Algumas observações sobre o capítulo 3 do livro Lawfare, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O neoliberalismo jurídico pode ser considerado uma versão 2.0 do Direito Medieval europeu e chinês?

Algumas observações sobre o capítulo 3 do livro Lawfare

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Apesar de ter sido publicado há pouco tempo, o livro de Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim já está se tornando um fenômeno editorial. Segundo o defensor de Lula, Lawfare: uma introdução “…já está em 4º lugar em vendas de ebooks na Amazon, na categoria ‘Direito’”. O sucesso é merecido.

Aqui mesmo no GGN já fiz a análise de dois capítulos do livro [capítulo 1] e [capítulo 2]. Hoje farei algumas observações sobre o terceiro capítulo da obra. Antes disso porém, volto ao tema das externalidades para fazer uma observação que me parece pertinente.

Aqui mesmo no GGN afirmei que a Lava Jato existe no abismo entre o processo e a imprensa e que a operação “…não foi concebida no Brasil para operar segundo as regras brasileiras, mas para destruí-las.” Essa destruição do Direito não pode ser vista por causa da mídia ter se comprometido totalmente com o método lavajateiro. A união sagrada entre as duas pontas existenciais da operação (jurídica e jornalística) era feito através de vazamentos seletivos e da cobertura favorável às decisões proferidas por Sérgio Moro inclusive e principalmente quando elas eram ilegais.

A dimensão externa do lawfare fragilizou a legislação para que os heróis lavajateiros pudessem se colocar acima da Lei evitando que os benefícios dela fossem alcançados pelos réus e seus advogados. A gravidade deste fenômeno foi referido por mim da seguinte maneira:

“Desde tempos imemoriais a Lei escrita funciona como uma garantia da civilização. Os gregos gravavam suas Leis em pedra e colocavam-nas nos Templos à vista de todos. A destruição dos suportes das Leis equivaliam então à destruição das próprias Leis. Por isso, elas eram objeto de culto e só podiam ser removidas dos Templos quando fossem revogadas. As pedras contendo os textos legais não podiam ser facilmente manuseadas, razão pela qual uma face da pedra continha a Lei e ficava exposta a outra (voltada para o Templo) não continha nada.

Cada cidade-estado grega se limitava a aplicar suas Leis aos seus próprios cidadãos (e aos estrangeiros dentro dela, caso eles fossem admitidos na cidade). Fora dos seus limites do seu território a Lei de uma cidade não tinha validade e eficácia. As disputas entre as cidades eram resolvidas com o emprego da força bruta. Quando uma cidade invadia a outra e impunha uma nova Lei (como ocorreu durante a Guerra do Peloponeso), as Leis anteriores eram removidas dos Templos.

Desde 2015 os procuradores, juízes e desembargadores lavajateiros fizeram nossas Leis perder sua validade e eficácia dentro do Brasil. Elas continuaram escritas (nos livros, nos websites governamentais, nas sentenças, etc…), mas não podiam surtir efeitos. Mesmo quando as violavam, ignoravam ou contornavam empregando interpretações ‘alternativas’ os membros da operação se colocavam (e eram colocados) fora do alcance delas. As vítimas escolhidas pela Lava Jato foram tratados como se fossem inimigos externos da cidade-estado jurídico-midiática criada no interior do Estado brasileiro.

A Lei não escrita aplicada pela Lava Jato existia apenas nos chats sigilosos entre os membros do MPF e do Judiciário. Ao publicá-los, o The Intercept acabou com a farsa e obrigou o STF a fazer uma escolha letal. Para salvar a operação e seus operadores, o Tribunal terá que aplicar aquela estranha Lei escrita não escrita que garante tanto a seletividade penal quanto o sucesso da conspiração urdida por procuradores e juízes. Para salvar o Brasil e suas instituições, os Ministros do STF terão que sacrificar a operação e seus operadores no altar das Leis brasileiras.” https://jornalggn.com.br/noticia/o-paradoxo-da-lei-escrita-nao-escrita/

Peço perdão ao leitor por essa longa digressão. Ela se tornou absolutamente necessária, pois o tema do capítulo 3 do livro é justamente a fragilização da Lei nacional mediante diversas táticas que foram expostas pelos autores.

