Dalia Elena Romero: ‘O envelhecimento não começa aos 60’

“O envelhecimento da população não combina com saúde privatizada. Não é um bom negócio para os planos de saúde proteger a pessoa idosa"

do CEE Fiocruz

Dalia Elena Romero: ‘O envelhecimento não começa aos 60; é preciso levar em conta o curso de vida’

por Eliane Bardanachvili / CEE-Fiocruz

A tendência de aumento da população idosa no país é um dado conhecido, por levantamentos diversos já realizados. Com os primeiros resultados do Censo 2022, divulgados em junho, foi possível, no entanto, observar mais: esse aumento se deu não só em termos absolutos, como em termos relativos, em especial, no que diz respeito à redução do número de nascimentos. Conforme mostrou o Censo, o crescimento populacional foi aquém do esperado. Somos hoje 203 milhões de brasileiros, 4,7 milhões a menos do que havia sido estimado.

A taxa de crescimento nesses 12 anos foi de 0,52% ao ano, o menor nível registrado. Se, em 2012, a parcela de idosos representava 11,3% da população, hoje, esse percentual é de 15,1%. E, em números absolutos, estima-se que, até 2050, a população idosa do Brasil salte de 31 milhões de pessoas para 60 milhões e represente cerca de 30% da população brasileira.

O aumento da proporção de idosos na população deixa cada vez mais clara a necessidade de se fortalecer o Sistema Único de Saúde: sem o SUS é impossível garantir, seja o direito de envelhecer (isto é, de não se morrer antes do tempo esperado), seja o envelhecimento com qualidade, como afirma nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz a socióloga e demógrafa Dalia Elena Romero, coordenadora do Sistema de Indicadores de Saúde e Acompanhamento de Políticas do Idoso (SISAP-Idoso), do Icict/Fiocruz.

“O envelhecimento da população não combina com saúde privatizada. Não é um bom negócio para os planos de saúde proteger a pessoa idosa. É como uma seguradora de carros: não é negócio segurar os veículos em locais onde há roubo”, observa Dalia. “A sociedade, o Estado precisam compreender, à luz da experiência de outros países, que fortalecer o Sistema Único de Saúde é a única maneira de proteger o envelhecimento”, afirma, alertando que não se trata apenas de garantir internação em hospital. “É também fortalecer a rede de serviços, incluindo atenção primária, atenção domiciliar, dispositivos para fisioterapia, exercícios físicos. Isso é do âmbito do Sistema Único de Saúde”.

Dalia analisa também os aspectos relacionados à diferença entre o número final de habitantes obtido no Censo e as estimativas dos últimos anos, destacando que não foi realizada a contagem populacional prevista para o meio da década passada (em 2015), o que teria interferido nas estimativas. Ao abordar o menor crescimento populacional, ela menciona as mortes por Covid-19 – concentradas na população idosa (70% dos óbitos) –, mas enfatiza como fator mais impactante a queda de fecundidade. “O Brasil fez pouco ou quase nada para criar na população jovem o desejo de ter filhos”.

Leia trechos da entrevista a seguir.

Transição demográfica no Brasil

O destaque do Censo 2022 em relação à transição demográfica é o aumento da população com taxa de crescimento menor do que a esperada – e a menor já registrada. Somos 203.062.512 de habitantes [o prognóstico apontava que país teria ao menos 213 milhões] –aumento de 6,45% em relação à edição anterior da pesquisa, de 2010, que havia contabilizado 190.755.799 de pessoas. O crescimento foi menor, mas houve. E é importante dizer que esse menor crescimento está associado aos níveis de fecundidade, que diminuíram. Quando falamos em transição demográfica, estamos nos referindo a três componentes: mortalidade, fecundidade e migração. Os primeiros são componentes naturais. E, no caso do Brasil, o impacto da migração é mínimo. Em 1940, tínhamos alto índice de fecundidade – e também de mortalidade. Esse índice teve crescimento acentuado até os anos 1960. Aí, inicia-se lentamente um declínio. A partir de 1970, observava-se pela primeira vez no Brasil a redução do crescimento populacional. Por que não se falava sobre essa tendência? Por muitas vezes, ao longo do tempo, destaquei que era esperado um decréscimo da população e que isso se daria de forma acentuada, revertendo o crescimento demográfico do Brasil antes de 2030. Mas, naquele contexto dos anos 1970, com a pirâmide etária ainda jovem, era interessante, até do ponto de vista político, realçar o boom demográfico, o crescimento da população jovem, a quantidade de nascimentos, do que falar do iminente envelhecimento demográfico – que já havíamos tantas vezes anunciado.

