Três lágrimas
por Wilson Ramos Filho, Xixo
O padre, depois de anos de sacerdócio, se convence de que Deus não existe. Foi assim mesmo. De uma hora para outra, de repente. Chocado, vai à sacristia e tem vontade de quebrar tudo. Contém-se. Percebe que o ódio que o corrói não será aplacado com a destruição dos símbolos da mitologia que por tantos anos impôs aos fiéis. Sua raiva, na verdade, é contra si mesmo. Permanecesse crente talvez conseguisse dominar sua fúria com o silício. Mas já não. Nem na auto-punição purificadora acreditava mais. Chorou, chorou, chorou. Catou o vinho e se recolheu.
Não encontrou a paz esperada no fundo da garrafa. A epifania o devastava. Como se olharia no espelho doravante? Diria para as beatas e para os diáconos, a verdade? Contaria que deus não existe?
Foi ao bispo logo cedo. Olheiras, algo desgrenhado, e sem medos relatou sua conclusão racional. Esperava, lá no fundo de sua subjetividade, ser punido. Desejava-a. Tinha sido cristão até ontem, não conseguiria jamais afastar-se da culpa que estrutura os mitos da cristandade inventada. Ansiava pela pesada pena em face da admissão da apostasia.
Encontrou um meio sorriso no rechonchudo rosto episcopal. Surpreendeu-se. Queria uma bofetada e recebeu um carinhoso “meu filho, e isso é importante?”
Desconcertado, hesitou. Não tinha mais nada a perder e arriscou perguntar ao bispo se também ele chegara à mesma conclusão. A confirmação que em outros tempos talvez servisse de alento, doeu como os cravos devem ter doído na fronte do aluado que há dois milênios alegava ser filho daquele que – agora sabia – não existia.
Ficaram em silêncio, olhos nos olhos. Não se viam, cada qual estava mirando para si, cegos para o entorno. Uma lágrima escorreu, lenta, involuntária. Como que em resposta, outra lágrima surgiu na face do mais velho. Duas lágrimas, só duas, ocuparam o que poderia ter sido uma áspera carraspana ou uma alongada peroração.
Pense nos fiéis, meu filho. Você quer que eles sofram o que você sente agora? Eles já têm tão pouco, vai tirar-lhes a fé? Seja generoso! A mentira faz bem a eles. Sem ela como reagiriam? Para a preservação das relações sociais, meu filho, para que tudo continue como sempre foi, não podemos permitir que eles, nosso amado rebanho, saibam o que racionalmente concluímos.
……
O Direito e a Justiça não subsistem depois do Golpe de 2016. Nunca existiram sob o capitalismo? Existiram, sim! Existiram como mito, tanto quanto o unicórnio, as teorias constitucionais existem sim. Existiram e subsistem o deus do padre e o deus do bispo. E com as mesmas funções.
O unicórnio haverá de prevalecer?
Wilson Ramos Filho, Xixo, doutor em Direito, professor na UFPR, presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora
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Cartas de Pasárgada.
Senhores passageiros aqui fala sua comissário de bordo:
– Por favor preencham suas declarações sobre posse de itens animais, vegetais, e sobre bens.
– Por favor certifiquem as autoridades que não portam a presunção de inocência (em Pasárgada chamada de não-culpabilidade).
Inocência, como sabemos, é uma droga pesada e não deve ser tolerada, nem entre os inocentes.
Sim, eu Nender, o canarada Arkx, e a proscrita Hydra e tantos outros fomos exilados para Pasárgada justamente por termos perdido a inocência.
Há tempo dizemos que não existe sistema jurídico no Capitalismo, ao menos não na forma idealizada pelos que também acreditam em outro mito, a Constituição Cidadã, ladeado por outro, as chamadas “instituições democráticas”.
Juntos, Constituição, sistema jurídico e “instituições” seriam o Cérbero da atualidade, a vigiar a entrada do Reino de Hades?
Quem sabe?
Aqui em Pasárgada estamos bem, sem inocência e com pouca fé, mas estamos bem.
Para os que vão a Hades, favor não esquecer as duas moedas para o barqueiro.
Eu pensei que fosse a musica… O texto é genial!
Santo Agostinho em muitos momentos de sua vida teve crises terriveis sobre a existência divina. Provavelmente morreu sabendo que nada havia… Tal qual Lula sabe que não existe Justiça sob esta Terra. O que temos é uma pseudo-justiça para que possamos passar por essa existência crendo que se mal houver, justiça sera feita. Por isso tenho receio por aqueles que dizem “quem não deve, não teme”.