O militar “maracujá”
por Marco Piva
É corrente no meio militar a expressão “melancia” para designar oficiais que supostamente são “verdes por fora e vermelho por dentro”. Não sei bem ao certo quando na história das Forças Armadas surgiu essa designação, mas com certeza ela tem uma conotação ideológica ancorada na tradição anticomunista.
Pois bem. O ex-presidente Jair Bolsonaro arrastou para sua aventura messiânica um conjunto expressivo de oficiais das três armas. Sem querer, querendo, como dizia o tele cômico personagem mexicano Chaves, as Forças Armadas passaram a ser a vitrine de um mandatário inepto, incompetente e avesso à obediência aos ritos constitucionais.
Em quatro anos, Bolsonaro levou parte expressiva da população a acreditar que a pureza moral e a determinação autoritária seriam as chaves de salvação do país. O enfrentamento do “sistema” necessitava das bençãos divinas, ainda que isto representasse um teatro mal costurado.
Um dos resultados mais visíveis dessa rocambolesca forma de administrar uma das maiores economias do planeta foram as joias presenteadas pelo governo da Arábia Saudita ao Brasil pelas mãos do presidente então em exercício. Só que Bolsonaro as tomou para si, promovendo posteriormente um verdadeiro contrabando do acervo presidencial.
Este episódio mostrou duas coisas ao mesmo tempo: a primeira, como a Presidência da República era para Bolsonaro e sua família uma extensão dos malfeitos que já praticavam em suas carreiras parlamentares, com nenhuma preocupação em montar, pelo menos, uma cortina de dissimulação. Tudo feito ilegalmente e às claras para espanto da comunidade internacional que passou a ver o Brasil como um país sem rumo.
Mas, a segunda coisa desse episódio das joias se tornou a mais importante porque no rastro das investigações da Polícia Federal, agora liberada para cumprir seus deveres de Estado, ficou muito claro o envolvimento de oficiais das Forças Armadas na operação ilegal de contrabando, com o uso, inclusive, do avião presidencial que deu “fuga” ao presidente derrotado nas urnas às vésperas de passar o cargo ao seu sucessor.
O tenente-coronel Mauro Cid e seu pai, o general Mauro Lourena Cid, além de assessores pessoais do ex-presidente, atuaram de forma inequívoca para praticar um ato ilegal, o que é proibido pelo estatuto do Exército. Revelaram a farda manchada com fortes indícios de crimes que vão desde desvio de presentes do acervo presidencial a articulações para um golpe de estado contra a democracia.
Agora, diante das provas robustas da investigação criminal, o ex-ajudante-de-ordem da Presidência decidiu salvar a própria pele e fez um acordo de delação com a PF, já homologada pelo ministro Alexandre de Moraes. O que ele disse não se sabe ao certo, mas é razoável supor que tenha falado daquilo que viu, ouviu e participou na condição de ter sido uma das companhias mais próximas do ex-presidente nos últimos quatro anos.
Qualquer que seja o teor da delação, é provável que nesta altura do campeonato Jair Bolsonaro e sua prole estejam com a pulga atrás da orelha. O que virá é mais do que certo e não será coisa boa. A salvação da pele de um é o inferno do outro.
Resta saber como as Forças Armadas vão reagir diante da vergonha de ver altos oficiais serem apanhados em crimes comuns e em estratagemas tresloucados de golpe de estado. As tropas sentirão o peso da desonra ou ficarão acomodadas sob o manto corporativista? Para manter a frutaria verde-oliva, parece que Mauro Cid é uma semente de um novo tipo de oficial: o militar “maracujá”, que amarela diante das dificuldades, é enrugado por fora e azedo por dentro.
Marco Pivaé jornalista, apresentador do programa Brasil Latino, na Rádio USP FM, e pesquisador do Centro de Estudos Latino-americanos de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (CELACC/USP).
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