O Censo deve ser reconhecido como um bem coletivo, um patrimônio nacional

Uma década sem Censo

Muito se destacou na mídia quanto ao impacto do índice de crescimento da população menor do que o esperado. Mas é preciso destacar também que não houve contagem populacional no meio da década (em 2015). Não tenho a menor dúvida, como demógrafa, de que nossa estimativa de crescimento foi maior do que aquela que realmente encontramos, por conta dessa ausência de contagem. O Censo, conforme recomendação internacional, deve ser feito no ano zero de cada década e, além disso, no ano cinco, um censo rápido, para checar o contingente populacional – nível de fecundidade, taxa de mortalidade, distribuição territorial – o que ajuda a projeção de crescimento da população. No Brasil, pelas razões que conhecemos, esse censo do ano cinco não foi feito. Vivemos um período difícil, do ponto de vista político, econômico, que só veio a piorar, depois de 2015. Foi difícil durante essa década defender o Censo e, mesmo, defender a instituição do IBGE – inclusive pelo setor Saúde. Defender o Censo é defender a cidadania, defender o direito ao registro civil, de cada um de nós. E, em nível coletivo, é nossa declaração populacional. O Censo deve ser reconhecido como um bem coletivo, um patrimônio nacional. Defendemos a saúde, a educação, os direitos de populações específicas como a LGBTQIAPN+, todas essas lutas são importantíssimas, mas vemos uma ausência de defesa do direito à informação. Não temos ainda a consciência de quanto é fundamental defender a informação como um bem e, especialmente, defender o censo como informação.

Sou crítica aos estudos que atribuem a diminuição da fecundidade à entrada da mulher no mercado de trabalho. Essa diminuição se deve não ao fato de a mulher trabalhar, mas ao fato de o Estado não criar dispositivos públicos para o cuidado das crianças

Covid-19 X fecundidade

Ainda é cedo para responder se o Censo vai expressar os impactos da Covid-19 sobre a população. Até o momento, só foram divulgados os totais populacionais. O trabalho de coleta terminou recentemente, em maio. Sabemos que o Censo foi realizado no meio da pandemia. Não podemos esquecer que 70% dos óbitos pela Covid-19 se deram em pessoas idosas. Mas esse pode representar um impacto menor do que se imagina sobre a redução da população. Porque o grande impacto foi, como apontei, a diminuição de fecundidade. O Brasil fez pouco ou quase nada para criar na população jovem o desejo de ter filhos. Isso passa pelas oportunidades de cuidado que uma sociedade oferece. O Brasil não se caracteriza por dar suporte social aos cuidados da criança. Legalmente, inclusive, o cuidado da criança fica por conta das mulheres. Digo legalmente, porque os homens, no país, não têm direito a parar durante alguns meses para cuidar do filho recém-nascido, isso fica com a mulher – com aquelas que têm direito a isso em seus empregos, e é por poucos meses. Depois, não há dispositivos para prosseguir com esse cuidado. Sou crítica aos estudos que atribuem a diminuição da fecundidade à entrada da mulher no mercado de trabalho. Essa diminuição se deve não ao fato de a mulher trabalhar, mas ao fato de o Estado não criar dispositivos públicos para o cuidado das crianças. Observamos isso até mesmo entre nossas alunas, no mestrado, no doutorado. Não têm como garantir o cuidado dos filhos. Sem condições, sem suporte social, não há desejo de filhos. Mesmo no meio acadêmico, associa-se a diminuição da população ao fato de o jovem não querer ter filhos e não se discute a fragilidade do cuidado.

Mais idosos e a importância do SUS

Já sabíamos da tendência de aumento da população idosa por levantamentos passados. Mas agora observamos esse aumento não só em termos absolutos, como também em termos relativos, no que diz respeito à redução da população jovem. Esse aumento da proporção de idosos, sem dúvida, impõe desafios ao Sistema Único de Saúde, e isso já discutimos bastante. Organizei um seminário, em 2017, parceria entre Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), com Fernanda Lima Costa [pesquisadora da Fiocruz Minas] e o ex-ministro José Gomes Temporão [pesquisador do CEE-Fiocruz], em que discutimos que é impossível o envelhecimento saudável no Brasil sem o fortalecimento do sistema de saúde. O setor Saúde, no país, não dá relevância a esse fato demográfico, que tem implicações, também, na transição epidemiológica. Envelhecer com saúde requer reestruturar completamente o SUS em função do curso de vida.

