Flávio Dino e a moeda de troca política na democracia brasileira
por Natalia Fingermann
O regime político brasileiro tinha como característica principal o “presidencialismo de coalização”. Esse termo definido por Sergio Abranches (1988), em seu artigo seminal, apontava que no sistema democrático brasileiro o presidente eleito não detinha maioria suficiente no Congresso para aprovar sua agenda de governo. Dessa forma, o recém eleito presidente tendia a distribuir os ministérios e as secretarias para os partidos de oposição, de uma maneira que lhe garantisse a aprovação das suas medidas no Legislativo.
Esse modelo político que garantiu uma certa previsibilidade e estabilidade entre o Executivo e o Legislativo foi, contudo, rompido a partir da crise política de 2015. Nesse ano, o presidente do Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que obrigava o governo a pagar as emendas parlamentares individuais, chamadas de “emendas impositivas”.
Nesse sentido, aconteceu uma mudança dentro do regime político brasileiro que pela primeira vez desde a Constituição de 1988 fortalece o poder do Legislativo em detrimento do Executivo. Isso pode ser notado de imediato quando se compara os recursos empenhados em emendas parlamentares em 2015, R$ 3,3 bilhões, em relação ao ano de 2016, R$25,6 bilhões (Portal da Transparência, 2024).
Esse valor empenhado se manteve estável durante a gestão de Michel Temer, porém logo em seguida com a vitória de Jair Bolsonaro destaca-se um crescimento exponencial nos recursos voltados às “emendas impositivas”. Sem interesse político em adotar as premissas do “presidencialismo de coalização” e com frágil apoio político, o governo de Bolsonaro garantiu a aprovação da sua agenda no Legislativo por meio da ampliação do chamado Orçamento Secreto. Essa “nova categoria orçamentária” nada mais era do que o aumento descontrolado das emendas parlamentares que atingiram o pico de R$37,4 bilhões em 2020, representando quase 30% das despesas discricionárias (Portal da Transparência, 2024). Sem qualquer mecanismo de fiscalização dos gastos públicos realizados a partir das emendas, a capacidade de execução do governo federal nas políticas públicas se tornou pífia.
A gestão de Lula III, que completará 2 anos em 6 de janeiro de 2025, herdou esse novo regime político em que a moeda de troca com mais valor ao Congresso Nacional é a liberação indiscriminada das emendas parlamentares. Com um gabinete ministerial composto por 11 partidos políticos, sendo alguns deles da oposição – MDB, União Brasil, Republicanos e PP – o governo de Lula tem apresentado muitas dificuldades para aprovar sua agenda política e executar suas políticas públicas setoriais, uma vez que ter na base governista a oposição não garante apoio automático, pois parte do Orçamento dos Ministérios é capturado pelas emendas parlamentares.
Nesse sentido, o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) já vinha buscando reequilibrar o jogo político entre o Executivo e Legislativo. Isso é visto pela declaração do STF de inconstitucionalidade do orçamento secreto em dezembro de 2022. No entanto, o aumento da transparência nas emendas parlamentares não alterou a cenário conflituoso entre o governo de Lula III e a Câmara de Deputados, presidida por Arthur Lira. Em 2024, por exemplo, o valor empenhado em emendas atingiu o patamar de R$ 41,4 bilhões, gerando diversas dificuldades para se realizar as promessas de campanha de Lula.
É notório, contudo, que a entrada do Ministro Flávio Dino no STF tem mudado definitivamente a regra do jogo na democracia brasileira. Em agosto de 2024, o ministro suspendeu a execução de emendas e, com a aprovação da Lei Complementar 210/24, ele definiu regras de transparência e limites as despesas das emendas parlamentares de acordo com o arcabouço fiscal aprovado. O braço de ferro entre a Arthur Lira e Flávio Dino reapareceu mais uma vez nessa última semana do ano de 2024, com a suspensão no pagamento de R$ 4,2 bilhões em emendas de comissão devido à falta de clareza sobre os critérios apresentados pela Câmara dos Deputados.
Embora o ministro Flávio Dino tenha aceitado analisar a resposta apresentada pelos deputados, é importante se atentar em como o ativismo judicial do STF pode se tornar uma moeda de troca do jogo político da democracia do Brasil, pressionando cada vez mais a oposição em atender as demandas do Executivo por meio de uma paralisação de seus recursos orçamentários.
