O fim da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

Ou surge uma nova democracia ou vamos para um tipo de oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral

Facebook – Reprodução

O fim da democracia liberal, por Luis Felipe Miguel

Evito fazer projeções bombásticas, mas é difícil resistir no calor no momento: a nova eleição Donald Trump bateu, não digo o último, mas um dos últimos pregos no caixão da democracia liberal tal como ela foi edificada ao longo do século XX.

A vitória de Trump não é exatamente inesperada. O velho farsante alaranjado nunca perdeu o apoio de sua base original – operários e rednecks empobrecidos, os que se sentem cada vez mais excluídos e sem perspectivas nos Estados Unidos de hoje. E cresceu tanto junto ao dinheiro grosso quando ao eleitorado negro e latino.

Dos bilionários antes simpáticos aos democratas, Trump ganhou o apoio declarado, a simpatia discreta ou no mínimo a neutralidade. Já entre negros e latinos há um crescente descrédito com o discurso do “neoliberalismo progressista” que é oferecido a eles pelo Partido Democrata.

De fato, o Partido Democrata parece não saber o que apresentar ao eleitorado. Em 2020, Biden obteve uma vitória apertada – em um país mergulhado no caos da primeira gestão de Trump, incluindo uma gestão da pandemia tão criminosa quanto a de Jair Bolsonaro.

Na presidência, ele pareceu julgar que a volta à “normalidade” (isto é, à velha política de sempre) era o que o povo queria. Esforçou-se por melhorar os indicadores econômicos, sem perceber que o efeito eleitoral deles já não era o mesmo.

No começo do mandato, em gesto ousado, Biden apoiou a greve dos trabalhadores da Amazon, que reivindicavam o direito de se sindicalizar. Mas o saldo não foi angariar o apoio do vasto setor de precarizados (aqueles retratados no oscarizado Nomadland) e sim angariar a antipatia dos barões da “nova economia” – reforçado pelas tímidas tentativas de regular as big techs.

Não custa lembrar que Jeff Bezos, da Amazon, determinou que o Washington Post, o jornal do qual também é dono, rompesse a tradição de apoiar candidatos democratas e se declarasse neutro na eleição deste ano.

Quando a incapacidade física e mental de Biden para concorrer à reeleição se tornou evidente demais e – após um longo e desgastante processo – ele teve que ser substituído, a opção por sua vice parecia “natural”, mas nem por isso menos equivocada.

Ela parecia ser a solução mais rápida, capaz de unir o partido. Mas, afora isso, reconhecidamente uma política pouco hábil, má oradora e desprovida de carisma, seu único trunfo era ser uma mulher com ascendência africana e indiana.

Com o apelo identitário se mostrando cada vez mais contraproducente, afastando mais eleitores do que congregava, e tendo que ser colocado em segundo plano, Harris fez uma campanha errática.

Era a mesma velha política morna, de fazer acenos em múltiplas direções para, no final das contas, manter tudo como está.

Do mandato de Trump, pelos sinais apresentados até agora, se pode esperar uma tentativa de orbanização do sistema político estadunidense. Isto é: seguir os passos de Viktor Orbán, na Hungria, e suprimir todos os controles a seu poder pessoal.

Esse desfecho é o resultado da crise do modelo liberal democrático.

O segredo desse arranjo repousava na capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista. Ou seja, as democracias históricas não se definem como um conjunto de regras do jogo abstratas, como frequentemente se apresenta na ciência política, mas como o resultado de uma determinada correlação de forças.

A acomodação da democracia liberal permite, por um lado, que os dominados tenham alguma voz no processo decisório e, por outro, que os dominantes saibam calibrar as concessões necessárias para garantir a reprodução de sua própria dominação.

Um componente necessário nessa equação é, obviamente, a capacidade regulatória do Estado. Outro é sua autonomia relativa em relação aos proprietários, a fim de que possam ser adotadas medidas que os contrariam no curto prazo.

A crise que ora se vê é marcada pela erosão de praticamente todos os pilares desse arranjo. O “populismo de direita” dá respostas a ela – ilusórias, mentirosas, mas ainda assim respostas. O centro e a esquerda eleitoral não chegam nem a isso. E, sem a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada, o modelo da democracia liberal fatalmente vai degringolar para uma oligarquia escancarada, com um frágil verniz eleitoral.

Estamos falando dos Estados Unidos. Mas, como disse Horácio (e Marx gostava de citar): de te fabula narratur.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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5 Comentários

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  1. Estamos testemunhando o declínio econômico e etico de uma das maiores potências da história e a curto prazo, o declínio da esquerda como força popular. É necessário uma reinvenção e um acordo com a China pode ser nossa saída. Mas a probabilidade de uma nova guerra mundial entre Rússia/China x EUA, ganha cada vez mais contornos

  2. O bullshit matou a democracia liberal, veio outro tipo de bullshit das soluções fáceis.

    Vai precisar uma estatula para retirar o que sobrou dos burrinhos.

