Às mulheres passarinhas!, por Cristiane Corrêa de Souza Hillal

Pensava na mulher, nas mulheres, nessa que sou eu e nas outras, e que aprendem a se cindir e se destruir competindo pela aprovação do homem.

Demi Moore, em A Substância

Às mulheres passarinhas!

por Cristiane Corrêa de Souza Hillal

“Mata-se uma menina.
No começo, desejei.
– Que horror! Cortem a língua dela!
– O que ela tem?
– Quer voar!
– Nesse caso, temos gaiolas extras.”
(A chegada da escrita. Hélène Cixous)

Em choque. Foi assim que saí do cinema após assistir “A Substância”, filme em que a diretora francesa Coralie Fargeat nos coloca frente a frente com a violência sanguinária da desumanização do corpo feminino, cindido, roubado de seus impulsos de vida, colapsado como ovo quebrado em busca de metas infindáveis para atingir uma “melhor versão de si mesma”, versão que jamais foi de si, ou de mesma, mas de um mundo cujas regras são ditadas por homens.

Enquanto o corpo feminino se descaracterizava na ânsia de ser enxergado, escutado e amado, até virar uma gosma varrida do chão, eu pensava nos movimentos de silenciamento e adequação a que nós, mulheres, somos submetidas, de forma às vezes óbvia, às vezes insidiosa, por esse mundo estruturado na masculinidade. Pensava na mulher, nas mulheres, nessa que sou eu e nas outras, e que aprendem a se cindir e se destruir competindo pelo olhar de aprovação do homem. 

Os homens aprendem a amar muitas coisas. As mulheres aprendem a amar os homens” resume, certeira, a professora e pesquisadora de psicologia Valeska Zanello, que traz também a metáfora da prateleira do amor. Somos todas nós, mulheres, ensinadas a competir pelo desejo do homem em prateleiras de um grande supermercado. Quanto mais velhas, gordas ou fora dos padrões estéticos ditados pela indústria masculina que nos objetifica, mais alta é a prateleira que nossos corpos invisibilizados estarão, diz ela.

No livro feminismo branco Koa Beck também não poupa verdades ao criticar o feminismo que engole as políticas de poder sem questioná-las, replicando padrões de supremacia branca, ganância capitalista, ascensão corporativa e práticas de trabalho hierarquizadas e elitistas, como se empoderamento feminino significasse, apenas, colocar uma mulher no lugar antes ocupado pelos homens para que elas façam exatamente o que eles sempre fizeram.

O feminismo criticado por Beck, branco, heteronormativo e despolitizado, enxerga a igualdade de gênero como acumulação de poder individual em vez de vê-la como luta coletiva que tem como objetivo subverter padrões e visões de mundo obsoletas que nos levaram a esse triste lugar em que nos encontramos: passivos expectadores das desigualdades de oportunidades.

De nada adianta a colocação de uma mulher em um posto de poder se ela for um adorno sem voz e sem opinião, ali colocada para figurar sorrindo em fotos com outras autoridades, perdida no deslumbramento dos tapetes vermelhos, das bajulações cheias de inveja e mentira e das repetições dos padrões éticos e estéticos de sempre, tímida e comportada, sem qualquer risco de surpreender ou inovar. Sem lugar de fala e, sobretudo, de escuta.

Não é fácil ser disruptiva em um mundo que apesar de anunciar seu fim, com florestas queimando à luz do sol, aparentemente funciona para muitos, sobretudo aos homens que falam alto.

Eles seguem praticando violências sutis ou explícitas, sem qualquer receio de criar narrativas distorcidas para manter uma aparência de firmeza, macheza, controle de tudo e todos, sobretudo de mulheres que falam, e falam muito, e falam bem… e opinam e querem … isso, aquilo… querem voar … e em bando.

