O Direito no Brasil por seus predadores, por Lenio Luiz Streck

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – “Já não se discute Direito e, sim, uma péssima teoria política de poder. Ou seja, já não fazemos Direito: praticamos lawfare”, é a constatação do jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito, Lenio Luiz Streck. A reflexão é parte das memórias de 29 anos da Constituição Federal, um dia já denominada Constituição Cidadã.
 
Menos por sua teoria e mais pelas interpretações dissimuladas, a Constituição hoje representa ponto de discussão sobre quem a pratica: “quando o Direito é dominado por seus predadores (moral, política e econômica), transformando-se facilmente em instrumento para a prática de lawfare, os céticos e torcedores (para usar esses dois “modelos” como protótipos) têm terreno fértil para se estabelecerem”.
 
Por Lenio Luiz Streck
 
 
No Conjur

Algumas coisas que vem acontecendo me levam a escrever esta coluna. Assim, por exemplo:

1. O encontro com a estudante que gerou a coluna da semana passada (ver aqui) que demonstra o que foi feito com o Direito, isto é, o Direito foi transformado em um mero instrumento de poder e não em garantia contra o arbítrio.

2. A notícia de o Diretório Acadêmico de Direito da Unicap exigindo (sic) que fosse cancelado um evento que tratava da Revolução Russa, que mostra que formamos, pelo Brasil afora, uma geração de reacionários, fascistas e aprendizes de fascistas, afora milhares de analfabetos funcionais (é isso que nossas faculdades estão formando e forjando).

3. O discurso do general Mourão falando em intervenção militar, que é autoexplicativo.

4. O artigo de Wladimir Safatle que, querendo criticar, legitima a torta interpretação do artigo 142 da Constituição Federal, mostrando como setores da esquerda continuam desdenhando do Direito (pelo jeito, continuam pensando que o Direito é superestrutura…).

5. Julgamentos dos tribunais superiores ignorando parcial ou totalmente os limites (sintático-semânticos) do texto da Constituição que fez 29 anos, mostrando que parcela do judiciário continua achando que é vanguarda iluminista do país e que pode corrigir o Direito por juízos morais e políticos.

6. A absurda prisão do reitor Cancellier (ele foi preso por obstrução da justiça), seu suicídio e a absoluta falta de autocrítica da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e Justiça Federal sobre o assunto, mostrando que a prisão se transformou em instrumento banal e eivado de irresponsabilidade.

7. O constante uso de lawfare, que significa “o uso ou mau uso do Direito como substituto de meios tradicionais para que se atinja um objetivo operacional”.[1] Peço que os leitores meditem sobre esse conceito.

Ou seja, cruzando os dados (e os dedos), transformamos o direito em lawfare: autoridades usam-no — consciente ou in conscientemente — para fins morais e políticos (nem discuto a boa ou má intenção dos objetivos morais). Eis a tempestade perfeita… Por exemplo, denúncias anônimas são causa para ordens de invasão domiciliar; conduções coercitivas são feitas à revelia da lei; prisões cautelares são banalizadas; prisões preventivas sem prazo para terminarem… Defender garantias passou a ser mal visto… até por parte da comunidade jurídica, que se transformou em torcedora. Pior: estão transformando o problema da segurança pública em uma questão política, pasmem, uma questão de segurança nacional. Assim, eis o caldo: de um lado, a insegurança, o discurso da impunidade, querendo atingir a grande massa; de outro, a demonização da política. Pronto: solução — “já podemos acabar com a democracia; precisamos de ‘lei e ordem’ (ou algo nesse tom). Tempos difíceis… Discursos perigosos se multiplicam, dia a dia.

No plano do Direito, quando chegamos aos 29 anos da Constituição, parece que estamos desaprendendo. Transportamos as Erínias, das Eumenides (Oresteia, Ésquilo), para dentro da sala de aula, das redes sociais e para dentro das instituições. Já não se discute Direito e, sim, uma péssima teoria política de poder. Ou seja, já não fazemos Direito: praticamos lawfare.

O ponto é que, quando o Direito é dominado por seus predadores (moral, política e econômica), transformando-se facilmente em instrumento para a prática de lawfare, os céticos e torcedores (para usar esses dois “modelos” como protótipos) têm terreno fértil para se estabelecerem. Fincam raízes e não mais saem. Torcedores não se importam com princípios. Céticos não acreditam neles.

Torcedores querem apenas que a lei satisfaça seus anseios. Torcedores são adeptos de lawfare. Mesmo que não saibam o que seja isto. Céticos dizem que não existem respostas certas ou respostas melhores do que outras. Mesmo que não saibam a importância da autonomia do Direito. Claro: embora céticos, eles acreditam em alguma coisa: a de que só eles têm razão acerca do seu ceticismo, porque seu ceticismo não deixa de ser uma postura meramente ideológica. Basta repetir que não há verdades, e o Direito legitima que se diga qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Céticos e torcedores, querendo ou não, praticam lawfare, porque usam o Direito para fins políticos e morais (e econômicos). Direito, para eles, é guerra. Vale a tática “amigo-inimigo”. Primeiro julgo, depois procuro entender porque isso foi feito. Ceticismo, pragmaticismo e coisas desse gênero são condição de possibilidade e, ao mesmo tempo, consciente ou inconscientemente, os maiores aliados do Direito enquanto teoria política do poder. O establishment agradece. Ou os manipula.