A primeira delas diz respeito à competência.

“A seleção de um órgão específico pode ser decisiva para que o lawfare tenha êxito, uma vez que a acusação ou a tese jurídica terá mais ou menos força a depender daquele que está encarregado de julgar a questão.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 74)

“No âmbito da Operação Lava Jato, por exemplo, com lamentável frequência, pessoas investigadas por fatos ocorridos em uma jurisdição específica foram ilegalmente processadas e julgadas por juízes manifestamente incompetentes i.e. sem jurisdição ou autoridade sobre o caso, nos termos das regras de regência.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 74)

Os autores citaram o caso do Triplex. Mas também mencionaram o do senador Ted Stevens, político norte-americano que foi julgado em Washington quando deveria ter sido processado no Alaska. Esse exemplo é importante, pois demonstra que o lawfare é um fenômeno que não está ocorrendo apenas no Brasil.

Infelizmente o livro não aprofundou o tema da violação das regras de competência. Numa próxima edição Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim terão a oportunidade de fazer isso. Afinal, a competência “ad urbe et orbi” exercida por Sérgio Moro no Brasil é semelhante àquela outorgada ao Papa pelo Direito Canônico. A semelhança entre o líder espiritual e temporal dos católicos e o Papa da Lava Jato fica muito mais evidente quando lembramos dois detalhes importantes: mesmo não tendo competência para formular a política externa, Sérgio Moro fez acordos nos EUA e os aplicou no Brasil; em determinado momento as decisões dele foram consideradas tão infalíveis quanto as Bulas Papais https://jornalggn.com.br/opiniao/raquel-dodge-decretou-na-lava-jato-habemus-papam/.

Essa semelhança entre o Direito Canônico e o método lavajateiro é importante. Ela demonstra uma evidente medievalização Direito brasileiro, fenômeno que atingiu seu clímax quando Deltan Dellagnol ousou denunciar Lula com base em suas convicções.

“As denúncias sem materialidade ou sem justa causa são o veículo por excelência do lawfare, a partir das quais se acionam as mais variadas armas (=normas jurídicas) em desfavor dos inimigos.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 80)

Em relação a essa questão, vale a pena lembrar o que disse um grande penalista brasileiro. Na época que a denúncia do Triplex foi feita e admitida, o professor Afrânio Jardim deu uma entrevista em que disse que “Os tribunais e o MP estão tão ruins que hoje ser legalista é ser revolucionário” http://porem.net/2017/12/04/os-tribunais-e-o-mp-estao-tao-ruins-que-hoje-ser-legalista-e-ser-revolucionario/.

Os excessos punitivos e espetáculos judiciários promovidos contra Lula serviram, obviamente, de pano de fundo para a reflexão do venerável penalista carioca. Afrânio Jardim parece endossar a tese central defendida por Rubens Casara em seu novo livro:

“Hoje, percebe-se claramente, que o Sistema de Justiça Criminal se tornou o locus privilegiado da luta política. Uma luta em que o Estado Democrático de Direito foi sacrificado. Não há como pensar o fracasso do projeto democrático de Estado sem atentar para o papel do Poder Judiciário na emergência do Estado Pós-Democrático. Chamado a reafirmar a existência de limites ao exercício do poder, o Judiciário se omitiu, quando não explicitamente autorizou abusos e arbitrariedades – pense, por exemplo, no número de prisões ilegais e desnecessárias submetidas ao crivo e autorizadas por juízes de norte a sul do país.” (Estado Pós-Democrático, Rubens R. R. Casara, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2017, p. 127/128)

Casara não usa o termo lawfare, mas suas reflexões se aplicam perfeitamente ao fenômeno estudado por Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim especialmente quando levamos em conta que:

“O uso de prisões preventivas ilegais, mantidas por meses ou anos a fio sem que haja elementos concretos para sua justificação, é um meio de tortura para o acusado e potencial ‘colaborador’. Nas palavras de Antonio Claudio Mariz de Oliveira ‘com a Lava Jato, surge outra prisão preventiva, que é a prisão para delação. Esta tem uma pequena diferença em relação à tortura: na tortura, você fala mais rápido porque apanha. Na prisão preventiva, ainda demora um pouco mais.’” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 81)