Natalia Fingermann – Professora de Relações Internacionais da ESPM
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Dino é um detalhe nesse cenário de horrores.
Há muito tempo atrás, eu diria em 1979, 1985 e 1988, teve início o desmonte do poder presidencial no Brasil, e da possibilidade de qualquer alternância de direção do Estado brasileiro.
1979, o penúltimo golpe dentro dos vários golpes desde 1964.
A absolvição de criminosos, usando como desculpa “perdão” aos militantes de esquerda, que foram cassados, perseguidos, torturados, desaparecidos e mortos.
Uma espécie de perdoa-me por me matares.
Ali foram lançadas as bases do futuro institucional brasileiro: violento, segregador, patrimonialista.
1985, como desdobramento de 1982, o impedimento de eleições diretas e o fim da chance de reparação histórica para a geração interrompida em 64.
O último golpe.
Em 1988, em meio aos ufanismos ingênuos e outros atos de puro cinismo, a “constituição cidadã”.
Um blefe, um engodo que permitiu a criação do monstro MP(como disse Sepúlveda Pertence), manteve as polícias militares como forças auxiliares das FFAA, engessou um pacto federativo que coloca nas mãos da União quase toda a arrecadação tributária.
Direitos sociais de eficácia contida, garantias e direitos fundamentais subordinados aos mesmos filtros de classe de sempre:
“Você sabe com quem está falando?”.
Ao pobre restou a frase inútil: “sou trabalhador”.
De nada adianta mais, na guerra urbana cotidiana, projetis não distinguem ninguém, mas não escondem a preferência por alvos pretos e pobres.
Ao mesmo tempo que a situação se degradava, seguía em ritmo forte o sequestro e confinamento da política em um misto de judicialização/criminalização e descrédito, alimentados por editoriais da mídia, que babava ódio a possibilidade de um governo mais voltado para os pobres.
Aqui uma pausa:
O PT de 1980, 1990 teve um dedinho de prosa com esse udenismo de macacão (valha-me Brizola), e embarcou com gosto na anti política, no ativismo judicial.
Voltemos ao curso da nossa história.
A solução para uma “democracia” que ameaçava desobediência ao “mercado” e aos modelo dos EUA?
Que venha o TSE, autêntica jaboticaba institucional, um tutor indesejado, um ativista judicial que normatiza eleições, subtraindo o poder de partidos e parlamentares.
As regras dacronianas desequilibraram o jogo de tal forma, em um espectro tão vertical, que a representatividade sofreu uma distorção grave, como se a ação política estivesse resumida em cartéis partidários.
Sob a esfarrapada desculpa de “proteção ao eleitor” e de uma suposta ação higienizante, as eleições se tornaram cada vez mais caras, com espaços públicos cada vez menores.
Como uma cereja nesse bolo de m*rda, a pedra de toque, as emendas parlamentares.
O golpe dentro do golpe de 2016, no qual ainda estamos.
Já há pesquisas suficientes para indicar que o número absurdo de votos concentrados, maiorias parlamentares esmagadoras, reeleição de prefeitos com taxas altíssimas, de 60, 70, 80% são resultados das aplicações do dinheiro das emendas, associadas com as assimetrias da distribuição do fundo partidário.
O financiamento público é tão distorcido quanto o sistema antigo que tentou consertar.
Sem a divisão igualitária ou isonômica entre os partidos, como entender que terão as mesmas chances?
Sim, eleições são espécies de concorrências públicas, ou concurso público.
Se eu dou mais dinheiro a quem já tem muita representação, poder e dinheiro, como vou tornar o jogo justo?
Na verdade, quando a norma eleitoral impede partidos sem representação ou com pouca representação de acessar espaço de tv e rádio, ou de receber o fundo partidário, o que se faz é acentuar a desigualdade e aumentar a concentração de poder e voto.
Não deveria ser esse o objetivo do dinheiro público.
É esse sistema eleitoral que casou tão bem com as emendas, o ativismo judicial, o moralismo hipócrita da mídia e um arranjo constitucional autoritário e classista.
Enfim, a tão sonhada plutocracia brasileira.