Os poetas ditos “matutos”, um olhar

Catulo da Paixão Cearense foi contemporâneo de Leandro Gomes de Barros. Quando Leandro nasceu em 1865, Catulo contava com dois anos de idade. Catulo, maranhense, e Leandro, paraibano. Ambos buscam a metrópole em 1880, Catulo vai para o Rio de Janeiro com a família e Leandro foge da casa do tio, em Teixeira, na Paraíba do Norte, encaminhando-se para o Recife. Nas duas cidades, a efervescência cultural embalava os homens sensíveis à arte e à poesia em particular. Os dois nordestinos, Catulo e Leandro, embarcaram nas asas do sonho e cada um, separados pela distância continental, inauguraram, sem tomar conhecimento um do outro, duas vertentes poéticas: o cordel, de Leandro, e o poema “matuto”, de Catulo. Chamarei de “matuto” por falta de estudos, pelo menos que eu os conheça, que tenham procurado sistematizar a poética desse produto literário.

O objetivo da matéria é pensar esse homem, esse poeta que escreve sob a rubrica dessa forma poética inovadora. Se Leandro se lança no cordel, já instituindo suas regras, por volta de 1889, Catulo só vem publicar o Meu Sertão em 1918, curiosamente ano da morte de Leandro. Com Meu Sertão dá-se início a uma forma nova e estranha de escrever poesia no Brasil. Catulo buscava elementos da fala rural do homem do sertão, seu falar prático e rápido, suas abreviações, suas economias linguísticas e os incorporava à roda poética de então. Recebido com alguma reserva, pelos delegados da língua culta de então, idolatrado pelo público ao qual se dirigia, que não era necessariamente o elemento social representado em sua obra, trilhou seu caminho e fundou escola. 

Embora tenha nascido e vivido parte da vida no nordeste brasileiro, em São Luiz do Maranhão, e no interior do Ceará, Catulo teve formação estritamente urbana, convivendo com os boêmios cariocas, escrevendo letras de música (Salve, Luar do Sertão!), e, o que pouco se sabe, estudando Língua Portuguesa, Matemática e Língua Francesa, chegando até a produzir alguma traduções de poetas famosos na época. Foi dono de colégio e professor de línguas, um homem que em nada se assemelhava ao sertanejo de fala enviesada, pitando um cigarro de palha, afiando um palito com um canivete, pés rachados, calças arregaçadas, cuspindo no chão, como retratava em sua lira. Homem da cidade, o ambiente rural nunca desambientou-lhe, pelo contrário, modou-lhe a alma. O que queremos dizer, na verdade, é que todo aquele que se auto-intitula “poeta matuto” é, em todos os recantos de si, um homem citadino, cujos primeiros anos de formação humana foram no seio da terra, mas os seguimentos, e talvez os mais influentes, tenham sido pisando as ruas calçadas com paralelepípedos ou asfaltadas. E as obras são a revelação dessa condição. Como exemplo vejamos a comparação que faz Catulo entre o luar sertanejo e o luar urbano:

Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão

O eu-lírico está muito bem localizado: está na cidade e é movido pela saudade. Embora ame o sertão e se identifique com ele e morra de saudade o “poeta matuto” visita-o, mas não fica. É um homem viciado na luz elétrica, no banho quente, no gás butano, na gasolina, no barbeador, na cama macia.

O que escrevo agora tem raiz em uma outra matéria sobre a necessidade de o poeta fazer a revisão e correção de seus textos buscando a excelência poética, a lisura textual, independendo se é culto ou “matuto”. Hoje o que se chama “matuto”, em poesia, não é tão matuto assim e a origem, com Catulo, o prova. Por isso vou apontar na obra de três poetas, ditos “matutos”, a incongruência de sua formação, extraída de seus escritos. De Catulo já falamos: era um erudito, direcionando, por opção própria e engajamento poético, sua produção para o Brasil Profundo, mas não ingênuo, tampouco inocente. Agora vejamos o caso de Zé da Luz apontado como seu sucessor. A grandeza lírica do poeta é conhecida por todos. Nascido em Itabaiana, na Paraíba do Norte, em 1904, abraçou o mesmo cantar de Catulo, a mesma linguagem, retratando da mesma forma o sertão e o sertanejo, embora também não fosse sertanejo, assim como Catulo não o era. As Flô de Puxinanã:

Eu inté, mi atrapaiava,
Sem sabe das três irmã
Qui eu vi im Puxinanã
Quá éra a qui mi agradava.