  3. Alguém ainda sonha, neste mundo, com a capacidade da classe trabalhadora de impor limites ao funcionamento da economia capitalista? Ou com a retomada da capacidade de pressão de uma classe trabalhadora transformada? Gostaria imensamente de acredita nisso. Mas há, ainda, nesse artigo, uma terceira proposição que me parece mais delirante ainda: a capacidade regulatória do Estado, e sua autonomia relativa em relação aos proprietários.
    Não vou tratar das questões relativas à classe trabalhadora. Sou pobre, assalariado, e moro em bairro pobre. A realidade que vejo, no que diz respeito às capacidades mencionadas no texto, não merece que me demore nesse assunto. Apenas reforço o que sempre pensei, e que me trouxe muitos rancores por parte de meus iguais, que é o fato de que sempre faltou, à esquerda, uma psicologia de massas, uma compreensão mais aprofundada do trabalhador enquanto indivíduo, e não um compenetrado componente a mais de uma classe, supostamente unitária e determinada coletivamente, sem anseios pessoais ou ambições particulares. É essa partícula componente que está se deixando atrair, em números cada vez maiores, pela ideologia democrática-liberal, que atomiza o ser humano, o faz pensar somente em si, com acenos convinvcentes de prosperidade pessoal, que sabem ser uma fábula, uma farsa, mas com contornos tão atraentes e, supostamente, à mão.
    O que gostaria de pontuar, na verdade, é essa visão do Estado como órgão regulador, e antagônico aos proprietários: o Mercado, ou, como eu chamo, o binômio Bancos-Corporações. Já falei sobre isso, aqui no GGN. Quando os fascistas estão no poder, o Mercado é o Estado; quando os progressistas estão no poder, o Estado é o Mercado. A ordem dos fatores não altera o produto. Mas a divisão supostamente existente, entre um e outro (Estado e Mercado), altera o quociente dessa operação. Trump, Bolsonaro, no Executivo, trabalham escancaradamente a favor do binômio; e os efeitos disso sobre a população, que são sub-reptícios e não configuram, ao povo, uma ação de causa e efeito (pois não conseguem correlacionar uma coisa com a outra, ou seja, a política concentradora de renda e a crescente pobreza da massa trabalhadora), atribuindo tal situação, sempre, a questões quiméricas e insolúveis, como a corrupção – de resto, amplamente praticada por esse mesmo vetor político, o conservadorismo, e igualmente não percebida pelo povo como tal. Quando Lula está no poder, trabalha, dentro dos estreitos limites impostos pelos proprietários (esses sim, com sua capacidade de pressão e de impor limites inalterada, intacta, e, dada a inação do Executivo, sempre aumentada), o resultado dessa ação – melhoria do poder de compra do salário, acesso ao consumo, à educação, dentre outras benesses – igualmente não se afiguram, aos seus beneficiários, como estando vinculadas a essas alterações programáticas, e sim, apenas e tão somente, aos seus próprios esforços e sacrifícios. Por que? Porque não se veem como coletividade, e sim como indivíduos – precisamente aqueles que eu disse, algumas linhas atrás, que se deixam seduzir pela propaganda democrática e liberal, que promete a prosperidade individual. As armas dessa propaganda, inclusive a Religião, a Moral e os Bons Costumes, a honestidade e a obediência às leis e às autoridades constituídas, usadas desavergonhada e cinicamente (pois são sistematicamente ignoradas e transgredidas pelos trumps e bolsonaros da vida), são imbatíveis e calam fundo (e disso sou testemunha ocular e diária) no inconsciente coletivo dessa gente. É melhor viver sob a convicção de que é necessário separar o pobre do rico, o preto do branco, o estrangeiro do nativo, o LGBT do “normal”, do que ampliar a gama de “inimigos” a odiar e combater, que é a ideia inculcada em suas mentes diariamente por políticos, pastores, o diabo, enfim.
    Se um governo progressista não consegue esclarecer essa massiva propaganda cotidiana do conservadorismo, se para isso não usa a capacidade regulatória do Estado, e sua autonomia relativa em relação aos proprietários, de que serve estar no comando do Executivo? Se faz somente o que é tolerado pelos proprietários, para que vencer eleições? Lula, Dilma, presidentes legitimamente eleitos, uma vez no poder, descobriram que não estavam no comando do Estado, mas meramente acionando, mecanicamente, seus comandos; destinando, por exemplo, 0,45% do orçamento para o Bolsa-Família, enquanto 45% desse mesmo orçamento iam para o bolso dos banqueiros. Supõem-se que a Democracia seja o governo do povo, para o povo, e pelo povo; quando, em que quadra da história do homem, o governo de uma nação, suas mais altas e importantes decisões, estiveram nas mãos do povo, aquele de quem emana todo o poder em seu nome exercido? Quando as mais altas e importantes decisões do Estado favoreceram, de fato, a massa da população, e contrariaram, ao menos no curto prazo, os interesses e conveniências dos proprietários? A Democracia liberal é uma falácia.

    1. Tenho como fator decisivo a não-confrontação dos movimentos à esquerda ao discurso direitista e, por importante, a busca do centro nas ações políticas.
      O desassistido não se vê representado pela esquerda nem pelas ações e, pior, pelo discurso.
      Os globais reinam tranquilos com suas narrativas enviesadas, não há contestação.
      As eleições americanas foram o ápice, até agora, desta desconjunção dos anseios/necessidades populares com seus, teoricamente, defensores.
      Lula e Kamala fizeram o mesmo jogo. Como diferencial a enorme penetração do nome Lula entre os eleitores. Ao contrário, no norte Trump já tinha grande base de apoio e Kamala trabalhou quase à sombra de Biden senil.
      A comunicação social do governo, aqui, é quase zero.
      Assim, neste andar da carruagem, o caminho que buscam é o trilhado pelo centro/direita: não confrontação, aderência às pautas que nada dizem ao desvalido.
      A classe trabalhadora não se sente representada pelo discurso ou, pior, enganada pelo verbo desconectado com suas reais necessidades.
      Aí entramos no ditado que sendo “todo políticos iguais” é melhor seguir os que estão no poder . . .
      Sim, hoje a democracia, liberal ou não, é uma falácia.

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