A última chibatada da Marinha do Brasil no lombo de João Cândido Felisberto
por Hugo Souza
Um trechinho das memórias de Afrânio Peixoto, de quando o escritor voltou ao Rio de Janeiro de uma viagem à Europa e encontrou a cidade buliçosa com a Revolta da Chibata, no final de 1910:
“João Cândido deixou-se embair pelas falas oficiais. Poupou o Rio e entregou-se de boa-fé ao governo. Foi mais tarde enclausurado num dos cubículos da ilha das Cobras pelo comandante Marques da Rocha, perecendo todos os seus 16 companheiros, apenas resistindo ele, João Cândido, porque Deus sabe depois de que lutas pela vida conseguiu, sobre um montão de cadáveres, colar a boca no postigo que comunicava a enxovia com o ar exterior”.
Quase 100 anos depois, em 2008, o então Lula 2 sancionou um projeto de anistia a João Cândido Felisberto e aos demais participantes da Revolta da Chibata, mas vetou o pagamento relativo às promoções a que teriam direito os anistiados se estivessem permanecido na ativa, além de pensão por morte, por motivo de “impacto orçamentário à União”.
Em caso de possibilidade de comunicação com os montões de cadáveres produzidos no passado pelo Estado brasileiro, seria o caso de tentar explicar a eles que na Fazenda também estamos sempre colando a boca no postigo que comunica com o ar exterior, ou algo assim, ou que no Brasil de hoje – e não é de hoje – temos os braços dormentes de tantos “acenos aos militares”, apesar dos imensos sacrifícios das gerações passadas.
A propósito, aquele trechinho das memórias de Afrânio Peixoto foi escolhido por Edmar Morel como epígrafe para o capítulo intitulado “Covardia” do seu seu livro clássico sobre a Revolta da Chibata.
Neste capítulo, Morel conta como um Conselho de Guerra escolhido a dedo pelo Palácio – na época, o do Catete – absolveu o comandante Marques da Rocha, “o maior criminoso dessa história”, apesar do contundente libelo acusatório do promotor João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.
“Enquanto o promotor João Pessoa pedia 20 anos de prisão para os crimes tenebrosos do comandante Marques da Rocha, o presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, oferecia um jantar ao carrasco, na intimidade do Palácio do Catete, e o Clube Naval o consagrava com uma moção de solidariedade. Dias depois era promovido a capitão de mar e guerra. Era a glorificação de um crime contra a Humanidade”.
No último 20 de março, um projeto de lei para inscrever o nome de João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria foi retirado da pauta da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados a pedido de um deputado bolsonarista de origem militar. Dois dias depois, a poucos dias dos 60 anos do golpe de 64, Lula 3 foi jantar na casa do comandante da marinha, almirante Marcos Olsen, em um bairro nobre de Brasília.
Um mês mais tarde, por esses dias de abril, Olsen enviou um ofício à presidência da comissão da Câmara atacando o PL sobre João Cândido, classificando a Revolta da Chibata como uma “deplorável página da história nacional”, os participantes da revolta como “abjetos marinheiros” e a liderança de João Cândido na insurreição contra os castigos físicos na armada como “deplorável exemplo de conduta”.
As chibatadas nas fragatas e corvetas não existem mais, graças aos heróis nacionais de 1910. Ainda bem, porque o comandante Marques da Rocha, ou melhor, o comandante Marcos Olsen parece bem irritado. Os comandantes das Forças Armadas, porém, seguem balançando o chicote político no ar, invariavelmente respondendo com ele, como seria de esperar, aos “acenos” acovardados do poder civil.
Hugo Souza é jornalista
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