Reproduzo abaixo as palavras de Deltan Dellagnol sobre Bernardo Freiburghaus, que foram reveladas pela Vaja Jato e citadas no livro analisado “Acho que temos que aditar para bloquear os bens dele na Suíça. Conta, Imóvel e outros ativos. Ir lá e dizer que ele perderá tudo. Colocar ele de joelhos e oferecer redenção. Não tem como ele não pegar”. (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 82).

A chantagem como método processual e o uso de coação irresistível para obtenção da “colaboração voluntária desejada” são incompatíveis com os princípios constitucionais do Direito Penal. Todavia ambos se tornaram um lugar-comum porque a imprensa ajudou os heróis lavajateiros a fragilizar a legislação brasileira.

Nenhuma manifestação de vontade pode ser considerada livre e voluntária quando o indivíduo sofre algum tipo de coerção física ou psicológica. Os procuradores e juízes brasileiros não deveriam se rebaixar ao padrão jurídico dos gangsters, mas foi exatamente isso o que ocorreu. Especialmente quando “… a dinâmica de celebração de acordos de delação, com imposição de condições (obrigar o acusado a desistir de direitos e contar narrativas preparadas) para ganhar eventuais benefícios – e com visibilidade midiática, tratando um deletado como condenado – é uma verdadeira inquisição contra os inimigos declarados do Estado. As pessoas se tornam culpadas da noite para o dia com base em palavras, muitas vezes controversas e desencontradas.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 85).

Nesse ponto, gostaria de reproduzir uma vez mais a frase “As pessoas se tornam culpadas da noite para o dia com base em palavras, muitas vezes controversas e desencontradas.” Ela tem o mesmo significado que outra que se tornou famosa. Refiro-me obviamente a frase do Almirante Othon Pinheiro “o sujeito escreve que é aquilo e vira verdade…é muito difícil viver num sistema em que o camarada diz uma coisa e vira verdade”. Essa questão é importante, razão pela qual reproduzo aqui algumas considerações que fiz sobre a entrevista desse herói brasileiro:

“No sistema penal moderno, ‘verdade’ é aquilo que foi devidamente comprovado nos autos por provas colhidas sob o crivo do contraditório. As provas que podem ser feitas no processo são aquelas prescritas na legislação. Entre as provas dos fatos juridicamente relevantes (verdade) não se encontra a convicção de quem acusa o réu.

A razão para esta exclusão é singela. Durante a Idade Média, toda acusação acabava resultando em condenação por causa da distinção evidente entre os pólos do processo. O acusador desfrutava do prestígio de ser o defensor da fé e a acusação rebaixava o acusado à condição de alguém que havia cometido heresia ou desafiado a autoridade da igreja. Como os julgadores eram todos religiosos, obviamente eles naturalmente pendiam para o lado da acusação.

Casos de objeção de consciência (como o que ocorreu durante o julgamento de Joana D’Arc, em que um clérigo se recusou a participar da farsa ao notar que Pierre Cauchon havia condenado a acusada antes de colher as provas) eram raros. De fato, ao absolver um réu que havia sido condenado pelos outros julgadores o próprio julgador poderia atrair para si a acusação de estar favorecendo a heresia ou protegendo hereges (este tema foi explorado com maestria por Umberto Eco no romance O Nome da Rosa).

O moderno Processo Penal rejeita a convicção do acusador como prova do crime atribuído ao réu. Esta é uma afirmação irrefutável e corroborada pela constitucionalização dos princípios que garantem o devido processo legal, a ampla defesa, a inexistência de juízo de exceção, a tipificação prévia dos crimes, a invalidade de provas ilícitas, a presunção de inocência do réu, etc… Estes princípios obrigam o órgão de acusação a produzir provas lícitas (testemunhais, documentais e periciais) de que o acusado cometeu o crime que lhe foi imputado.

