Precisamos discutir sobre Punitivismo, por Carol Carmela

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Carol Carmela

Do Passa Palavra

Eu queria justiça, quem não quer? Mas podemos pensar racionalmente em uma justiça que mude alguém, que mude pensamentos e o mais importante, que mude atitudes e práticas.

Antes de mais de nada, quero esclarecer que esse texto é um convite à reflexão, à construção de uma ideia que há muito já deveria estar sendo mais elaborada pela esquerda anticapitalista e por nós, feministas. Não tenho o intuito de rachar com nenhum movimento feminista e muito menos gostaria que me isolassem dele por dizer a minha opinião acerca do tema polêmico e delicado que é o sistema punitivista. Me expor como estou, ao dar um relato de assédio, entre outras coisas, também não é algo que considero fácil, então tenham paciência.

No começo de 2012 passei por uma infeliz experiência, por qual a maioria das mulheres passam diariamente. Sou usuária do transporte coletivo da minha cidade e em um dia, como qualquer outro, eu me encontrava em um ônibus lotado, onde não se conseguia mover muito bem ali dentro. Fiquei em um lugar onde podia me segurar e permaneci ali. Para minha surpresa, senti uma mão passar em minhas nádegas. Pensei que não foi intencional e permaneci ali, mas voltou a ocorrer e de forma mais agressiva e mais incisiva, apalpando minhas partes íntimas. No desespero, consegui fugir para o fundo do ônibus. Fiquei lá por um tempo, acometida de raiva e sentindo-me humilhada. Tinha certeza que todos ali viram o que aconteceu.

O ônibus se esvaziou um pouco, mas o indivíduo continuou lá, no mesmo lugar. Resolvi que dessa vez não ficaria sem fazer nada e logo que me levantei um rapaz me abordou, dizendo que viu o ocorrido. Isso me encorajou a ir no infeliz tirar satisfações. Outra surpresa: não fui a única mulher a ser assediada pelo sujeito naquele momento. Então unimos nossas forças e tiramos satisfações dele. Foi um alvoroço. O motorista parou o ônibus em uma praça onde havia várias viaturas da Polícia Militar, onde descemos com o homem, com o rapaz que me abordou, a outra menina que também foi assediada e um outro homem que trabalhava na vara criminal, que também estava no ônibus e presenciou o fato.

Na praça, a confusão aumentou de tal forma que comecei a ficar com medo. Medo do homem que me assediou? Não, medo dos policiais e do que eles eram capazes de fazer com aquele sujeito. Tapas na cara, coronhadas, chutes, ofensas e todas as coisas que estamos cansadas de ver por parte da polícia. Os senhores da lei bateram tanto no sujeito que eu e o homem da vara criminal tivemos que intervir. Estava abismada e inconformada com aquela situação. O assediador estava em prantos, pedindo piedade, dizendo que estava bêbado e se dizia arrependido, falando que havia perdido o emprego; mostrou-nos sua aliança, afirmando que era casado, na tentativa de que esquecêssemos o ocorrido…

Já na viatura a caminho da delegacia da mulher, um dos policias nos disseram que estávamos fazendo errado em levar o homem à denúncia formal, pois, segundo disse, eles mesmos poderiam resolver aquele caso, do jeito deles… Nessa altura já estava me perguntando o que seria certo: eu já não sabia o que era o certo ali.

Resultado: nunca superei aquele acontecimento e nunca me senti justiçada. Pelo contrário, acho que cometi um grande erro, achando que poderia fazer justiça de alguma maneira, e nunca me senti protegida depois disso. O assediador nunca foi a julgamento; ele simplesmente sumiu. Ainda não sei se foi rolo da polícia ou se ele simplesmente fugiu. Também tenho medo de encontrá-lo na rua, pois ainda temo que ele possa me fazer algo, em vingança pela denúncia.

Entendo que minha vontade no momento era vingança contra o homem que me assediou, e que a sucessão dos fatos era qualquer coisa, menos justiça. E foi com essa experiência que hoje consigo enxergar claramente que esse desejo pela punição, seja pela justiça burguesa, seja pelo linchamento – que foi o que os policiais fizeram –, não funciona! E lutar para que os assediadores, agressores, estupradores, assaltantes sejam presos, também não parece funcionar, já que temos de levar em consideração todo o sistema penal, desde a polícia até a cadeia.

