1979.

Ainda há muita história a se contar sobre o período, sobre os anos 80, sobre o gradativo afastamento dos empresários no apoio à ditadura.

Luis Nassif

5 Comentários

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  1. E com tudo isso, estão aí vocês a acreditarem que é possível conjugar democracia com capitalismo, ou que haja algum tipo de desenvolvimento nacional capaz de quebrar a estrutura de desigualdade, dependência, concentração de riquezas.

    Hehehe

    1889, 1923, 1930, 1937, 1945, 1958, 1964, 2016, 2024.

    Nem vou citar o golpe paulista de 32.

    Ou seja, que democracia, Nassif?

    Que desenvolvimento?

    Vôos de galinha

    Ciclos cada vez mais curtos, com retrocessos casa vez mais severos.

    7% de desemprego?

    Mentira, economia vegetando em serviços e sub ocupações.

    Renda de 3000 média (600 dólares)e 7% de desemprego(mesmo que os empregos sejam de baixa remuneração e precários em direitos) e a elite já está assanhada.

    Até o próximo golpe, Sr Nassif.

  2. O pior da tirania é que inevitavelmente ela é idiota, estulta, estúpida, mesmo quando de origem superior, que acidentalmente caiu.
    E quando ela vem de alguém completa e somente preparada pra “baixar o cacete”… sai de baixo! E um confundir alhos e bugalhos sem fim. E responder com pancadas.

  3. Que bom que temos L. Nassif….Memórias! Memórias! Memórias!… Algumas aterradoras, outras bem suaves….Mas tem boa verve e clave memorial e entusiasmo comeste imenso pais…. Continue seu Nassif!

  4. Nassif, de 1977 a 1980, fui correspondente na Alemanha do saudoso Movimento, comandado pelo Raimundo Pereira. Ó tempos, ó coragem!

  5. Nassif, como sempre brilhante! Em 1976 passei no vestibular de medicina e em 77 após a repressão ao segundo encontro estadual de estudantes comecei a participar do movimento estudantil. O jornal movimento era um alento como instrumento de denúncia e divulgação na época. Lembro de carregar vários exemplares nos encontros tipo ECEM, SBPC , etc , vendendo o jornal para arrecadar fundos pro movimento estudantil. Insuperáveis os jornalistas da época!

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