Samba de Dandara: 10 anos de um quilombo do samba, por Daniel Costa

Em comemoração aos dez anos de caminhada, o grupo acaba de lançar nas plataformas digitais o álbum, Samba de Dandara convida Raquel Tobias

Foto Daniel Oliveira

Samba de Dandara: 10 anos de um quilombo do samba.

por Daniel Costa

Para aqueles que têm a mínima familiaridade com o universo do samba ou conhece a sua história, não há como ignorar o protagonismo das mulheres para a sua consolidação enquanto genuína manifestação popular, basta ver o importante papel desempenhado por figuras como a tia Ciata de Oxum no Rio de Janeiro e madrinha Eunice em São Paulo. Em um campo onde o machismo ainda impera, a narrativa hegemônica em alguns momentos colocou essas personagens em segundo plano, como se fossem responsáveis apenas pela organização das festas, dos comes e bebes e afins. Porém, nos últimos anos esses discursos vêm sido colocados em xeque, graças ao trabalho de inúmeras pesquisadoras e sambistas que têm lutado para reafirmar o protagonismo dessas personagens ao longo do tempo. Voltando a tia Ciata e madrinha Eunice, basta dizer que as duas tiveram grande importância nas articulações dos sambistas com as autoridades do Estado e personagens chaves da cultura, como também através dos cuidados espirituais dos sambistas; tia Ciata, feita no candomblé de Ketu pertencia à mesma linhagem de figuras seminais que desembarcaram no Rio de Janeiro na virada para o século XX, como mãe Aninha, João Alabá e Cipriano de Abedé; já madrinha Eunice, apesar de católica devota era versada e escolada na quimbanda, daí o fato da intrínseca ligação entre a escola nascida na região do Glicério e o Exu Veludo, entidade cultuada por Eunice e que seria fundamental para a proteção da escola.

Exemplos de mulheres que tiveram que enfrentar diversas batalhas para firmar seu nome em um cenário dominado por homens não faltam, caso muito conhecido é o da cantora e compositora Dona Ivone Lara, que no início de sua carreira diante da resistência dos compositores do Império Serrano em lhe ceder espaço, apresentava seus sambas como sendo de autoria de seu primo, Antônio Fuleiro. Vencida a resistência, Dona Ivone é admitida na ala de compositores da escola e apresenta para o carnaval de 1965 o samba Os Cinco Bailes da História do Rio, em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau, até hoje considerado um dos melhores sambas do carnaval carioca.

Tia Ciata, madrinha Eunice, Dona Ivone Lara e tantas outras mulheres que lutaram pela afirmação do samba, literalmente abrindo veredas em um cenário dominado por homens podem ser consideradas o baobá onde, Maíra da Rosa, Laís Oliveira, Mariana Rhormens, Amanda Lima, Tati Salomão, Anália Alves e Kamilla Alcântara buscam força e inspiração para o Samba de Dandara, grupo que completa dez anos de existência em julho, firmando seu nome como uma das grandes referências do samba de São Paulo e do Brasil. Como um verdadeiro quilombo, as mulheres do Samba de Dandara congregam ao seu redor desde mestras do samba como Maria Helena, Sahra Brandão, Bernadete, vó Suzana e compositoras e intérpretes contemporâneas como Carol Nascimento, Aninha Batucada, Karina Adorno, Anná e muitas outras, promovendo além de uma verdadeira troca de saberes, também uma articulação coletiva abrindo espaço para que esses grandes nomes das rodas de São Paulo ganhem cada vez mais projeção.

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Em comemoração aos dez anos de caminhada, o grupo acaba de lançar nas plataformas digitais o álbum, Samba de Dandara convida Raquel Tobias, o disco que poderia ser apenas mais um daqueles registros de apresentações ao vivo que aparecem de baciada por aí, surge para os ouvintes como o encontro de duas grandes potencias em sua melhor forma; de um lado o Samba de Dandara e do outro Raquel Tobias; uma das grandes intérpretes do samba de São Paulo. A unidade entre Raquel, Maíra da Rosa e o restante do grupo chega a impressionar, o entrosamento e naturalidade são tamanhos que se a pessoa estiver ouvindo o grupo pela primeira vez poderá achar que Raquel é mais uma integrante. Diante de tudo que foi escrito sobre o Samba de Dandara ao longo do texto, podemos encarar o álbum não apenas como um lançamento comemorativo, mas também a afirmação de um projeto, um programa onde o objetivo principal além do fortalecimento do samba, é colocar a mulher no centro da roda, não mais como a corista e sim como aquela que canta, compõe e executa a canção.

Carregando o samba como verdadeiro escudo o álbum abre com Canta, samba de autoria da cantora e compositora Carol Nascimento, música certeira, daquelas que serão cantadas nas rodas por anos a fio; o disco segue com Artimanhas, samba de Raquel Tobias e As esquinas, parceria também de Raquel Tobias, Robson Batuta e Panquinha. Lá Vai a Bala, samba do Alemão do Camisa e Rodrigo Schumacker é um verdadeiro desabafo, retrato do momento atravessado pelo Brasil, onde quem tinha que cuidar fica só observando, especialmente em relação a população das periferias, alvo das balas e do discurso de ódio, aqueles que estão sempre na alça de mira. Após o choque de realidade trazido pela interpretação de Raquel Tobias, temos a leveza de Bem Te Vi, parceria de Lucas Laganaro, Aninha Batucada e Caio Oiak que traz para os ouvintes através das imagens contidas na letra, as reminiscências de um interior que talvez nem exista mais, e a influência do samba rural de mestres como Toniquinho Batuqueiro.

O álbum ainda conta com as faixas Pé de Moça, canção de Maíra da Rosa, Mariana Rhormens e Felipe Matheus, uma verdadeira ode a presença das mulheres no samba; Estrela Negra, parceria de  Laís Oliveira, Karina Adorno e Renato Dias, uma homenagem ao samba de bumbo, os nossos tambores e nossa ancestralidade e Quilombo, música de Maíra da Rosa e Jacke Severina.

O caminho aberto pelas integrantes do Samba de Dandara ao longo dos últimos anos foi imenso, porém há muito a ser feito ainda, como Maíra canta na canção Quilombo: “já fizeram tanto pra eu tombar, mas eu não tombo“, a frase cabe para todas as mulheres que desde a velha tia Ciata e madrinha Eunice, passando por diversas gerações vem lutando para ocupar cada vez mais os espaços do mundo do samba.

Daniel Costa é graduado em história pela UNIFESP, compositor, e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

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