Céticos e torcedores podem censurar, destruir reputações e… até matar, se é que me entendem…. Vantagem deles: não precisam explicar nada. Porque são “o poder”.

Primo Levi relata uma passagem do campo de concentração, quando um muçulmano, ao levantar pela manhã, leva um bofetão do guarda. Atordoado, ousa perguntar: Por quê? E o guarda diz: Aqui não tem por quê.

Desculpem minha rudeza — e não quero, por óbvio, fazer qualquer comparação infame — (o leitor inteligente sabe o que quero dizer), mas tenho de perguntar, sempre guardando as devidas proporções de acontecimentos históricos e pedindo para que não subestimem minha inteligência:

“— Em Pindorama ainda dá para perguntar “por quê”? Ou essa pergunta já é obstrução da justiça?” Eis a questão.

Ps: diante das manifestações de reacionarismo nas mídias sociais e na própria imprensa (e até nos meios jurídicos), como se houvesse uma conspiração contra a democracia e muita gente admitindo esse desiderato, lembro de uma frase que ouvi durante Aula Magna que ministrei no doutorado em comunicação da Unisinos:

“O Brasil sediou a Copa, a Olimpíada e agora vai sediar a Idade Média”.

Bingo!


[1] DUNLAP JR., Charles J. Lawfare. In: MOORE, John Norton; TURNER, Robert F. National Security Law. Durham: Carolina Academic Press, 2015.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

7 Comentários

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  1. Ah, é, é?!

    Ah, “já” dá pra saber que é lawfare, é, Doutor?! Bom dia!

    Essa chacrinha tá rolando desde 2014; os politiqueiros de curitiba limitaram a “apuração” das bandidagens dos ladrões – que foram demitidos em 2012 (2012!) – a partir de 2002, mesmo com os ladrões reiterando que passam a mão onde alcançam desde 96 (96!); os mesmos molecões irresponsáveis diziam desde 2014 que a imprensa era “aliada” ao “combate à corrupção”, afinal era de lá que eles tiravam as “tiorias” políticas deles (que consecutou o powerpoint); aí o doutor vem dizer que agora, agora, no final de 2017 (2017!), “já dá” pra dizer que é lawfare, é?

    Bom dia, doutor!

    É por isso que a fascistada faz o que quer: muita gente não sabe mesmo com quem estão lidando (e deixam eles jogarem soltos, sem marcação).

  2. Professor, seu artigo me

    Professor, seu artigo me remeteu ao esdrúxulo argumento dos desembargadores do TRF4 ao isentarem o juiz Sérgio Moro de ter cometido crime ao vazar a fita da gravação entre a presidente Dilma e Lula para a Globo, afirmando que “um processo de exceção permite medidas de exceção” – Essa  posição ganhou por 13 votos contra um, do desembargador Rogério Favreto. Isso sim, é ser um super predador do Direito e chancelador das violências jurídicas! Parabéns pelo texto!

  3. Vergonhoso desperdício

    Eu observo, com grande decepção, que o judiciário atual, principalmente o STF, para surpresa da população, se mostra cada vez mais omisso, mais parcial, mais partidário, mais deslumbrado, mais midiático, mais decepcionante, mais desacreditado, menos corajoso e imensamente indigno da missão que a constituição lhe confere.

    O escritor Joseph Campbell afirmou que: ”Quando um juiz adentra o recinto de um tribunal e todos se levantam, não estão se levantando para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar”.

    O uso da vestimenta pelos magistrados é um ritual carregado de uma importante simbologia. “Ele tem a finalidade de conferir solenidade e respeito aos atos do Poder Judiciário. Ao vesti-la, o magistrado expõe ao público que representa a instituição encarregada de julgar com imparcialidade. São vestes, tradicionalmente, cerimoniais e oficiais. Quando o juiz veste a toga ele simbolicamente rompe com o mundo natural e naturalizado, se investe do poder de qualificar os fatos de acordo com o Direito e sobre eles decidir, assim como se investe das responsabilidades da elevada missão a desempenhar.

    Ora bolas! Se hoje, em pleno século 21, a maioria da população desaprovou e condenou a despudorada omissão do STF nos julgamentos de importantes temas; se desaprovou e condenou resultado de julgamentos que mostraram mais parcialidade e partidarismo do que isenção, então por que insistem em manter a parafernália de uma vestimenta que perdeu, aos olhos do povo, o seu caráter ético, moral e imparcial?

    Qual a razão do estado brasileiro gastar verdadeiras fortunas, que sangra, desperdiça e viola, sem pudor, as verbas públicas, as leis e os tetos designados como limites salariais para os cargos públicos, além de alguns despudorados benefícios?

    Qual a razão de se manter tanta pompa e tanta mordomia para quem produz resultados pífios, injustos, covardes e até dignos de suspeição?

    O que há de Supremo, no atual supremo, que se apresenta como sendo o Tribunal Superior?

    Copiando a leitora viciada no C Af:  “O terceiro da ​L​ei é aquele que transcende os conflitantes, isto é, os dois lados, e que representa princípios e valores aos quais tanto os dois conflitantes quanto os próprios representantes da lei – juízes, promotores​, delegados da Lava Jato​ etc​ – ​ estão igualmente submetidos.”

    Então, não havendo transcendência e não representando coisa alguma, para que se manter e desperdiçar fortunas com algo que deixa como legado muito mais reprovações e desapontamentos para a população, do que exemplos positivos e dignificantes?

    Isso é uma grande vergonha!

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