Em Cunfissão de Cabôclo:

Dispôs oiando prá carta
Tive pena, pode crê,
De não tê prendido a lê
Nas letra ali, iscrivida,
O qui dizia Maria
Prô marvado traidô.

Em O Sertão Em Carne E Osso:

Purisso eu quero, seu môço,
Levá o sinhô mais eu,
Prá le amostrá o sertão,
O SERTÃO EM CARNE E OSSO,
Tá-li-quá cumo naceu! 

Observando a construção linguística, estilística e poética, vemos a opção de o poeta, que não é matuto, lançar mão de um eu-lírico ou um narrador que o é. É um recurso literário. Não se pode, nem se deve cair em tentação de fazê-lo, identificar o eu-lírico ou o narrador com o poeta. São duas instâncias diferentes. Se assim o fizéssemos incorreríamos em equívoco irreparável. E aí, nesse último trecho retirado de Zé da Luz há uma real confissão. Vejamos como as letras em caixa alta, que são o título do livro, estão grafadas corretamente. Não houve a preocupação do poeta em trair seu próprio narrador-personagem. Se na linearidade de sua linguagem coloquial, nos outros poemas e até nesse, ele troca EM por IM, se acentua com um circunflexo a palavra “môço”, mas não acentua OSSO, o que isso nos revela? Para mim, revela tão somente que o próprio poeta é um personagem. Ele conhece a Língua Padrão, mas opta pela linguagem “popular”. Claro que não diminui sua veia poética, até a aumenta, pois subverte a partir do estranhamento. Todavia não poderia se auto-intular, nem ser chamado, de poeta matuto. No caso do mesmo Zé da Luz, fica mais claro quando lemos o poema Na Morte Do Mestre, em homenagem a Catulo. Observando tudo o que reza as regras gramaticais, selecionando um repertório lexical longe daquele “matutês”:

O Destino inexorável
Ferira o Brasil inteiro,
Com a perda irreparável
Do seu grande seresteiro.

Passemos a Patativa do Assaré, louvado por se apresentar como um poeta puro, natural, limpo, sertanejo de alma e de corpo e de vida. Patativa é um grande poeta, isso não nos resta dúvida. Grande na poesia, imenso na vida. Mas há em sua obra, além dos seus poemas apresentados como matutos, outros que contradizem essa característica única. Porque se ele utiliza um eu-lírico que diz em Cante Lá, Que Eu Canto Cá:

Poeta, cantô da rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.

Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá, que eu canto cá.

Ora, indiretamente Patativa desautoriza Catulo, mas não é esse o caso. Olhemos como constrói seu poema Luís de Camões, o pai de nossa língua portuguesa, poeta palaciano, introdutor da épica em nossa literatura:

Eu sou o poeta selvagem,
Não recebi instruções,
É rude a minha linguagem
E fracas as expressões
Para render homenagem
Ao grande poeta Camões,
Que com o seu pensamento
Deu à Pátria um monumento.

Não se vê aí traço mínimo que seja do chamado “poeta matuto”. Embora insistindo em dizer, pelo eu-lírico, que não teve instrução, foram observados os plurais, as concordâncias, sem aproximação com a fala, com a oralidade do suposto sertanejo que “fala errado”. Agora voltemos nossos olhos para a construção rimática da estrofe. É a disposição, embora em versos setissilábicos, própria da oitava rima de Os Lusíadas. Não há como não dizer que Patativa não tenha lido Camões. Já em Caboclo Roceira, a lira de Patativa também não opta pelas corruptelas:

Caboclo roceiro das plagas do norte,
Que vives sem sorte, sem terras e sem lar;
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto teu pranto, me ponho a chorar.

