Razões e desrazões para além da ira jurídico-política, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Hans Sebald Beham (1500–1550), Fortuna, 1541[i].

Razões e desrazões para além da ira jurídico-política

por Eliseu Raphael Venturi

“’Útil’, dizem, ‘é a ira, porque nos torna mais belicosos. Do mesmo modo é a embriaguez, porque nos torna insolentes e ousados, e a maioria, levemente sóbrios, manusearam bem o ferro. Da mesma forma dirás que o frenesí e a insânia são necessários às nossas forças, porque, frequentemente o furor dá mais vigor”. (Sêneca[ii]).

Os eventos jurídicos com desdobramentos tragicômicos em sucessão desde 08 de julho de 2018 levaram, mais uma vez, a partir de mais um capítulo, uma série de profissionais e pesquisadores do Direito a se perguntarem, com muito amargor, os motivos de terem dedicado uma vida ao Direito e de permanecerem neste caminho, participando de um controle intersubjetivo que parece ter sido derrotado pelo cinismo quase-institucionalizado.

Afinal, se a política (judicial) tudo pode, Direito para quê? Normas para quê se autoridades podem agir de modo insolente e soberbo, corroboradas por uma mídia antidemocrática? Se o Direito será torcido e distorcido aos limites de sua ruptura, qual a razão de continuar se subordinando ao seu império, de se continuar respeitando sua autoridade deslegitimada, de se estudar o Direito?

O debate não é novo; aliás, é um dos clássicos problemas[iii] em Direito Constitucional em torno a uma prevalência ou dos fatores reais de poder ou da força normativa e da normatividade constitucionais (e, por extensão, jurídicas). Ademais, a resistência aos abusos de poder radica na existência dogmática dos direitos humanos e fundamentais e o próprio direito de resistência se assenta em tal premissa crítica.

De qualquer modo, a persecução daqueles motivos profissionais íntimos, em verdade, integra o cotidiano de qualquer ofício diante dos impasses do desenvolvimento de qualquer atividade. Porém, quando se alcança uma projeção macropolítica, institucional e estrutural, como a que se vê agora, que em muito se supera os dramas micropolíticos e que neles projeta seus efeitos diretamente, mais se dissemina tal atmosfera de descontentamento – obviamente, por parte daqueles que não encaram o cenário com a festividade alienada e beócia do telejornal nacional.

Mistura de sentimento de traição pela arte e pela técnica (ou de traição da arte e da técnica), frustração, desespero e constatação de um estado de coisas para além do arbitrário, tal autoquestionamento profundo por parte daqueles profissionais expõe uma série de outras perguntas envolvidas (que retornam mesmo ao que seja o Direito, sua função social, sua extensão de garantias etc.), mas que também remete aos afetos na política.

Nesse sentido, uma paixão de ira inevitável parece tomar conta da vida jurídico-política; e este sentimento é mau conselheiro, embora não se deva desprezar sua presença, nem tampouco dela deixar de extrair outros efeitos que o meramente destrutivo e do ressentimento. Seu caráter indicial é valioso, embora seja paixão inútil.

Se, nas linhas de Maquiavel, ao político será esperada uma articulação inteligente entre Virtú e Fortuna, é, por outro lado, também ínsito ao controle racional da ira, conforme a reflexão de Sêneca, a consciência dos desígnios cambiantes da Fortuna. Algumas reflexões, assim, podem ser extraídas desta leitura e devem ser especificadas no debate de uma Filosofia do Direito.

Para Sêneca, a origem das bases da ira se encontraria na natureza das concepções racionais que se tenha do mundo e da vida. Tais concepções determinam certas expectativas, que podem se dar em diversos níveis e segundo maiores ou menos ânimos de otimismo e pessimismo atador.

Em geral, sob um ânimo com mais otimismo e esperança, pode-se chegar a expectativas muito elevadas e, assim, mais suscetíveis à irritação. A frustração destas expectativas produz sentimentos que englobam a auto piedade de se sentir submisso a uma injustiça e a surpresa e raiva de se ter por traída uma expectativa.

As consequências da ira, por sua vez, o mais das vezes são desmensuradas e catastróficas (tal como vira o filósofo no palácio subterrâneo de Nero), daí a necessidade de se compreendê-la como para além de um surto irracional.

A ira, assim, se sujeita ao controle pela argumentação filosófica, afastando-se da motivação da tomada de quaisquer decisões, enfocando-se, então, as virtudes mais apropriadas para se racionalizar e decidir qualquer medida – razão pela qual se vence primeiro a ira e, depois, os problemas que a motivam.

Desta sorte, repensar as concepções de mundo, as expectativas, e, mais, compreender e aceitar a previsibilidade de fatos da vida segundo padrões mais pessimistas (e, assim, mais precavidos) seriam medidas iniciais para se manter a calma e a compostura diante das inevitáveis frustrações, estopins da ira.

Afinal, a fortuna, cuja cornucópia pode trazer o bem, e cujo timão, os infortúnios, é inevitável e a ela se está sempre submetido; sua advertência serve especialmente como contraponto à cultura do indivíduo racional soberano, que imagina controlar sua vida e os fatos a sua volta – um dos fatores que, ademais, maximizam a ira nos sujeitos.

