A AGU bolsonarista é estruturalmente racista?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Manifestações da AGU e do PGR na ADI 6987, ação que tem por objeto impedir que o Sistema de Justiça trate casos de racismo como sendo o de injúria racial.

Marcelo Camargo – Agência Brasil

A AGU bolsonarista é estruturalmente racista?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hoje gostaria de comentar as manifestações da AGU e do PGR na ADI 6987, ação que tem por objeto impedir que o Sistema de Justiça trate casos de racismo como sendo o de injúria racial.

A AGU requereu preliminarmente que a ação do Partido Cidadania fosse extinta, pois a Suprema Corte não pode substituir o Poder Legislativo. Em relação a essa matéria, me parece evidente que a AGU ignorou a jurisprudência do STF.

Ao propor a ação, o Partido Cidadania não pretendeu fazer a Suprema Corte legislar e sim obrigá-la a interpretar a norma penal à luz da Constituição Cidadã. Ao propor a ação, o autor requereu que:

“…seja declarada a inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, do disposto no art. 140, §3º, do Código Penal, para dele excluir os critérios “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, mas apenas se isso aumentar a proteção penal aos indivíduos integrantes de grupos raciais minoritários, a saber, somente se a conduta de ofender um indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial seja entendida como o crime de praticar o preconceito por raça, do art. 20 da Lei n.º 7.716/89, logo, enquanto espécie de racismo, donde imprescritível e inafiançável (cf. art. 5º, LXII, da CF/88)…”

“…a aplicação de interpretação conforme a Constituição ao art. 140, §3º, do Código Penal, para que ele seja considerado constitucional apenas se interpretado como positivando como crime de racismo a conduta de ofender um indivíduo em sua honra por elemento racial, logo, enquanto um crime de ‘racismo pela injúria’…”

A possibilidade jurídica desses pedido é evidente. Guardadas as devidas proporções, há uma semelhança notável entre o que foi pedido na ADI 6987 (interpretação de norma penal que criminaliza o racismo à luz da Constituição Cidadã) e a pretensão apreciada e julgada pelo STF na ADC 43. Nos autos daquele processo, o STF consolidou o entendimento de que o réu somente pode ser preso depois que a sentença penal condenatória transitar em julgado.

Ao levantar a preliminar, o AGU maliciosamente ignorou as implicações da decisão proferida na ADC 43. Assim como não se recusou a interpretar a norma penal referente ao trânsito em julgado à luz da Constituição Cidadã o STF não pode deixar de fixar a interpretação do texto constitucional em relação à questão do crime de racismo. Ao fazer isso, a Suprema Corte apenas e tão somente exercerá sua relevante missão como guardiã da constituição vigente.

No mérito, a AGU requereu a improcedência do pedido alegando que:

“Não se revela legítimo, todavia, conferir ao crime de injúria racial tratamento jurídico não concebido pelo legislador ordinário e, tampouco, autorizado pelo texto constitucional, sob pena de violação ao princípio da separação dos Poderes.”

De maneira geral, pode-se dize que a norma jurídica tem sua existência dividida em três momentos. O primeiro é a realidade histórica que orientou sua produção e promulgação. O segundo, diz respeito à sua aplicação concreta a partir do momento em que ela entra em vigor. O terceiro momento (talvez o mais importante) refere-se ao refinamento que a aplicação da norma ganha ao longo do tempo à medida que os Tribunais percebem e tem que adequar às mudanças históricas.

Algumas normas legais (inclusive de natureza penal) caem em desuso e param de ser aplicadas pelo Judiciário. Outras continuam a ser aplicadas, mas a interpretação do texto legal deve se ajustar a um novo sistema constitucional que entrou em vigor. A interpretação da norma jurídica também pode ser condicionada pelas exigências que foram impostas por uma nova realidade.

No caso da ADI 6987, não há dúvida de que o sistema constitucional brasileiro foi erigido sob o pilar da obrigatoriedade de tolerância racial e da criminalização do racismo. Mas antes de julgar a pretensão do autor daquela ação o STF deve se perguntar se o racismo aumentou ou declinou nos últimos anos.

A norma legal referida na inicial do Partido Cidadania deve ser interpretada de maneira a instrumentalizar a eficácia plena dos princípios constitucionais em foco (art. 1º, inciso II; art. 3º, inciso IV; art. 4º, inciso VIII e; art. 5º, inciso XLII, todos da Constituição Cidadã). Isso obviamente não ocorrerá se a Suprema Corte se apegar às tecnicalidades doutrinárias ultrapassadas pela realidade (como quer o AGU) ignorando o substancial aumento do racismo durante o atual governo.

