Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Campo de extermínio de índios e periferias excluídas: matizes do fascismo!, por Ion de Andrade

No caso dos índios, desconectados do mercado e "estorvo" para o garimpo, a omissão e o abandono assumiram uma face mais brutal e radical

Associação Yanomami

Campo de extermínio de índios e periferias excluídas: matizes do fascismo!

por Ion de Andrade

No genocídio dos Yanomami, cujas imagens percorreram o país, o Brasil encontrou o seu próprio campo de extermínio. Seu funcionamento na produção das mortes reproduz um mecanismo bem conhecido nas periferias e zonas rurais brasileiras: repressão, omissão e abandono.  

A diferença, no caso dos Yanomami, se dá pelo fato de que o mercado de trabalho das cidades precisa da força de trabalho das periferias. No caso dos índios, desconectados desse mercado e “estorvo” para o garimpo, a omissão e o abandono assumiram uma face mais brutal e radical, produzindo mortes físicas onde comumente “só” produzem terror, miséria e vida de sobrevivência. A diferença entre as duas situações é de intensidade e não de qualidade.

Fica demonstrado, portanto, que cada periferia brasileira é um protocampo de extermínio desse Estado escravocrata, configurando o fascismo eterno para os de baixo.

O Estado exterminador do Brasil age à sua imagem e semelhança na Chácara Santa Luzia, no DF, nas favelas do Rio, nas periferias de Salvador, ou entre os Yanomami, modulando a seu critério e com base no interesse econômico, a intensidade da sua carga opressora que pode ir da humilhação à morte.

É importante entendermos, nessa rodada atual de redemocratização, como costumeiramente age o Estado brasileiro que migra de um fascismo latente para outro manifesto num piscar de olhos e tão somente à guisa de seus mais triviais interesses econômicos.

Isso significa necessariamente, atenção aqui, que há, onipresente e invisível como o ar que respiramos, uma Política de Estado que modela as relações entre o Poder Público e os desvalidos no país inteiro, que tem a inércia da naturalidade e pode ser reproduzida em toda parte se o gestor público desconhecer a sua existência. É ela que reproduz, há seculos, o Brasil como ele é, desde os tempos da escravidão.

O remédio no entanto é simples: fazer o contrário!

O que Lula está fazendo nos territórios Yanomami? Garantindo a presença do Estado.

A presença de um Estado solidário ao povo é precisamente o oposto da omissão, repressão e abandono característicos do que se vê nas periferias em níveis de “normalidade” e do que caracterizou, pela mão da extrema direita, o campo de extermínio dos Yanomami!

O risco, por força dessa inércia da normalidade opressora, é que essa presença solidária do Estado seja um espasmo momentâneo, capaz apenas de levar o fascismo do seu brutal “estado manifesto” ao seu “estado latente” típico das periferias e zonas rurais do país, produzindo uma volta aos níveis “aceitáveis” de massacre moral e exclusão social que todos conhecemos.

E o que é preciso fazer para evitar isso?

Construir juntamente com os Yanomami e com a solidariedade permanente do Estado um projeto territorial capaz de dar respostas aos problemas enfrentados por aquela comunidade, aplicando naquele território as respostas aos problemas que ELES enunciem como prioritários.

Esse processo de contínua presença do Estado para a solução dos problemas prioritários para uma dada comunidade, bastante óbvio, aliás, constrói civilidade e cidadania e emancipação.

É crucial perceber que vencer o fascismo não é devolvê-lo ao seu estado latente. É criar uma nova Política de Estado na qual os investimentos públicos sejam continuamente guiados pela participação popular rumo a um projeto local de desenvolvimento territorial, que no caso dos Yanomami poderia talvez incluir a garantia do ensino da sua língua na rede de ensino, em escolas modernas e não em adaptações mambembes, do compartilhamento da sua cultura na sociedade de Roraima, de mobilidade aérea e nos rios, de melhor assistência à saúde, de tratamento da água, de fortalecimento da sua identidade e cultura em museus etnográficos… a eles de dizer.

A luta, portanto, não pode aspirar apenas a vencer o fascismo manifesto nas terras  Yanomami, deve oportunizar a vitória sobre o fascismo latente, que é o que o Estado brasileiro oferece de ofício ao povo.

E temos que vencer o fascismo latente nas periferias e zonas rurais, protocampos de extermínio distribuídos pelo Brasil afora, alguns situados a apenas 12 km do Plano Piloto de Brasília como é o caso da Chácara Santa Luzia, que certamente merece uma visita do Presidente Lula e do companheiro Guilherme Simões Pereira hoje responsável pela Secretaria de Territórios Periféricos do Ministério das Cidades. A professora Liza Andrade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UNB, (FAU) com certeza se disponibilizará a ciceroneá-los, pois a FAU é uma das raras interfaces entre aqueles mundos exteriores, como diria Orwell, e o Poder Público.

A Chácara Santa Luzia é uma ocupação que existe há cerca de 40 anos no DF na qual a omissão e o abandono do Estado ocorrem nas barbas dos dois maiores orçamentos públicos do Brasil: em termos proporcionais o do riquíssimo DF e em termos absolutos o da União.

Na Chácara Santa Luzia, (a 12 Km do Plano Piloto) vivem cerca de 15.000 pessoas. Por ser uma ocupação não desfruta (a) de água encanada legal, (b) não tem creches públicas (as que existem se devem à cooperação dos habitantes e são abastecidas por caminhões pipa), (c) não tem eletricidade legal e (d) não tem endereço de correio, o que impede os moradores de comprarem no crediário… Não é genocídio mas é o exemplo mais gritante de injustiça socioambiental do Brasil dada a proximidade física da sua miserabilidade extrema com os mais importantes e ricos centros de tomada de decisão do país.

Lá também, tal qual nas terras Yanomami, a saída é a solidariedade permanente do Estado e a definição de um projeto de desenvolvimento territorial que inclua participação popular e orçamentos públicos e que seja capaz de ir resolvendo os graves problemas enfrentados por aquela comunidade.

Em Natal um exercício feito pelo curso de Arquitetura da UFRN detectou as prioridades dos moradores da Orla da cidade numa área com 20.000 habitantes. Esse exercício resultou em projetos arquitetônicos de equipamentos sociais multiuso, ao preço médio de dois milhões de reais.

Os equipamentos incluíram áreas esportivas e de lazer, auditórios e salas de reunião, pistas de skate, piscina pública, dentre outras em conformidade com o diagnóstico feito pelos alunos no diálogo com a comunidade, o que apenas ilustra a normalidade desejável que deveria ocorrer de rotina entre o Poder Público e as comunidades vulneráveis do Brasil.

Quem tiver a curiosidade de conhecer os custos de uma tal iniciativa que deveria ensejar uma política ambiciosa e focada em assegurar o acesso universal dos brasileiros ao Direito à Cidade pode consultar o artigo escrito pela professora Erminia Maricato, pelo professor João Whitaker e por mim publicado aqui no GGN (clique aqui). Nele mostramos o quanto essa nova política pública seria barata e como caberia folgadamente nos bolsos do Brasil.

Vencer o fascismo significa sobretudo derrotá-lo onde ele nunca deixou de existir: nas periferias e zonas rurais, entre os mais vulneráveis, pobres, pretos, índios e camponeses, mas de uma vez por todas.

A revolução democrática é também exorcizar o fascismo de uma vez!

Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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