A partida do centenário Timoteo Tocador, por Eduardo Pontin

Piauiense aprendeu os segredos da sanfona antes da consagração de Luiz Gonzaga

Foto: Francisca Sousa

Série Piauí Cultura Regional (XVII)

A partida do centenário Timoteo Tocador

por Eduardo Pontin

Com 100 anos completos, Timoteo Tocador (Timoteo Sá, 1923-2023), o maior sanfoneiro da região de Floresta do Piauí, se despediu. Timoteo animou casamentos e festas memoráveis ao longo de todo o século XX. Nas décadas de 1940 e 1950, quando iam colocar uma festa, logo o povo perguntava: “é Timoteo?”, “é”, “então eu vou!”. Os antigos de Floresta ainda hoje dizem: “Ali foi Tocador falado!”. Já imaginou o que era ser sanfoneiro antes de Luiz Gonzaga se consagrar no cenário cultural brasileiro, em 1947? Mais ainda, como devia ser o tocador do fole de 8 baixos, sem os modernos e imponentes teclados imortalizados por Gonzagão?

Era uma época de grande privação material, mas também de momentos com grande alegria e só quem viveu as primeiras décadas do século XX pode contar essa história. Naqueles tempos, não havia nada no mundo que se comparasse a uma festa de forró no interior nordestino. No dia da função, o dono da festa cedo começava a aguar o terreiro, mode a poeira não subir no momento em que os casais começassem a dançar.

O sanfoneiro e os bateristas tinham lugar de destaque e ficavam confortavelmente instalados dentro da sala. Ao cair da noite, as pessoas começavam a chegar. No Centro-Sul do Piauí, gente de todo canto aparecia: Carnaibinha, Patos, Riacho, Cerca Véa, Macambira, Volta, Volta do Campo Grande, Limoeiro, Cajazeiras, Santo Inácio, Simplício Mendes, Picos e tudo quanto era quebrada daquele sertão quente, porém humano, demasiadamente humano.

Timoteo em momento festivo | Acervo da família

Timoteo Sá, nascido no ano de 1923, foi desses sanfoneiros que se formaram antes da consagração de Luiz Gonzaga e que acompanharam a evolução da sanfona enquanto instrumento musical: “Comecei tocá não existia sanfona, era umas monca de 8 baixo, toquei muitos anos nelas. Aí quando apareceu sanfona eu pissuí todo tamanho de sanfona”.

Durante a década de 1930, ainda garoto, uma das labutas dadas aos meninos do interior do Piauí era a de vigiar a lagoa de arroz, para espantar passarinhos e aquela plantação vingar. Timoteo ia a essas vigias empunhando uma monca, tipo de sanfona primitiva, e matava o tempo no esforço de conseguir desvendar os segredos daquele instrumento encantador. Resultado: a família de Timoteo perdeu aquela safra de arroz, porém, a região da Carnaibinha, hoje município de Floresta do Piauí, ganhou o maior sanfoneiro de sua história.

Seu Timoteo contava que se aprofundou mesmo em seu instrumento com um tocador dos lados de Jenipapo, hoje município de Itainópolis, chamado Nicolau. E esse Nicolau tinha história. Timoteo contava que em certa festa, Nicolau foi tocar num lugar onde o povo dançava num espaço separado, com porta trancada, e, em meio a gaitadas e algazarras, diziam: “Arrocha, Nicolau!”. Curioso com aquela situação, Nicolau se levantou tocando e foi brechar, quando avistou pessoas dançando com a cabeça no chão e os pés pra cima. Então Nicolau falou aflito ao baterista que lhe acompanhava: “Manél, tamô no inferno!”. A partir daí, enquanto Nicolau tocava, rezava incessantemente em silêncio. Depois, Nicolau foi convidado para comer e a refeição oferecida era chumbo derretido. Na hora do pagamento, o cão abriu uma maleta cheia de dinheiro e disse a Nicolau que pegasse o quanto quisesse. Nicolau e Manél encheram os bolsos e saíram carregados. Porém, ao voltarem por cá, o tal dinheiro não prestou.

Verdade ou mentira, Seu Timoteo contava essa história do alto de seus 98 anos, ainda muito impressionado, conferindo boa carga de verdade à sua fala e aos seus gestos: “Nicolau tocava, rapaz! foi o maior”. Eu que não duvido de nada!

Abençoado com o dom da música, Timoteo Tocador alegrou muitas festas de casamento nas quebradas do Sertão do semiárido piauiense, mais especificamente nas terras compreendidas em Floresta do Piauí. Como quase todos tocadores de sanfona de 8 baixos, Seu Timoteo não cantava. Mas nem precisava, já que os relatos dos mais velhos de Floresta dão conta de que sua sanfona chega falava, tamanha a precisão com que executava as notas musicais de cada cantiga.

Timoteo foi nascido e criado no povoado rural Olho D’água, cerca de 3 léguas do centro da cidade de Floresta.

Casa no povoado Olho D’Água onde Timoteo passou os últimos anos de sua vida | Foto: Francisca Sousa

Pois em outubro de 2021, Seu Timoteo Tocador, então com 98 anos, mesmo com grandes limitações físicas, acompanhado de sua bisneta Kauana, foi o primeiro a chegar no Colégio Municipal Prof. Antônio José da Silva, no Centro de Floresta do Piauí, para a cerimônia de fundação da Academia Florestense de Cultura Popular. Naquele dia, Timoteo Tocador foi o mais velho Mestre de Cultura diplomado como Imortal. Era o reconhecimento de toda uma vida dedicada à música popular brasileira, em funções no interior onde a poeira subia e o couro comia.

Juninha Araújo, Secretaria de Educação do Município de Floresta e Timoteo Tocador na cerimônia de fundação da Academia Florestense de Cultura Popular (2021)

No dia da viagem de Timoteo ano passado, na data do nascimento do menino Jesus, Mestre Gabiru de Floresta, que tocou triângulo muitas vezes mais Seu Timoteo e foi certificado pelo governo do Estado como Patrimônio Vivo do Piauí, proferiu fala emocionada: “O nosso sanfoneiro mais quente do Brasil foi sepultado hoje, Timoteo!”. Timoteo partiu feliz, cercado dos cuidados de seus filhos, netos e bisnetos, que moravam ao seu redor no distante Olho D’água.

Com 100 anos, Timoteo pertenceu a geração que presenciou a vitória do Baião (também chamado de Forró Pé de Serra) como gênero musical brasileiro e que contribuiu expressivamente para isso. Afinal, se o Baião triunfou na cidade grande, muito se deve às funções realizadas no sertão nordestino. E Timoteo Tocador alimentou a chama do Baião em seu torrão em muitas noites iluminadas por um facho de luz, mantendo viva na alma de todas as pessoas que dançavam ao som de sua monca a alegria que só uma festa de Forró no interior nordestino pode proporcionar. Missão cumprida, Seu Timoteo!

Uma das últimas vezes em que Timoteo empunhou uma sanfona num Pé de Serra em sua casa. Ao fundo, seus filhos Silvina e Valter e ao seu lado, Adãozinho Aboiador | Foto: Francisca Sousa

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