A calçada como espaço econômico, por Luiz Alberto Melchert

Não é de dentro de um automóvel com vidros fechados e ar-condicionado ligado que nos aprendemos mutuamente.

A calçada como espaço econômico

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Em quase todos os eventos políticos de que participei, alguém tomava a palavra e dizia, repetindo o mesmo gesto com as mãos: “Temos de debater os grandes temas nacionais”. Concordo, sem ter uma meta, não se vai a lugar algum. Só penso que precisamos saber de onde estamos partindo. Isso começa pela vizinhança. Ocorre que a vizinhança não se dá dentro das casas de um bairro ou mesmo de uma favela. A vizinhança existe a partir do momento em que cruzamos a porta e damos de cara com quem não tem uma porta para cruzar. É no passeio público que se encontra a vitrina para a miséria. É na calçada que se dão as relações entre vizinhos. É nela que as pessoas começam a se preocupar umas com as outras, que se lhes aprendem os nomes, as relações familiares e as mazelas que afligem quem nos é espacialmente próximo.

Foram as calçadas do Rio de Janeiro que nos deram Garota de Ipanema de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, há de ter sido pelas calçadas de Salvador que se seguiu o mendigo Beija-Flor de Caetano Veloso. É nesse espaço que mendigos ganham nome, ao mesmo tempo em que se impõe a violência urbana e nasce o desprezo do rico pelo desafortunado.

Não é de dentro de um automóvel com vidros fechados e ar-condicionado ligado que nos aprendemos mutuamente. Sim, é preciso que aprendamos uns aos outros para que se forme um corpo coeso, um amálgama de gentes que se conhecem e que se preocupam com o bem-estar umas das outras. É nas calçadas que se aprendem nomes, que se abrem sorrisos, às vezes, também conflitos. É nas janelas fechadas, no ar-condicionado, na solidão disfarçada da internet que se constrói a ignorância mútua. Sem as calçadas, as pessoas tornam-se meros memes emoldurado pelas janelas. Sem calçadas, sem sociedade, pelo menos, a urbana. Deveria ser por elas que qualquer plano urbanístico deveria começar.

Ao contrário do que se imagina, não é a Internet que nos prende dentro de casa, que impele o consumidor a pedir uma pizza em vez de ir à pizzaria. São a falta de manutenção dos passeios públicos, assim como a herança do império dos automóveis. Nossa maior mazela é a reclusão. Se antes nos recolhíamos num carro para ir a qualquer ponto de lazer que, por sua vez nos isolava do mundo lá fora, com o aumento exponencial do custo de propriedade do automóvel, mandamos vir o lazer ao interior de nossas casas.

Pôr a culpa na Internet pelas conchas em que nos escondemos não é justo. O fato é que, por séculos, construímos, na cidade, um espaço inóspito. Transformamos nossas ruas em obstáculos a ultrapassar. Criamos a ideia de que tomar um metrô significa igualar-se à ralé. Não é entregar a reurbanização do rio Pinheiros que vai humanizar a cidade, que vai incentivar a abertura de novos bares, de lugares para vermos e sermos vistos, em que possamos sorrir para uma criança de cujos pais sabemos os nomes e o que fazem, ou mesmo afagar um cão. É perto de nossas casas que saberemos o nome de quem nos atende na padaria, quem nos serve no restaurante. Há de ser pelo caminhar a pé que desenvolveremos hábitos sociais que nos farão preocuparmo-nos uns com os outros montando uma rede informal de segurança. As calçadas podem ser o germe para atividades econômicas e fomentar a microempresa. Recuperar as arquitetonicamente consistentes, assim como padronizar as verdadeiras pistas de obstáculos em que as entradas de garagem transformaram nossos passeios públicos, além de empregar momentaneamente, deixa um legado de sociabilidade cujo efeito pode perdurar por séculos.

Estamos a menos de um ano e meio das eleições municipais e municipalizar a construção e conservação dos passeios públicos, retirando esse fardo do munícipe, pode trazer frutos positivos, seja em âmbito social, seja de cunho meramente político. Basta encarar as calçadas como um verdadeiro espaço econômico. Senhores candidatos, pensem nisso.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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