Compete ao juiz da causa avaliar de maneira independente e isenta a prova que foi produzida nos autos. Ao julgar o processo ele deve cumprir e fazer cumprir a Lei e os princípios constitucionais de Direito Penal. O julgador não deve atribuir valor probatório à convicção do acusador de que o réu é culpado, pois se fizer isto ele inevitavelmente irá introduzir características do Direito Medieval que são expressamente rejeitadas pelo moderno Direito Penal. Quando o juiz transforma a crença do acusador em prova da culpa (como ocorreu nos casos do Almirante Othon e de Lula), o réu é rebaixado à condição de herege e aquele que o acusou passa a desfrutar dos mesmos poderes e privilégios que eram outorgados aos encarregados da ortodoxia religiosa.”

No início do livro os autores afirmam que se esforçaram para “…construir uma nova definição de lawfare, a qual, conforme veremos mais adiante, embora dialogue com as demais definições, com estas nãos e confunde.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 85).

A confusão entre lawfare e o Direito Medieval me parece inevitável e precisa ser desfeita (ou eventualmente estudada de maneira mais sistemática). Sob o verniz de novos conceitos o que nós presenciamos foi uma verdadeira “caça as bruxas” em que a única regra observada era a necessidade de não deixá-las escapar da tortura e/ou da fogueira.

O capítulo 3 do livro traz informações detalhadas sobre conceitos importados dos EUA: overcharging e carrots and sticks. Confesse e sua alma será salva. Persista na heresia e sua alma queimará no Inferno depois que seu corpo for queimado na fogueira.

“No Brasil, os comunicadores sociais, jornalistas, blogueiros que levantam a voz contra o lawfare têm sido alvo de numerosas ações judiciais movidas pelos membros do sistema de Justiça, das quais tem resultado a retirada de conteúdos, apreensão de materiais e multas elevadas, ferindo gravemente a liberdade de expressão.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 92)

Purificar e destruir. O lawfare se propaga das vítimas escolhidas para aquelas que ousam defendê-las em público ou nos Tribunais. Nesse sentido, não chega a causar surpresa que os próprios advogados de Lula tenham se tornado vítimas de lawfare.

“No caso de Lula, a equipe de defesa técnica do ex-Presidente Lula da Silva, que envolve dois autores dessa obra, foi monitorada pelo Juízo da Operação Lava Jato. Um dos sócios fundadores do escritório era considerado o principal advogado do caso, com informações estratégicas e privilegiadas da defesa. Em 20 de fevereiro de 2016, o então juiz Sérgio Moro justificou a autorização pra a vigilância em tempo real do advogado por ser notoriamente um amigo de longa data de Lula. Seis dias depois, os promotores concordaram com a justificativa e acrescentaram o fato de que esse advogado também agiu judicialmente em vários procedimentos para Lula e sua família.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 97)

A perseguição aos advogados num contexto de Lawfare tem uma dupla finalidade. Vulnerar as prerrogativas profissionais deles para liquidar qualquer possibilidade de êxito da defesa. Isso fulmina mortalmente o direito do réu ao devido processo legal. A perseguição aos jornalistas e bloqueiros pressupõe a necessidade de impedir qualquer percepção pública diferente daquela que foi construída pelos protagonistas do lawfare em favor da destruição do inimigo que eles escolheram.

“Uma das pautas de mais repercussão e com extraordinária capacidade de agregar apoio tanto midiático quanto popular é a corrupção. As leis anticorrupção e suas investigações criam verdadeiros espetáculos através da mídia que fragilizam os acusados e criam o cenário perfeito para o lawfare.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 94)

Uma vez mais é preciso dizer que o lawfare expande o abismo entre a realidade e a ficção, entre a Lei e sua eficácia, entre o Direito e o simulacro que é colocado em seu lugar com ajuda da imprensa. Nesse sentido ele não fragiliza apenas a pessoa do acusado. A legislação que o protegeria (e que protegeria seus defensores) também é necessariamente fragilizada.