Não estou afirmando que a delegacia da mulher ou outro tipo de justiça tenha de ser boicotada ou que por hipótese alguma não deveria ser usada. Não precisaria nem dizer, mas é óbvio que a Lei Maria da Penha, por exemplo, veio de lutas de mulheres que reivindicavam por seus diretos. Mas a luta não terminou aí, não está acabada. Na verdade, há muito para lutar. E por não termos outros meios para nos proteger, estamos à mercê de uma polícia autoritária e assassina e estamos à mercê de uma justiça burguesa que define suas regras e seus privilegiados.

Por que usamos ou temos de usar essa justiça burguesa? Para mim, só a usamos porque não encontramos outros meios para nos defender, para fazer justiça. É o que temos para hoje, então a utilizamos, mas seria a nosso favor ou seria a favor do Estado? A justiça está mesmo sendo feita? Acho que todos e todas sabemos que não. E eu entendo por punitivismo a ideia de ter de punir alguém por seus atos, seja com uma cadeia dada, como existe hoje, seja com dores físicas, torturas, mutilações, descaso com a humanidade etc., que é diferente, por exemplo, de uma penalização.

Para as mulheres, por que será que muitas de nós sofrem ou já sofreram com a violência doméstica ou com abusos dentro de nossas casas e não denunciamos? Será que um dos grandes motivos, além dos já popularmente conhecidos (medo de vingança do agressor punido, dependência psicológica, dependência patrimonial etc.), não é porque nós mesmas não confiamos nessa justiça ou na “justiça” por linchamentos? Para mim (e eu sei que cada pessoa reage a um abuso de determinada forma; lembrando que, como mulher assediada em um ônibus e abusada em outras fases da minha vida, tenho o que se chama “um lugar de fala”), a justiça não funciona por vingança e punição mas por conscientização.

Mandar alguém para a cadeia não vai ensiná-lo a ser diferente e também não vai fazer com que a vítima se sinta acolhida e protegida, pois aí não existe uma reeducação. Muitas das vezes, a condenação que impomos a alguém é, na verdade, uma pena de morte, já que deve se levar em consideração o quanto se morre nos presídios, o quanto são insalubres, o quanto existe de descaso e o quanto são torturados e torturadas ali dentro. Bem, não acho que seja essa a justiça que nós da esquerda defendemos. E não vamos nos esquecer das revistas vexatórias que as mães, irmãs, esposas etc. precisam passar para poder visitar um preso. Também não acho que seja essa a ideia que nós feministas defendemos.

Vamos para os fatos e índices. Segundo o site da Humans Rights Watch, pelo Relatório Mundial de 2015, no Brasil a população carcerária adulta no país supera meio milhão de pessoas; e é 37% além da capacidade do sistema prisional, de acordo com dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em junho de 2014.

Em relação a torturas, entre janeiro de 2012 e junho de 2014, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos recebeu 5.341 denúncias de tortura e de tratamento cruel, desumano e degradante de todo o país. Sendo que um total de 84% dessas denúncias se referia a abusos em presídios, cadeias públicas, delegacias de polícia, delegacias que operam como unidades prisionais e unidades de medida sócio educativa.

Essas denúncias não se referem só a situação de homens, mas de mulheres também. Segundo texto do site Justificando, as mulheres também são vítimas de torturas nos presídios.

Foi noticiado recentemente o livro chamado “Presos que menstruam”, por Nana Queiroz, sobre as condições das presas nos presídios brasileiros, onde as mulheres são tratadas como se fossem homens, ignorando que a higiene íntima feminina, por exemplo, necessita de mais cuidados, tais como absorventes, mais papéis higiênicos, além de que as mesmas engravidam. Ou seja, no sistema penitenciário a questão de gênero não é levada em conta, portanto uma questão grave que só confirma sobre o caráter da execução penal do país (para saber mais a respeito clique no link das Geledés).

Então, seguindo uma lógica simples, mandar alguém para cadeia não é também colaborar para esse sistema penitenciário bizarro do nosso país? Ainda assim, não vamos parar para pensar em uma outra justiça, discutir o machismo? Ou deixaremos essas questões para quando a revolução socialista acontecer? Até lá ficamos à mercê da justiça burguesa que ora a criticamos, ora a defendemos. E defender essa justiça faz de nós aliados aos discursos da direita conservadora, tão empenhada nos assuntos penais?

