Algumas observações sobre o capítulo 4 do livro Lawfare, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ted Stevens e Lula sofreram consequências eleitorais em virtude dos processos, mas apenas o brasileiro foi preso e recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU.

Algumas observações sobre o capítulo 4 do livro Lawfare

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Nesse capítulo, os autores do livro expõe três casos paradigmáticos de Lawfare: o primeiro envolveu a Siemens, o segundo o senador norte-americano Ted Stevens e; o terceiro diz respeito ao caso do Triplex contra Lula.

As semelhanças entre as perseguições movidas contra Ted Stevens nos EUA e Lula no Brasil são evidentes. No centro dos processos havia um imóvel (o do senador teria sido reformado; Lula seria o proprietário oculto do Triplex). Em ambos os casos a acusação usou a imprensa para demonizar os réus e agiu de maneira agressiva para prejudicar o trabalho dos advogados deles, mas apenas no Brasil o juiz participou da conspiração que impediu Lula de ser julgado por um juiz imparcial. Nos dois processos a competência territorial foi deslocada do local onde se encontravam os imóveis (Alasca e Guarujá-SP) para aquela em que as vítimas ficariam mais expostas e indefesas diante de seus acusadores (Washington e Curitiba). Ted Stevens e Lula sofreram consequências eleitorais em virtude dos processos, mas apenas o brasileiro foi preso e recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU.

Não é possível comparar o desfecho dos dois casos. Apesar das evidências, a justiça brasileira ainda não anulou a monstruosidade da condenação que foi imposta a Lula por um juiz evidentemente suspeito para julgá-lo. Quando a conspiração da acusação foi evidenciada Ted Stevens foi absolvido. Os procuradores que cometeram ilegalidades para prejudicar o senador norte-americano sofreram as consequências desagradáveis. Até a presente data o procurador Deltan Dellagnol não sofreu nenhuma punição severa por ter conspirado com Sérgio Moro para prejudicar Lula.

No livro os leitores encontrarão detalhes importantes sobre esses dois episódios. Aqui eu me concentrarei mais no caso da Siemens. A investigação contra essa empresa alemã:

“… teve início nos Estados Unidos e imediatamente atingiu repercussão mundial com a multiplicação de investigações em outros países. Tudo enquanto a Siemens era investigada por ter violado o embargo dos EUA contra o Irã, confirmando o estudo realizado por Kittrie.

É importante ressaltar que, embora os supostos esquemas de corrupção da Siemens não tivessem ocorrido em território norte-americano, tampouco a Siemens tivesse sede naquele país, o DOJ reivindicou jurisdição parcial no caso visto que a empresa estava listada na Bolsa de Valores dos EUA desde 2001 e, consequentemente, estaria, em tese, sujeita ao FCPA, a demonstrar o caráter extraterritorial deste armamento.

Outro fator que merece ser destacado é que, embora os fatos descritos na acusação fossem relativos a subornos e propinas, a acusação criminal do DOJ versou tão somente sobre violações e irregularidades sobre falta de controle ou violação na supervisão e conservação de informações nos registros ou livros contábeis, controles de auditoria, societários entre outros relativos a controles de auditoria empresarial, revelando a adoção da tática de overcharging vertical e horizontal.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, p. 104/106)

Antes de prosseguir retomo aqui um tema discutido nas observações que fiz sobre o primeiro capítulo do livro. Hannah Arendt disse que:

“…a Política só pode existir no espaço delicado criado voluntariamente para possibilitar a coexistência pacífica de pessoas desiguais. Esse espaço pode ser ampliado ou restringido. Quando ele é destruído resta apenas uma terra devastada entre dois campos inimigos e irreconciliáveis.”
https://jornalggn.com.br/justica/algumas-observacoes-sobre-o-capitulo-1-do-livro-lawfare/

O que ocorreu no caso da Siemens (a perseguição de uma empresa alemã para ferir interesses iranianos) confirma o que foi dito por mim ao fim daquele texto:

“A distinção entre guerra e paz (algo evidente no conceito de Política formulado Hannah Arendt) está deixando de existir, pois em diversas áreas da atividade humana a lógica do conflito militar, a dinâmica amigo/inimigo (presente na obra de Carl Shmitt, autor citado em Lawfare: uma introdução) passou a orientar o cotidiano numa sociedade que não está em guerra.”

Há décadas a política externa da Alemanha se subordina a três princípios fundamentais: valorização do multilateralismo; rejeição de soluções militares e; incentivo ao comércio internacional como uma forma de dissolver desconfianças e hostilidades. A Siemens é uma das maiores empresas alemãs. Portanto, devemos admitir a hipótese de que Berlim tolerou ou autorizou a empresa a manter comerciais como o Irã para romper o isolamento imposto àquele país. Isso pode ter levado os norte-americanos a empregar o FCPA não só para agredir a Siemens e atingir o Irã, mas principalmente para demonstrar sua hegemonia global ao Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.

Nem paz com a Alemanha, nem guerra contra o Irã: o Lawfare é uma cunha no coração da distinção clara entre duas situações mutuamente excludentes. Ao fazer uso da palavra durante o lançamento do livro comentado o ex-primeiro ministro de Portugal disse que os maiores prejudicados pelo Lawfare foram os próprios juízes https://jornalggn.com.br/artigos/lawfare-uma-introducao/. José Sócrates está certo. Mas ele se esqueceu de mencionar que o Lawfare também desacredita a diplomacia e os diplomatas que tentam conter a agressividade hegemônica da Casa Branca.

