por Rubens Valente
Um “plano estratégico” produzido em dezembro de 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro, revela que o setor de inteligência do Ministério da Justiça — na época comandado pelo delegado da Polícia Federal Anderson Torres — sabia que desnutrição infantil, mortalidade infantil e malária atingiam oito regiões, com 22 aldeias, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A Agência Pública obteve o plano através da Lei de Acesso à Informação. Após a posse do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro, o governo federal divulgou que 570 crianças morreram de causas evitáveis na terra Yanomami durante os quatro anos do governo Bolsonaro.
O documento, com 21 páginas, foi elaborado em 17 de dezembro de 2021 pela Seopi (Secretaria de Operações Integradas), o setor responsável por ações de “inteligência” no Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em julho de 2020, durante a gestão de André Mendonça, a Seopi se tornou conhecida com a revelação de que produzia dossiês sobre policiais e professores antifascistas. Em agosto daquele ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou, em votação no plenário, a paralisação da confecção de dossiês do gênero. Na gestão de Anderson Torres, a Seopi foi comandada por quatro delegados da Polícia Federal.
O “Plano Estratégico de Atuação Integrada de Apoio às Ações de Saúde – Terra Indígena Yanomami”, obtido pela Agência Pública, foi produzido pela Seopi a pedido da Secretaria-Executiva do MJ, vinculada ao gabinete de Anderson Torres, depois que o ministro no STF Luís Roberto Barroso determinou uma série de medidas sobre a saúde indígena no bojo da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 709, ajuizada em 2020 pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e outras organizações indígenas.
Em resposta à ordem do STF, diz o plano da Seopi, uma suposta atividade de atendimento à saúde dos Yanomami seria realizada a partir de dezembro de 2021 pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), ligada ao Ministério da Saúde. A Seopi teve o papel de coordenar a “construção de um Plano de Atuação Integrada” que iria estabelecer “a forma de atuação conjunta das forças de segurança em apoio e atendimento às demandas apresentadas”. A “liderança situacional para as ações”, contudo, caberia à Sesai, que iria “adotar todas as medidas logísticas para a operacionalização das ações de saúde”.
De acordo com a Seopi, a Sesai designou, “devido à urgência no atendimento da decisão referente à ADPF” no STF, oito áreas prioritárias para atuar na Terra Indígena Yanomami: Surucucu, Parima, Kayanu, Parafuri, Hakoma, Haxiu, Xitei e Homoxi. No trecho do plano que indica as “fragilidades” dessas oito comunidades é que aparece o amplo conhecimento da Seopi sobre os graves problemas que atingiam os indígenas da terra Yanomami. “Desnutrição infantil, mortalidade infantil, malária, zona de conflito, zona de garimpo”, diz o documento sobre as “fragilidades” de quatro dessas áreas (com uma população total de 2.105 indígenas). Em outros três casos, foi anotada “desnutrição infantil”. Na área de Surucucu, a mais populosa com 2.646 indígenas, foram registradas “desnutrição infantil, óbito materno”.
No documento, a Seopi afirma ainda que a “missão geral da operação” era “proporcionar proteção e segurança aos servidores de órgãos envolvidos e população indígena, no acompanhamento dos profissionais de saúde, coordenados pela Sesai/MS, que atuarão em ações emergenciais, para redução de casos de malária, tungíase, alcoolismo, mortalidade e desnutrição infantil, no âmbito do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami”.
Nas 22 aldeias que seriam em tese atendidas pela Sesai viviam 8,6 mil indígenas, de acordo com o documento. Os números são pequenos em relação à realidade na terra Yanomami. As 22 aldeias representam apenas 5,8% do total de aldeias no território (376) e o número de indígenas equivale a somente 27% do total de indígenas habitantes do território (31 mil).
Documento diz que agentes da saúde encontraram “ambiente hostil”
A documentação até aqui obtida pela Pública não esclarece o desfecho do “plano estratégico” coordenado pela Seopi a partir de dezembro de 2021 nas comunidades Yanomami. Porém, um ofício assinado pelo então secretário especial de Saúde Indígena, o coronel do Exército Robson Santos da Silva, e direcionado à Seopi indica problemas na execução do plano. O secretário escreveu que a Sesai fez o trabalho nos dias 14 e 21 de dezembro em apenas duas regiões, Kayanu e Parafuri. Para o trabalho nas próximas duas áreas, disse o secretário, era necessário o apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio) e da FNSP (Força Nacional de Segurança Pública). O secretário argumentou que as regiões eram “zonas de conflito”.
No ofício, o secretário admitiu que o apoio era necessário para “enfrentamento à desnutrição infantil, mortalidade infantil, malária e abuso de álcool”. Silva escreveu ainda que as “equipes de saúde” do governo haviam encaminhado um “relatório situacional” que tratava de “situação de conflito nas regiões de Parima e Kayanu”.