Também milito em movimento social e lutamos sempre contra a criminalização dos movimentos, fazendo campanhas quando algum companheiro ou companheira vai preso, pois, além de defendermos que lutar não é crime, sabemos o quanto o sistema prisional do nosso país é falho e injusto. Sabemos o quanto há de inocentes, pequenos traficantes ou de pequenos ladrões que estão presos há anos à espera de julgamento, mas seus processos são sempre arquivados, fazendo com que suas liberdades sejam restritas por mais tempo, desnecessariamente.

E o mais chocante é que a maioria daqueles que são condenados vem da classe explorada da sociedade e que em muitos casos não podem pagar suas fianças e que também por isso continuam sendo punidos. Bem, isso não é injustiçar, não é fazer sofrer ainda mais uma classe social que é vilipendiada diariamente? Quando insistimos em pedir punições, não estaríamos concordando com a lógica punitivista para aqueles que tanto queremos em nossas lutas, os nossos aliados e aliadas? Tenho certeza de que o assédio que sofri, se fosse em outro ambiente, tal como uma balada da alta sociedade, e o assediador fosse uma pessoa que tivesse status e tivesse dinheiro, o tratamento que a “justiça” daria a ele seria outro.

Eu também não tenho uma solução. Apenas tenho uma ideia, que é de pensarmos juntos e juntas em uma alternativa, refletir sobre, construir uma estratégia. Também não quero que as pessoas achem que estou dando a ideia de uma imobilidade. Acho que, na verdade, queremos pensar juntos e enquanto não tivermos uma solução eficaz muita gente vai sofrer e vamos sim acabar investindo em uma política punitivista, pois não deixaremos de denunciar, não deixaremos de utilizar a justiça burguesa. Bem, não nos esqueçamos que a direita se empenha na justiça burguesa cada dia mais, defendendo-a com unhas e dentes e está sempre a modificando em seu favor. A direita já está formando uma opinião sobre o sistema penitenciário do nosso país, sobre justiça e inclusive legalização de práticas que, para mim, são linchatórias.

Vamos pensar em outros mecanismos, que penso eu que vai por uma via de trabalho de base, de conscientização e educação, de assembleias. Não, não vai resolver o problema imediatamente, mas o que anda resolvendo o problema de imediato? A redução da maioridade? Os linchamentos? Os escrachos? Ou é a polícia matando na periferia todos os dias? É o “bandido bom é bandido morto”? São ações imediatistas, mas elas resolvem? É assim que no fundo nos sentimos protegidas? Ou será que essas medidas não estão criando ainda mais injustiças, não só para os réus mas para as vítimas também?

A minha ideia é que podemos começar pensando sobre como está se dando as formas de organização em Rojava, por exemplo (veja uma síntese no site da Resistência Curda). Bem sei que os contextos são diferentes, mas podemos refletir sobre seus modos de agir.

Um primeiro passo, para mim, seria discutir a igualdade de gênero, sem excluir, sem julgar, mas no intuito de querer agregar à luta todas e todos para criação de uma consciência igualitária, que é um pouco da ideia das assembleias que são realizadas no Curdistão.

Não é fácil falar em gênero na periferia, ou em qualquer lugar para a classe trabalhadora, além de que estamos muito acostumadas a debater dentro das universidades e dentro de espaços restritos, portanto temos de pensar em como chegar àquelas pessoas que não estão tão por dentro do que é a igualdade da qual falamos. É preciso conseguir chegar aos trabalhadores e até aos patrões mais reaças e conservadores para que deixem de pensar que feminismo “são umas minas aí que tiram os peitos pra fora e se fazem de vítima”; chegar também a alguns da esquerda, que acham que essa discussão não é importante. Como conseguir englobar todas essas pessoas e fazer com que elas parem para pensar nisso?

Discutir gênero não é tão simples e discutir sobre punições também não. O que teríamos para hoje a respeito do nosso sistema penitenciário talvez fosse lutar para que exista mais dignidade e humanidade, já que a mudança que queremos construir, a mudança que estamos começando a pensar, não será realizada de um dia para a noite. Devemos pensar então, nos nossos limites, nas reformas possíveis que podem ser feitas em relação aos presídios e continuarmos nossa luta contra essa Polícia Militar que faz o grande desfavor diariamente para com a sociedade. E não acreditar que eleger alguém “progressista” vai ser a mudança que queremos.