A corrupção deve ser combatida. Mas isso pode e deve ser feito dentro da Lei. Não é isso o que ocorre no lawfare. Todas as táticas mencionadas pelos autores do livro (algumas delas foram importadas dos EUA e não tem paradigma na legislação brasileira) podem ser consideradas pervertidas. Corromper os princípios constitucionais do Direito Penal para combater o crime não é algo legítimo, aconselhável e/ou desejável. Numa sociedade em que as regras jurídicas podem ser impunemente empregadas para deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo não há espaço para convivência pacífica entre homens desiguais. Portanto, quando a roda do mundo girar os próprios protagonistas do lawfare poderão se tornar vítimas do método que empregaram.

Numa sociedade plural e democrática como a brasileira, o lawfare somente conseguiu ter êxito porque uma única interpretação dos fatos e da Lei (aquela que levava à destruição do inimigo) conseguiu se impor como unívoca. Qualquer dissidência foi rechaçada, repelida e ferozmente combatida. Não foi por caso que Sérgio Moro acusou Zanin de ter adotado uma atitude beligerante. O que ele esperava? Que o advogado deixasse Lula indefeso e à mercê da conspiração urdida pelos protagonistas do lawfare?

Nesse ponto sou obrigado a discordar de uma afirmação feita no livro. Os autores dizem “Na guerra de informação não há ética, nem se pode descuidar dos menores detalhes na segurança da informação.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 97).

Desde que começaram a defender Lula, Cristiano Zanin e Valeska Martins tem se portado de maneira exemplar. O livro deles evidencia esse fato. Com ajuda de Rafael Valim, ambos seguem combatendo o fenômeno lawfare sem atacar pessoalmente os vilões lavajateiros. Nesse capítulo 3 do livro não existe nenhuma tentativa dos autores de deslegitimar as normas legais que garantem aos procuradores e juízes suas prerrogativas funcionais.

Ao abordar o método “cenouras e porretes”, os autores explicam como as autoridades norte-americanas aplicam o FCPA para coagir as empresas a mudarem seu comportamento aceitando punições sem que seja necessário ajuizar ações judiciais (NPA, non-prosecution agreement; DPA, deferred prosecution agreement; plea bargain).

“O maior problema é que uso estratégico e agressivo – no âmbito local e internacional dessa legislação [os autores estão aqui se referindo ao FCPA] deveria passar por revisão judicial constante, o que todavia, não ocorre.” (Lawfare: uma introdução, Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim, editora Contracorrente, São Paulo, 2019, p. 89)

Sempre que um caso não pode ser submetido ao Judiciário ocorrem duas coisas: o esvaziamento da jurisdição (com uma evidente fragilização dos princípios jurídicos que garantem o devido processo legal) e consolidação de soluções extrajudiciais que interessam mais aos órgãos de acusação e/ou às pessoas, empresas e Estados que competem com as vítimas do lawfare. Esse clima de “anything goes” mencionado Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim também parece estar relacionado ao fenômeno referido por Rubens Casara.

E já que estamos falando das consequências institucionais do neoliberalismo nunca é demais citar Wolfgang Streeck:

“Se o capitalismo de consolidação do Estado já nem sequer consegue criar a ilusão de um crescimento distribuído de acordo com a justiça social, então chegou o momento em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de separar-se. A saída mais provável, atualmente, seria a operacionalização do modelo social hayekiano da ditadura de uma economia de mercado capitalista acima de qualquer correção democrática. A sua legitimidade dependeria do facto de aqueles que constituíram outrora, o povo do Estado terem aprendido ou não a confundir justiça de mercado com justiça social e de considerarem ou não parte de um povo do mercado unido. Além disso, a sua estabilidade exigiria instrumentos eficazes que permitisses marginalizar ideologicamente, desorganizar politicamente e controlar fisicamente aqueles que não quisessem aceitar a situação. Com as instituições de formação da vontade política neutralizadas do ponto de vista econômico, a única coisa que restaria àqueles que não quisessem submeter-se à justiça de mercado seria aquilo a que em finais dos anos 90 se chamava ‘protesto extraparlamentar’: emocional, irracional, fragmentado, irresponsável – precisamente aquilo que é de esperar quando os caminhos democráticos de articulação de interesses e de esclarecimento das preferências ficam bloqueados, porque conduzem sempre aos mesmos resultados ou porque os seus resultados são indiferentes para ‘os mercados’.

