Argentina: as garotas que desafiam o patriarcado

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Imagem: M.A.F.I.A

Por Coletivo Lavana

Tradução de Inês Castilho

Em Outras Palavras

Olhar o que se passa através dos olhos da geração que está abarrotando as ruas argentinas hoje é ao mesmo tempo uma tarefa simples e complexa. As jovens falam até pelas faces pintadas com purpurina, mas o que dizem é tão interessante que faz falta algo mais que aguçe a escuta para compreender o significado de cada palavra. Chiara, Laura e Angelica chegaram com uma dezena de companheiras do ensino secundário. Uma pintou a outra: os olhos, os lábios, as unhas ficaram verdes. Cada uma tem um lenço amarrado no pescoço, nos cabelos ou no braço. É o uniforme desta geração, advertiu Ofelia Fernández no recinto do Congresso.
 
Tomaram o trem, caminharam desde o bairro de Constitución e ao chegar à 9 de Julho se apropriaram, como todas, da avenida.
 
Vão cantando, vão de mãos dadas e vão contentes.
 
A chuva não as molha: as rega. Florescem a cada passo.
 
O frio não as congela. As faz arder.
 
Gritam cada vez mais forte e em cada batucada – que há por todos os lados – sacodem as cadeiras para dançar ao ritmo de um dia que elas estão tornando histórico, porque lhe impregnam com seu ritmo. Qual é ele? “Tem que se mexer”, respondem. “São dias importantes e você não pode ficar sentada. Está em jogo o nosso futuro e não podemos deixá-lo nas mãos de ninguém.” Quem responde é Chiara, séria.
 
De onde vêm? “Vivemos num subúrbio de Lomas, que está pior do que nunca porque as pessoas estão amargas, mal.” O que entristece o bairro? “As pessoas não têm nenhuma esperança.” Vocês têm? “Não sei se temos esperança, mas ao menos temos claro que as coisas precisam mudar e não vamos esperar que sejam mudadas pelos mesmos que fizeram todo esse mal.” A que responde é Laura. A quem se refere? Aos políticos, aos mais velhos, a sua família? “A todos. Minha família me apoia, mas eu digo para minha mãe que ela tem de fazer alguma coisa mais por si, que venha às manifestações, que são pelo bem de todas. Ela foi afastada do trabalho, está fazendo de tudo um pouco, e isso a cansa. Digo que se vier às marchas vai renovar as baterias, mas a entendo: não tem um grupo que a apoie e isso torna tudo mais difícil.
 
Nós estamos juntas o tempo inteiro, falando de tudo, apoiando-nos em tudo, e isso deixa a vida mais fácil. Nos dá força. Nos dá energia. Se uma cai, as outras a levantam.” O que faz com que caiam? “Eu fico pra baixo quando tornam tão difícil coisas que estão tão claras. Veja o que acontece hoje. Tem de ser muito careta para não se dar conta de que, se tanta gente vem aqui, com este clima, é porque o aborto legal não é uma moda, mas uma necessidade. Por que, então, não votam a lei? O que imaginam que vai acontecer se não a aprovarem? Querem que festejemos que se caguem de rir de nós? Às vezes penso que o fazem para provocar um desastre. Escuto os que falam das “duas vidas” e não sei se rio ou se choro. São cínicos: acreditam que não vamos nos dar conta de que a única coisa que lhes importa é que calemos a boca. E não se dão conta de que isso é impossível: nós não vamos mais nos calar.” Quem fala é Angélica.
 
As três têm 16 anos.
 
Quantas como elas há, hoje?
 
Dizer milhares é pouco.
 
Algumas sustentam cartolinas com frases que impactam.
 
“Existo porque resisto”
 
“A pornografia é a escola da violação”.
 
“Mulher, não gosto quando se cala.”
 
“Basta é basta.”
 
“Nos queremos vivas, livres e sem medo.”
 
Outras se abraçam para ocupar a amplidão da avenida Maio ao ritmo de uma coreografia de cancan.
 
Muitas procuram um lugar para entrar na coluna que ocupa mais de 15 quadras e, enquanto vêm passar bandeiras, organizações e palavras de ordem, escolhem seu lugar. Não por acaso, apesar de não estar à frente, a coluna da Campanha Nacional pelo Aborto legal, seguro e gratuito é a mais bem nutrida: mais de duas quadras, maioria de jovens, contidas por um tecido verde infinito que funciona como abrigo, mas também como convite: verde é sua cor.
 
Cantam que o patriarcado vai cair, que tirem seus comentários de nossos ovários, que não são nem suas nem asus [ni tuyas ni yuta] e que Não é Não. Essas demandas são as que unem as ativistas “soltas” e as manifestações artísticas que, ao longo da Avenida de Maio, denunciam a violência com a convicção de que elas próprias vão freá-la.
 
As ações comemorativas e agitadoras do Ni Una Menos começaram sábado em vários pontos do país. E mulheres de todas as coordenadas levantaram firmes seus lenços verdes. A mensagem segue sendo Basta, mas neste caso o pedido se dirige a um Congresso que deve representá-las e todavia não se pronuncia a favor. Essa catarata de concentrações que uniu províncias terminou hoje em frente ao Palácio Legislativo com uma maré que lhes lançou um só grito, que teve uma só cor: verde furioso.
 
Pedimos, assim, algo muito concreto: que o aborto seja legalizado.
 
As meninas cantam agora o que deve ser cantado: “Agora que estamos juntas/ agora que sim, nos veem.”
 
Vê-las é compreender.
 
Não são especiais, não são únicas, não são diferentes.
 
São.
 
E são muitas.
 
E estão dançando.
 
Vai cair.
 
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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