Outro trecho do plano da Seopi confirma as dificuldades e fala em “ambiente hostil”, mas não esclarece o motivo da suposta hostilidade. Segundo inúmeras denúncias realizadas pelas lideranças Yanomami desde 2019, mais de 20 mil garimpeiros invadiram e instalaram garimpos ilegais em diversas partes do território, fazendo disparar os casos de malária e desnutrição.
“A Sesai/MS fez a previsão de intervenções emergenciais, na área de saúde, nas AIO’s [‘áreas de interesse operacional’], porém tem encontrado dificuldades na execução de suas metas devido ao ambiente hostil verificado em algumas localidades.
Preliminarmente, foram previstas três grandes metas de intervenções, considerando a urgência de atendimento e a precariedade de cada comunidade, no entanto, como foi encontrado resistência nas áreas estipuladas na Meta 1, a Sesai/MS solicitou o apoio de uma equipe de força policial para acompanhar os profissionais de saúde, ficando estipulado um cronograma conforme quadro 2”, diz o plano da Seopi.
No mesmo plano, a Seopi mencionou que haveria, em ação paralela e simultânea, uma suposta “operação de segurança coordenada” pela própria secretaria “em decorrência de determinação judicial exarada na ADPF nº 709, dentre elas, a extrusão do garimpo ilegal daquela região”. Na documentação, não há mais dados sobre a suposta operação.
O “plano estratégico” de 2021 incluiu uma “matriz de riscos”, que colocou no mesmo patamar, com uma escala de 24 pontos, tanto o “confronto com garimpeiros” quanto a “hostilidade indígena”. O risco dos dois cenários foi considerado “baixo”. O de risco “alto” foram as “condições de acesso e trafegabilidade desfavoráveis”. Na operação como um todo, a Seopi apontou uma média geral de 47 pontos, considerando assim que a operação apresentava um risco geral “médio”.
Delegados da PF comandavam o setor de inteligência
O “plano estratégico” da Seopi é mais um indicativo documental do conhecimento que o governo Bolsonaro tinha sobre a situação dramática na terra Yanomami. Conforme atas reveladas pela Pública no início de março, o então vice-presidente da República e presidente do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal), general reformado Hamilton Mourão, admitiu em agosto de 2022 que garimpeiros estavam “invadindo a terra Yanomami” e que por isso havia “a necessidade de ser deflagrada uma operação de grande envergadura no território”.
Em redes sociais após a divulgação da reportagem da Pública, Hamilton Mourão atacou-a, dizendo que “não houve qualquer denúncia séria em relação a esse problema”, em referência à desnutrição e à mortalidade infantil entre os Yanomami. O “plano” formulado pela Seopi com informações da Sesai mostra agora que não só havia uma farta denúncia na imprensa – só as organizações indígenas encaminharam mais de 21 relatórios e o caso foi denunciado até na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – como o próprio governo Bolsonaro elaborava papéis e análises sobre a grave situação sanitária dentro do território indígena.
Na época do “plano estratégico” de dezembro de 2021, a Seopi era comandada por quatro delegados da Polícia Federal em postos estratégicos da secretaria: Alfredo de Souza Lima Coelho Carrijo (secretário), Jerry Antunes de Oliveira (diretor de Operações), Carlos Alberto Fazzio Costa (coordenador-geral de Planejamento Operacional) e Fernando de Sousa Oliveira (coordenador-geral da Operações Integradas). Os nomes dos delegados aparecem nas primeiras páginas do “plano estratégico” apenas abaixo dos de Torres e do presidente Jair Bolsonaro. A capa do “plano estratégico” traz a fotografia de um indígena com arco, flecha e máscara sendo atendido por um agente de saúde.
Localizada pela Pública por telefone nesta quarta-feira (15), a defesa de Anderson Torres disse que daria um retorno à reportagem para entender o teor das dúvidas, mas isso não ocorreu atéo fechamento deste texto. Torres está preso por ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes sob suspeita de participação nos atos golpistas contra a sede dos três Poderes no último dia 8 de janeiro.
Os quatro delegados da PF que comandavam a Seopi em dezembro de 2021 foram procurados por meio da assessoria de imprensa da PF, em Brasília. A princípio a assessoria pediu que as dúvidas fossem encaminhadas por escrito, o que foi feito no mesmo dia. “Os questionamentos aos mencionados delegados de Polícia Federal podem ser encaminhados por meio desta Assessoria de Imprensa.”
Após receber as perguntas, porém, a PF orientou que a reportagem buscasse o Ministério da Justiça, “órgão responsável pelas atividades da Seopi”. Procurado, o Ministério, contudo, também não respondeu até o fechamento deste texto. Por três vezes, desde terça-feira, a Pública solicitou que a assessoria da PF repassasse as dúvidas diretamente aos quatro delegados – e também que repassasse a informação de que jornalistas estavam à procura dos policiais para obter esclarecimentos. Na quarta-feira, a assessoria da PF respondeu: “Os policiais ainda não foram consultados pela PF. Por se tratar de fatos ocorridos enquanto os policiais estavam cedidos à SEOPI/MJSP, este setor entende que aquele órgão é o responsável pela resposta aos questionamentos”. A Pública reiterou o pedido, mas não houve resposta.
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