Trata-se de uma missão ainda mais complicada àqueles profissionais mencionados no começo do texto. O conhecimento das finalidades institucionais, suas missões, seu custo histórico, democrático e mesmo financeiro, parecem produzir – racionalmente – imensas expectativas em todos, ainda mais com a riqueza de direitos advindos em uma cultura democrática em construção.

Parece impossível administrar, emocionalmente, retrocessos e destruições, assim como assistir passivamente uma implosão devastadora de um projeto histórico de lutas e trabalho quando das violações constantes que se tem visto, o que demanda o mais frio estoicismo.

A urgência, nas linhas de Sêneca, é de uma necessidade de mudança das atitudes diante das situações que não se pode influenciar, sem definhar na descrença da impotência completa. Não se trata, portanto, de uma descrença no Direito, muito pelo contrário.

A situação toda, assim, precisa ser movida para fora da retroalimentação de um movimento circular da ira (que só promoverá mais autoritarismo e violação de garantias e direitos) em direção a uma ressignificação das coisas a partir desta mudança de atitude. Há todo um ressentimento ante a efetividade dos direitos fundamentais que se insere neste circuito, bem como todo um fomento estruturado em torno da frustração, do ódio pela esfera do político, pelo desprezo às formas de alteridade e solidariedade social.

Vencida a ira, veremos, livres dela, as causas mesmas de nossas expectativas e frustrações, assim como conseguiremos novo fôlego para a recriação tão urgente da política, da ética e, assim, da recuperação do Direito. Um novo horizonte estará posto numa antiga e valiosa moldura, e os profissionais e pesquisadores poderão contemplar com toda a beleza a paisagem de suas escolhas de vida.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.


[i] Hans Sebald Beham (1500–1550), Fortuna, gravura, 1541. Disponível em: < http://www.philamuseum.org/collections/permanent/203619.html?mulR=5194>. Acesso em: 15 jul. 2018.

[ii] LIMA, Ricardo. “De Ira” de Sêneca: tradução, introdução e notas. 2015. 238 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Universidade de São Paulo, Brasil. p. 66. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-14032016-110602/en.php>. Acesso em: 15 jul. 2018.

[iii] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  1. Alienação do curso de direito

    Tenho um filho que cursa direito, e está completamente alienado pela perseguição punitivista gerada pela farsa a jato. Não enxerga nada além dela.

    Eu também fiz direito, e na primeira aula, o primeiro professor, perguntou a todos os alunos por que estava ali e por que havia escolhido direito. A maioria respondeu fazer justiça e fazer concurso (para juiz). Ao término, o professor notou que ninguém queria ir trabalhar na polícia (afinal faz algum tempo que delegados precisam ser bacharéis) e que… direito não tinha a ver com justiça, mas manutenção do “status quo”.

    Após criado celeuma na sala com essa declaŕação, ele explicou mais ou menos assim. Ao colocar uma ação na justiça, o autor não faz nada, pois está na justiça, assim como o réu também não faz nada, exceto se houver liminar. Seis meses depois, com sorte, há a audiência de conciliação, onde o juiz pergunta se há ou não acordo – e mais nada faz. Segundo ele, a imensa maioria dos crimes prescreve com 6 meses e o processo é somente arquivado sem julgamento de mérito. Na hipótese do autor querer continuar com a demanda, vai demorar pelo menos mais 3 anos para uma decisão de primeira instância. Com o gasto e desgaste, é bastante provável que o autor desista.

    Mas supondo que não desista, se o lado perdedor tiver dinheiro, vai recorrer ao TJ, onde o processo vai padecer por pelo menos mais 3 anos. E supondo que quer perder ainda tenha paciência, além de dinheiro, mais de 3 a 5 anos no STJ. Se não subiu pro STF, já terão passado DEZ ANOS sem solução da demanda.

    Continuando o exercício, o professor ainda explicou que, após ganha, o autor ainda precisa entrar com uma nova ação, para EXECUÇÃO. Se não for contra os governos, talvez em mais 10 anos ele receba alguma coisa, pois o réu com certeza usará de embargos e outras práticas protelatórias. Em 20 anos(!) o autor só perdeu seu tempo, não irá mais fazer diferença ganhar ou não – e o réu pôde usufruir do que se apropriou durante todo esse tempo.

    Se for contra o governo é bem pior, o autor pode morrer e não receber, tal a demora da “justiça”!

    Enfim, direito não serve para nada. Três períodos do curso depois, eu descobri que o professor estava certo e desisti dessa carreira.

     

  2. Discordo. Já ultrapassamos

    Discordo. Já ultrapassamos esse ponto. Agora será preciso combater o mal que se espalha no tempo e no espaço com um mal maior terrível e instantâneo. Quem abaixar a guarda será uma vítima cordial. Prefiro não ser vítima e certamente não serei cordial com quem me agredir.

  3. Ira
     

    A ira é um sentimento quente e explosivo como o riscar de um fósforo.

    A ira já não nos alcança. O fósforo já foi riscado, ardemos em ódio e o ódio destruiu qualquer expectativa do direito posto.

    Jazemos em indignação, que diferente da ira, reluz sob os escombros sem mais nada para queimar.

    A indignação é a doença crônica do injustiçado. Ela nos faz impotentes,  vegetativos, descrentes e apáticos.

    Agressivos passivos, por indignados, só podemos contar com o tempo.

    Será o tempo o combustível que incendiará aquela indignação reluzente sob os escombros das nossas perdas.

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