Quando falamos em prevenção e tratamento de doenças ou agravos, é importante garantir uma rede de cuidado que não seja baseada em unidades familiares, em que se conta que a pessoa idosa vai ter uma mulher disponível. É a sociedade, o Estado que têm de dar respostas. Quem não tem família tem que ter Estado e sociedade para assumir essa responsabilidade, e, se tem família, é preciso fortalecer a unidade familiar e fazer essa rede de cuidado. Está em discussão, inclusive, a Bolsa Cuidado, para dar cidadania tanto à pessoa idosa, quanto à pessoa cuidadora. Quando se trata de pessoa idosa em estágio avançado, temos que tomar ações imediatas para melhorar a rede, com cuidados paliativos e estratégias de ações e políticas para a boa morte. A boa morte é tão importante quanto o bom nascimento. E sobre isso, temos muito que avançar no Brasil.

O acesso a dispositivos que permitam à pessoa manter sua autonomia e dignidade, diminuindo-se a desigualdade no envelhecimento no Brasil, é uma questão

Autonomia e dignidade

Esperamos que o Complexo Econômico-Industrial da Saúde incorpore rapidamente novas tecnologias, novos conhecimentos – muitas vezes, de baixo custo! – para dispositivos assistivos, por exemplo. Claro que sempre buscamos evitar uma doença crônica, mas ela pode aparecer. E o acesso a dispositivos que permitam à pessoa manter sua autonomia e dignidade, diminuindo-se as desigualdades no envelhecimento, é uma questão no país. Uma pessoa com Mal de Parkinson que pode contar com uma colher que o ajude a comer sozinho tem uma qualidade de vida muito melhor. Na deficiência visual, a mesma coisa: vai ser totalmente diferente a vida de quem tem acesso e de quem não tem a outro dispositivo assistivo – os óculos. Da mesma forma, poderíamos falar também da saúde digital, que deve se voltar às ferramentas e tecnologias sociais, em que os gestores tenham acesso a informações rápidas para todos os municípios sobre as demandas das populações.

O Estado precisa colocar no centro de suas ações o curso de vida e o envelhecimento saudável […] O envelhecimento não começa aos 60 anos

Envelhecimento X Saúde privada

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) mostrou que, à medida que aumenta a idade de uma pessoa, aumenta também o uso que ela faz do Sistema Único de Saúde. Isso é outra evidência da necessidade de se fortalecer o SUS. O envelhecimento da população não combina com saúde privatizada. Não é um bom negócio para os planos de saúde proteger a pessoa idosa. É como uma seguradora de carros: não é negócio segurar os veículos em locais onde há roubo. Os planos de saúde são negócios, e não surpreende o número de processos contra essas empresas, por não aprovação de procedimentos para pessoas idosas. Onde está o problema? Está em que a sociedade precisa compreender, à luz da experiência de outros países, como a Inglaterra, que fortalecer o Sistema Único de Saúde é a única maneira de proteger o envelhecimento. E não é só garantir internação em hospital, é também fortalecer a rede de serviços, incluindo atenção primária, atenção domiciliar, dispositivos para fisioterapia, exercícios físicos. Isso é do âmbito do Sistema Único de Saúde. A sociedade precisa entender e o Estado precisa colocar no centro de suas ações o curso de vida e o envelhecimento saudável. É importante incorporar a voz das pessoas idosas e das pessoas que não têm sequer o direito de envelhecer no Brasil – como as populações indígenas, quilombolas, as populações negras das favelas. Ver o envelhecimento da perspectiva da doença crônica e da internação é insuficiente. O envelhecimento não começa aos 60 anos. Há todo um investimento que precisamos fazer, no meio acadêmico, nos movimentos sociais, no Estado; mudar radicalmente os paradigmas de investimento e as prioridades. É fundamental capacitar e empoderar os agentes comunitários de saúde, os dentistas, os fonos, os fisioterapeutas. E identificar fatores que apontam para risco. Isso é urgente. Tenho um trabalho muito próximo ao Ministério da Saúde, desde 2007, e até recentemente, que apresenta evidências da efetividade da atenção primária em um melhor envelhecimento, inclusive em termos de custos para a sociedade.

Luta contra o preconceito

O investimento na luta contra o preconceito à pessoa idosa também é fundamental. A isso chamamos de idadismo, etarismo. Mais do que preconceito, trata-se de discriminação. A pessoa idosa é considerada uma fatalidade social. E esse idadismo não acontece apenas entre quatro paredes, nos domicílios, dentro do banco, na rua. Também se vê na falta de investimento, na falha em aplicar a Constituição, quanto ao cuidado da pessoa idosa. Família, Estado, sociedade não fazem sua parte. Quando não há suporte social para a família cuidar da pessoa idosa, e uma mulher tem que parar de trabalhar para prestar esse cuidado, isso também é discriminação. A recente pandemia deixou uma marca muito dura e triste, quanto aos idosos – ‘deixa morrer’, ‘já viveu muito’, foi o que ouvimos. Isso é o que denominamos gerontocídio e deixou marcas que, durante esta década, teremos que reverter.

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