Ser homem, branco, e estar em um posto de autoridade aparentemente lhe confere a autorização da braveza. O homem branco nunca envelhece ou fica gordo. Ele fica bravo. Ele dá a última palavra, seja ela qual for (e não importa se faça, ou não, algum nexo). É do homem branco a narrativa e o julgamento.

Muito avançamos no enfrentamento da violência doméstica, é verdade, graças, inclusive, ao feminismo branco e sua passabilidade em espaços elitizados e formadores de opinião.

Mas, agora, precisamos avançar no enfrentamento da violência política. A lógica patriarcal é a mesma: o homem violento também não é 24 horas tosco e agressivo. Pelo contrário, goza de excelente reputação, pode ser gentil, sorridente, fazer coisas bacanas, mas, quando sente que não está no controle absoluto, reage. Se é um corpo masculino que dele discorda, a política vigente recomenda a aproximação e a bajulação. Se é um corpo feminino que ousa argumentar, questionar ou propor caminhos diferentes a reação é a braveza, humilhação e desqualificação. A política, afinal, não é o espaço natural de uma mulher. Quem, raios, elas pensam que são… se sequer como adultas conseguem falar. Precisam, com firmeza, serem colocadas em seus devidos lugares de recato e obediência. Como a exclusão dos espaços de poder é secular, as mulheres tendem a aceitar oportunidades, agrados e alguma visibilidade pagando preço alto por isso. Muitas vezes emprestam sua competência para homens brilharem em troca de pequenos reconhecimentos, pois é o amor do homem que importa. Para piorar, o feminismo branco despolitizado, ao pregar o “chegar por chegar” não favorece que mulheres reconheçam e saiam do ciclo da violência. Ao contrário. O mundo masculino ensina mulheres a competirem por qualquer minúsculo espaço de poder.

A tal da sororidade vira raridade.  No enfrentamento da violência política só tem sobrado, mesmo, a dororidade, termo cunhado por Vilma Piedade que, como mulher negra, sabe o que é ser barrada na festa das mulheres brancas feministas, todas jovens, magras e bem sucedidas: 12 horas por dia lendo mensagens de trabalho em seus smartphones e sorrindo docemente aos homens, com cuidado para que eles não se sintam inseguros diante de sua competência.  

Mas nem tudo são gaiolas.

Nem todas são a gosma varrida do chão.

Há mulheres que falam, escrevem e voam.

Helene Cixous é dessas mulheres: “Quando você não cala a boca, sempre há uma gramática para censurá-la, mas eu cresci com leite de palavras. As línguas me alimentaram. Eu detestava comer o que cabia num prato. Cenouras salgadas, sopas ruins, garfos e colheres agressivos. Um acordo foi feito: só engoliria se me dessem o que ouvir. Sede de meus ouvidos. Chantagem deliciosa.”  

Eis a chantagem e a vingança deliciosa das mulheres passarinhas: a aposta infinita na palavra.

Se silenciam é porque estão gestando as melhores palavras, que usarão para maternar novos mundos.

Escreve! O que?

Pegue o vento, pegue a escrita, faça corpo com a letra. Viva! Arrisque: quem não arrisca nada, não tem nada, quem arrisca, não arrisca mais nada.

Meu único tormento, meu único medo, é o de não escrever tão alto quanto o outro, meu único pesar é de não escrever tão belo quanto o Amor”.

Esse texto foi escrito sob a “doce coação do amor e é dedicado a todas as mulheres passarinhas, em especial a 07 delas que seguem voando alto buscando mundos menos injustos, silenciadores e bravos, bem longe das gaiolas extras.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP

REFERÊNCIAS:

  1. A chegada da escrita. Hélène Cixous. Bazar do Tempo, 2024.
  • Filme: A Substância.

Direção e roteiro: Coralie Fargeat

Elenco: Demi MooreMargaret QualleyDennis Quaid

Título original The Substance

  • A prateleira do amor sobre mulheres, homens e relações. Valeska Zanello. Appris editora, 2022.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal – Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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