Bem, um outro exemplo muito interessante sobre como fazer um trabalho de base para que se mude pensamentos machistas e para que se mude pensamentos punitivos que conhecemos tem sido as ocupações dos secundaristas no país, onde o debate sobre gênero está sendo feito a partir da auto-organização dos espaços, na qual a igualdade de gêneros é praticada. Aquele menino que passava a mão nas meninas e as ameaçavam para não contar a ninguém, participa agora de debates que podem fazer com ele não tenha mais esse tipo de atitude. Além de incentivar as meninas a ficarem alertas, para não terem medo de enfrentá-lo e se defenderem de alguma forma. Bem, isso é um ponto positivo e pode ser um começo.

Tenho certeza que muitas outras pessoas têm muito a contribuir para essa reflexão. Quantos relatos ouvimos ou presenciamos a respeito de abusos e o quanto queremos justiça e dignidade? Eu queria justiça, quem não quer? Mas podemos pensar racionalmente em uma justiça que mude alguém, que mude pensamentos e o mais importante, que mude atitudes e práticas. Se temos uma lógica de justiça e justiçamentos que há muito não funciona, então devemos combatê-la, e não reproduzi-la de outras maneiras.

Pois bem, o que eu hoje faria se fosse assediada novamente no ônibus? Bem, eu acho que peitaria o cara como fiz da outra vez e tentaria fazer com que ele fosse expulso do veículo ou faria tudo igual, sabendo das consequências, pois não terei amparo da mesma forma… Mas, não sei também, sozinha eu não penso tão bem, por isso que juntas e juntos pensamos melhor, podemos produzir melhor as ideias, podemos ir mais além. O que sei e desejo é que devemos superar os modelos da justiça burguesa e dos linchamentos.

Para finalizar, uma citação do artigo “Em uma sociedade orientada pelo ódio, resta o vazio”, de Haroldo Caetano que, no sentido que eu quis no meu texto, diz

“Violência que tem, no crime, a sua face visível, que lhe serve de espetáculo, mas cujas causas são fugidias, camufladas e colocadas a uma distância cômoda, de forma que possamos continuar na alienante percepção isolada do crime, fato recortado de um contexto que não nos interessa; e, ao mesmo tempo, acreditando que esse crime se resolva com uma certa justiça, reduzida esta à vingança, à prisão de alguém digno de ser odiado. Como se a punição, por si só, significasse uma resposta suficiente para o fenômeno da violência. Cegos por opção, por não querer ver.”

Para quem quiser mais informações acerca do tema, seguem mais alguns links que utilizei para o embasamento da discussão (nem todos os sites trazem um bom debate, porém possuem informações necessárias):

1. Em uma sociedade orientada pelo ódio, resta o vazio

2. Sim! Seu professor mentiu para você sobre a Idade Média

3. A cada mês, 40 detentos morrem nos presídios paulistas

4. A realidade do sistema penitenciário brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana

5. Relatório da Anistia Internacional critica sistema carcerário brasileiro

6. Anistia Internacional: “A tortura é frequente no sistema prisional brasileiro”

7. Prisões femininas: presas usam miolo de pão como absorvente

8. Socialismo, igualdade de género e ecologia social nas montanhas do Curdistão

9. Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas

10. Goiás: três anos sem revista vexatória

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

2 Comentários

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  1. O prazer sádico do

    O prazer sádico do linchamento é um dos piores defeitos do ser humano. Essa teria que ser uma das principais razões de um sistema de justiça com normas bem definidas pela sociedade.

    O molestador deve sim ser encaminhado a delegacia, da mulher, no caso. Ser julgado segundo a lei Maria da Penha, com amplo direito de defesa. A punição deverá ser decidiada pelo juíz, juíza, de acordo com o código penal. Com direito a todos os recurços previstos na forma da lei. Ou seja, que se siga o que está em desuso no Brasil atual, o devido processo legal.

    Fora disso não é justiça, é jusitçamento, e agentes do estado e pessoas comuns levando nossa sociedade a passos largos em direção à bárbarie.

    Parece óbvio, mas pior que não é

  2. Indo além
    Sem nenhuma capciosidade,se este mesmo homem, confuso, bêbado, estuprasse uma criança, esse texto nos levaria a todo esse contundente texto com a mesma reflexão?

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