Ninguém te oferece um feliz lenitivo,
És rude, cativo, não tens liberdade.
A roça é teu mundo e também tua escola,
Teu braço é a mola que move a cidade.

É muita poesia, na forma e no conteúdo, de um Patativa diferente daquele do mato? Não! É o mesmo Patativa, apenas mostrando que não é um ingênuo desprovido de conhecimento das construções e estruturas da língua. Habita nesse homem o conhecimento. A necessidade de eleger um eu-lírico ou um narrador, matuto ou não, faz dele senhor de sua poesia, dono de seus destinos poéticos.

Mas entremos, agora, mesmo que rapidamente por aquele que, hoje, é o mais conhecido entre os poetas atuais: Jessier Quirino. Louvado como poeta matuto, dono de uma obra vasta e linear, transformou-se no “showman” do sertão. Mas Jessier também não é do sertão. Vive em Itabaiana, Paraíba do Norte. É arquiteto de formação e encaminha-se, cada vez mais, pela filosofia, pela etnografia, pela antropologia. Embora recorra às mesmas artimanhas de seus predecessores clássicos na arquitetura de sua linguagem, distancia-se deles pela complexidade de suas reflexões. Como em Entre O Pente E O Repente, de Paisagem de Interior:

Não sou esses balai todo!
Sou meio desleriado.
E quando ligo o deligo: tõe-õe-õe-õe-õe-õe!
Vejo que só tenho arranco, ao me ver ali parado.
Minhas dúvidas são campestres.
Minhas rimas são risais. 
Baldias, uns dias
De procurar alegrias nas baixas dos tristezais.
Pela rodagem dos versos, eu sempre solto um olá!
Pra quem está desolado. 
Os meus olhares piscosos? São piscos de alegria.
Alegria é manga espada, é sempre verde e amarela.
Tanto, que às vezes penso até com certa doidice
Que sou filho da escrotice do bico do peito dela.
E quando cismo dos peitos
Despedaço de minh’alma versos angelicais.
Até despertei paixão, me chamaram de Romeu.
Atá consegui aplausos que o bandeirinha não deu.
Toneladas de paixão e dessas bem toneladas
E o bandeirinha… Ahhh! Bandeirinha! não deu.
Nas matas dos leitos secos os sertôes torno a rimar.
É rima caçando rima feito o fuxico dos galos.
Rimo de Maria Macho à Sinhazinha Dafé.
Sertão de Chico Baygon, sertão de Chico Dé
Da mulherização das jumentinhas
Das coitadas das galinhas
Das maridanças de solteiro, do desrelato de vaqueiro
– Descontramantelo da vida – 
Do Cariri e do Agreste.
E nordestando o Nordeste sou quase um Cabra da Peste!
Sou vaqueiro, cangaceiro
Sou matuto, sim senhor.
Eu sou Cagado e Cuspido Paisagem de Interior.

Ficam aí os versos de Jessier para os comentários dos poetas. Acrescento tão somente a excelência poética desse gênero ainda carente de estudo e observação. Mas ouso dizer, para os incautos, não confundam essa produção com o cordel brasileiro. Não confundam o poeta que opta por esse caminho como um homem sem atributos estéticos, um vazio, embora Jessier confesse que, em alguns momentos, sua escrita é baldia, mas isso acontece com todos os que escrevem. É o preço. Chamo atenção, ainda, para o caráter dramático desses poemas: são escritos para a declamação, para a entonação, para um ator que, muitas vezes é o próprio poeta. Continuo vociferando mais uma vez: a poesia não requer adjetivos. O trabalho de um poeta, dito “popular” ou “matuto”, é o mesmo de outros poetas da poesia oficial. Não há diferença entre a produção de Fernando Pessoa, Brecht, Walt Whitman e Zé da Luz, Patativa, Jessier, Leandro Gomes de Barros. Todos fizeram ou fazem POESIA. Quer queiram os donos do mundo, quer não.

Redação

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