A alternativa a um capitalismo sem democracia seria uma democracia sem capitalismo, pelo menos, sem o capitalismo que conhecemos. Ela seria a outra utopia, concorrente da utopia hayekiana. Porém, ao contrário desta, não estaria na linha da tendência histórica atual, exigindo, pelo contrário, a sua inversão. Por isso e devido ao enorme avanço em termos de organização e concretização da solução neoliberal, assim como ao medo daquilo que é incerto, associado, inevitavelmente, a qualquer mudança, hoje esta alternativa parece completamente irrealista. Esta também pediria da experiência de que o capitalismo democrático não cumpriu a sua promessa – contudo, a culpa não seria atribuída à democracia e sim ao capitalismo. O objetivo desta alternativa não seria garantir a paz social através do crescimento económico crescente, mas sim conseguir melhorar a situação dos excluídos do crescimento neoliberal, se necessário, à custa da paz social e do crescimento.” (Tempo Comprado – A crise adiada do capitalismo democrático, Wolfgang Streeck, editora Actual, Lisboa, Portugal, 2013, p. 252/253)

Assim como o neoliberalismo neutraliza a democracia retirando-lhe sua substância e o Estado pós-democrático transforma o Sistema de Justiça Criminal num locus privilegiado da luta política o lawfare corrompe e fragiliza o Direito Público para que a racionalidade do mercado possa ser transformada na única alternativa disponível para composição dos conflitos. Todavia, a essência do neoliberalismo jurídico não é a dissolução da tensão criada pelo conflito e sim o seu acirramento em virtude da predominância dos interesses do mercado (ou de alguns agentes que o dominam) como se a economia ou os economicamente poderosos nunca pudessem ser submetidos a qualquer interferência estatal ou judiciária.

Muito embora as execuções fossem realizadas nas praças e mercados, durante a Idade Média a distribuição de justiça não era submetida a qualquer princípio de Direito Público que nós conhecemos. A igualdade perante a Lei não era uma realidade. Muitas vezes o crime era inventado durante o processo, cuja finalidade era sem dúvida alguma a destruição do inimigo eleito pelo príncipe, pelo senhor feudal, pelo Bispo ou pelo Papa.

Há uma evidente semelhança entre a distribuição de justiça na Europa medieval e a que ocorria na China na era da dominação mongol. No começo do século XIV, os chineses foram divididos em quatro classes com diferentes distintos: Mongóis; Se-mu jen (pessoas de condição especial, ou seja, turcos, persas, sírios e outros estrangeiros aliados dos mongóis); Han-jen (chineses habitantes da China setentrional, incluindo populações de outras culturas asiáticas) e; Man-tzu (bárbaros meridionais, os habitantes do antigo reino Sung).

“La desigualdad de decretos que separaba a las diversas clases de población está muy claramente documentada por las leyes, reglamentos y casos litigiosos contenidos en compilaciones jurídicas como el Yüan-tien chang.” (El imperio chino, Herbert Franke e Rolf Truzettel, Siglo XXI de España Editores S.A., Madrid, 1973, p. 223)

Os procuradores e juízes da Lava Jato criaram distinções entre eles mesmos e suas vítimas. Eles também criaram distinções ilegais entre as pessoas que foram perseguidas e as que seriam protegidas pela operação. A separação das populações em classes diferentes submetidas a regras jurídicas distintas fica evidente quando levamos em conta o Acórdão mencionado pelos autores de Lawfare: uma introdução (p. 92/93). O TRF-4 autorizou os procuradores e juízes lavajateiros a fazer algo que não poderia ser feito por outros membros do Sistema de Justiça (agir impunemente a margem da legalidade ou fora dos limites dela).

O neoliberalismo jurídico pode ser considerado uma versão 2.0 do Direito Medieval europeu e chinês? É possível encontrar as raízes medievais do lawfare no Directoriom Inquisitorum ou no Yüan-tien chang? Numa próxima edição do livro Cristiano Zanin, Valeska Martins e Rafael Valim poderão se aprofundar nesses temas.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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