A guerra se caracteriza pela hostilidade em que predomina o uso da força (“…os fortes exercem o poder e os fracos sofrem o que devem…” como disse Tucídides ao narrar o argumento apresentado pelos atenienses para devastar a ilha de Melos). A paz é a ausência de conflito armado, algo que somente é possível se as disputas forem resolvidas de maneira legítima através da aplicação de regras preexistentes por órgãos judiciários nacionais e internacionais que atuem de maneira imparcial.

Na guerra não existem regras (aquelas que foram negociadas para proibir o uso de alguns armamentos, impedir a execução de prisioneiros e evitar agressões militares a populações civis são quase sempre ignoradas). Na paz as regras são aplicadas de maneira serena por autoridades investidas do poder/dever de dizer o Direito preservando a equidistância em relação as partes em conflito. Vem daí uma evidente semelhança entre o processo e o jogo.

“À primeira vista, o jogo poderia parecer o mais distante possível em relação ao direito, à justiça e à jurisprudência. Toda a esfera do direito é dominada pela mais total e implacável seriedade e pelos interesses vitais do indivíduo e da sociedade. Os fundamentos etimológicos da maior parte das palavras que exprimem idéias relacionadas com a lei e o direito estão sobretudo ligadas às noções de estabelecer, indicar, ordenar… Todas essas idéias parecem oferecer pouca ou nenhuma relação co a esfera semântica que deu origem aos termos lúdicos, e até lhe parecem ser opostas. Contudo, e conforme temos vindo constantemente lembrar, o caráter sagrado e série de uma ação de maneira alguma impede que nela se encontrem qualidades lúdicas.” (Homo Ludens, Johan Huizinga, Perspectiva, 8a edição, São Paulo, 2014, p. 87)

“Em todo e qualquer processo submetido a um juiz, sejam quais forem as circunstâncias, cada uma das partes está sempre dominada por um intenso desejo de ganhar sua causa. O desejo de ganhar é tão forte que nem por um só momento seria lícito esquecer o fator agonístico. Se isto não basta, por si só, para esclarecer as relações entre a jurisdição e o jogo, as características formais da prática do direito apresentam novos argumentos em nosso favor. A competição judicial está sempre submetida a um sistema de regras restritivas que, independentemente das limitações de tempo e de lugar, colocam firme e inequivocamente o julgamento no interior do domínio do jogo ordenado e antitético. A associação ativa entre o direito e o jogo, sobretudo nas culturas primitivas, pode ser analisada de três pontos de vista. O julgamento pode ser considerado como um jogo de azar, como uma competição ou como uma batalha verbal.” (Homo Ludens, Johan Huizinga, Perspectiva, 8a edição, São Paulo, 2014, p. 89/90)

As regras de um jogo não podem ser violadas sem que ocorra a destruição do espaço lúdico em que ele é jogado. O que é válido para o jogo também pode ser considerado válido no “campo jurídico”. Quando as regras jurídicas são corrompidas para “deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (vide a definição de Lawfare dada por Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim) o estigma da guerra contamina ou pode contaminar o cotidiano interno (casos Ted Stevens e Lula) ou externo (caso Siemens) tornando impossível a convivência pacífica entre os grupos sociais e entre os países. Onde não existem regras e árbitros e/ou nenhuma arbitragem justa e imparcial é reconhecida como válida as disputas tendem a se acirrar até que se tornem conflitos armados.

“…a ambição frenética e obsessiva, em qualquer campo onde se exerça, contanto que as regras do jogo e do jogo franco não sejam respeitadas, deve ser denunciada como um desvio decisivo que, no caso particular, retorna então à situação de início. Aliás, nada mostra melhor o papel civilizador do jogo do que os limites normalmente estabelecidos por ele contra a avidez natural. Admite-se que o bom jogador é aquele que sabe considerar com distanciamento, indiferença e algum fingimento, ou pelo menos com sangue-frio, os resultados desastrosos do mais dedicado esforço ou a perda de um desafio desmedido. A decisão do árbitro, embora injusta, é aprovada por princípio. A corrupção do agôn começa ali onde nenhum árbitro nem arbitragem são reconhecidos.” (Os jogos e os homens, Roger Caillois, Editora Vozes, Petrópolis, 2017, p. 91)

Ao dissertar sobre Lawfare Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim esbarraram nesses dois temas (a violação das regras do jogo e suas consequências agonísticas e; o rompimento da paz interna e internacional causada pela reintrodução da lógica da guerra com a utilização dos Sistemas de Justiça). Mas eles se recusaram a ir um pouco mais longe. Isso evidentemente demandaria um esforço intelectual maior do que aquele que foi necessário para introduzir a discussão do Lawfare no Brasil.

Recomendo ao leitor a leitura do livro e das conclusões extraídas pelos autores. Dou por findo meu trabalho de análise do último capítulo da obra. Minhas observações sobre os três primeiros capítulos de Lawfare: uma introdução estão à disposição no GGN https://jornalggn.com.br/justica/algumas-observacoes-sobre-o-capitulo-1-do-livro-lawfare/, https://jornalggn.com.br/politica/algumas-observacoes-sobre-o-capitulo-2-do-livro-lawfare-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/ e https://jornalggn.com.br/artigos/algumas-observacoes-sobre-o-capitulo-3-do-livro-lawfare/.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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