Bolsonaro não apenas usa expressões racistas, mas incita seus seguidores a odiar os negros em geral e os quilombolas em especial. O racismo é um fenômeno problemático, especialmente quando ele sai de controle. Os exemplos históricos das tragédias causadas pela ação de racistas impunes (ou, até mesmo, incentivados pelo Estado) não podem ser ignorados pela Suprema Corte Brasileira.

Exceto em relação ao pedido feito no final de sua petição*, o PGR se manifestou de maneira semelhante ao AGU, frisando que:

“Com efeito, tratando-se de tipos penais distintos, não cabe ao Poder Judiciário, pela via interpretativa, igualá-los. Segundo o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, ‘não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal’.”

É evidente que não há equivalência jurídica entre a injuria racial e o racismo. Os bens juridicamente tutelados são distintos. O racismo limita indevidamente esfera de direitos que a pessoa de um grupo discriminado deveria desfrutar sem qualquer restrição, enquanto a injúria racial fere apenas a subjetividade de alguém. A ação penal num caso é privada, no outro é pública.

Há, entretanto, um complicador. Sempre que alguém é racialmente ofendido em público, além da subjetividade da vítima ser ferida, o ofensor pratica uma conduta que pode servir de exemplo à plateia. Isso se torna um problema grave especialmente quando a ofensa ocorre na televisão, no rádio ou na internet. Nesse caso, deveria ser obrigatório o Estado acusar o ofensor por dois crimes: a injuria racial, que atingiu a subjetividade da vítima e; a incitação do público, pelo exemplo, a discriminar as pessoas por motivo de raça, cor ou etnia (art. 20, da Lei 7716/1989).

Como no caso do racismo publicamente ostentado uma mesma conduta tem consequências jurídicas distintas, os membros do Sistema de Justiça não deveriam ter a faculdade de escolher qual crime foi cometido. Os dois crimes são conexos aplicando-se a regra do art. 70, do CP.

O Partido Cidadania obviamente não requereu ao STF que crie um novo tipo penal, como deu a entender o PGR. O que se pretende na ADI 6987 é a fixação pela Suprema Corte do entendimento de que o MP não pode deixar de reconhecer o racismo pela injúria. Pessoalmente, entendo que a conexão entre os crimes em determinadas situações é inafastável. O reconhecimento da automaticidade dessa conexão pelo STF seria um passo importante para impedir os agentes do Estado de minimizarem um problema que está se tornando explosivo.

Ao interpretar a Constituição Cidadã fixando o entendimento de que a injuria racial e o racismo praticados na internet e na TV são crimes conexos (sujeitos à ação penal pública), o STF colocaria um freio na produção e difusão de conteúdos racialmente tóxicos. Esse é um ponto que merece atenção da Suprema Corte brasileira, pois é cediço que os algoritmos favorecem a disseminação de conteúdos controvertidos senão abertamente racistas em virtude do modelo de financiamento das redes sociais (quanto mais cliques num conteúdo maior é a remuneração de propaganda associada ao conteúdo).

Resumindo: há uma diferença sutil entre a posição do PGR e a da AGU. Ambos se apegam às tecnicalidades para impedir o STF de consolidar um entendimento capaz de interromper a onda racista alimentada nas redes sociais por Bolsonaro e seus seguidores. O aumento da violência racial nos últimos anos foi simplesmente ignorado pelas duas instituições, mas apenas a AGU bolsonarista parece referendar abertamente o racismo estrutural. Digo isso pensando na preliminar que foi acima comentada, através da qual, desprezando a jurisprudência do STF, a AGU tenta impedir a Suprema Corte de exercer sua competência de julgar a questão juridicamente relevante que foi submetida ao seu conhecimento pelo Partido Cidadania.

*No final de sua petição o PGR requereu a “…procedência parcial do pedido, para que se dê ao art. 140, § 3º, do Código Penal interpretação conforme a Constituição, a fim de considerar o crime de injúria racial inafiançável e imprescritível, nos termos do art. 5º, XLII, da Constituição Federal.”. Esse requerimento me parece inócuo e irrelevante, pois será incapaz de inibir a onda de racismo criada por Bolsonaro e não atende o pedido principal feito pelo autor da ADI 6987.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

jornalggn.com.br-a-agu-bolsonarista-e-estruturalmente-racista-por-fabio-de-oliveira-ribeiro-manifestacao-da-agu

jornalggn.com.br-a-agu-bolsonarista-e-estruturalmente-racista-por-fabio-de-oliveira-ribeiro-manifestacao-do-pgr

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador