O recrudescimento da violência no Brasil, por Euzamara de Carvalho

Ao longo dos anos o demonstrativo da violência vem sendo denunciado por diversos setores da sociedade.

O recrudescimento da violência no Brasil

por Euzamara de Carvalho[1]

Porque a noite não anoitece sozinha.
Há mãos armadas de açoite
retalhando em pedaços
o fogo do sol
e o corpo dos lutadores.
– Pedro Tierra

O recrudescimento da violência no Brasil tem causado preocupações por parte de alguns setores do estado, da sociedade civil popular organizada e da comunidade internacional. As diferentes formas de violências que perpassam a vida cotidiana em áreas de conflito no campo e na cidade se apresentam marcantes na história das populações pobres – classe trabalhadora. Para essa classe a violência efetua-se como “resposta” às suas diferentes lutas, motivada pela negação das dimensões econômicas, territoriais, culturais, raciais, geracionais, politicas e de gênero e pela falta de reconhecimento do direito à organização social para reivindicar a efetivação de direitos.

Os atos de violência contra a população negra, sem-terra, indígenas, ribeirinhos, posseiros, quilombolas, mulheres, religiosos, lideranças sindicais e políticas incidem mais fortemente. Não por acaso, é sobre esses sujeitos coletivos que a violência impera. Leonilde de Medeiros ao analisar o tema da luta pela reforma agrária e a violência do latifúndio, pontua (2002, p. 191):

Ceifar uma liderança é também procurar destruir um longo processo de preparação, de educação, de produção de novas percepções, gestadas no interior dos próprios movimentos. Logo, essa violência não acomete uma pessoa em particular, mas um símbolo da própria resistência e a voz que porta uma utopia mobilizadora.

O quadro de grave ameaça aos valores democráticos para a integridade e a paz dos cidadãos brasileiros é preocupante e se mostra inaceitável às instituições políticas e às liberdades públicas. De acordo com o relatório do Coletivo RPU Brasil – 2022, o Brasil continua sendo um dos países mais perigosos para defensoras e defensores de direitos, em especial, ativistas ambientais, e pessoas trans em todo o mundo.

Ao longo dos anos o demonstrativo da violência vem sendo denunciado por diversos setores da sociedade. Os dados de conflitos no campo, organizados pela Comissão Pastoral da Terra CPT, tem sido um espelho importante para denuncia e aprofundamento das violências presentes na luta pela terra e território. No ano de 2021 contabilizou a ocorrência de 1.768 conflitos no campo, motivados pelas disputas por terras, conflitos por água e trabalhistas, Dentre os conflitos registrados os povos e indígenas e quilombolas são os mais afetados.

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De acordo com os dados registrados no caderno de conflitos 2021, no último ano houve aumento de 75% no número de assassinatos em conflitos no campo, no Brasil. Já o número de mortes em decorrência de conflitos registra aumento de 1.100%[2]. O destaque é para região amazônica que historicamente concentra maior número de conflitos e assassinatos no campo.

A crescente violência contra povos indígenas seguida de repressão, ameaças e mortes, tem sido também motivo de grandes preocupações, como o caso recente da morte a tiros de Márcio Moreira no último dia 14/07, ocorrida mediante emboscada contra cinco indígenas do povo Guarani Kaiowá na cidade de Amambai (MS)[3]. Segundo o último relatório disponibilizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o estado do Mato Grosso do Sul concentra o maior número de mortes em 2019. Num total de 113 homicídios, 40 ocorreram no respetivo estado. De acordo com Atlas da Violência 2021, entre 2009 e 2019, em números absolutos, houve 2.074 homicídios de pessoas indígenas

No que se refere ao espaço urbano aponta a gravidade das violências praticadas contra o povo negro, agudizadas pelo racismo estrutural – em 2019, pessoas negras representaram 76% das vítimas de homicídios[4]. Na perspectiva geracional, cabe destaque a histórica mortalidade por homicídio de jovens negros no país, com base numa pesquisa do Instituto Sou da Paz, entre 2012 e 2019, a taxa morte de jovens de negros foi 6,5 vezes maior que a taxa nacional[5].

Quanto a violência de gênero, nas suas diferentes dimensões territoriais, raça, classe, geracional e de crença religiosa, em uma comparação entre 83 países, o Brasil apresenta taxa média de 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, ocupando assim o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH)[6]. Pesquisas também apontam que as mulheres negras são as maiores vítimas de violência no Brasil. Consonante o Atlas da Violência de 2021, 66% das mulheres assassinadas no Brasil em 2019, eram negras.

O aumento da violência contra a população LGBTQI+   tem chamado nossa atenção, conforme levantamento do “Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+” aproximadamente 316 pessoas LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Intersexuais e outros) morreram no Brasil vítimas de atos violentos em 2021.[7] O Relatório Mundial da Transgender Europe aponta que, de 325 assassinatos de transgêneros registrados em 71 países nos anos de 2016 e 2017, um total de 52% – ou 171 casos – ocorreram no Brasil. 

No escopo das violências que resultam em mortes coletivas, não podemos esquecer Candelária, Carandirú, Corumbiara, Eldorado dos Carajás, Jacarezinho, dentre outras ocorrências.  No marco dos massacres no campo, a CPT contabilizou até o ano de 2021 a ocorrência de 57 massacres em 11 estados brasileiros. No espaço urbano entre 2021/2022 ocorreram 40 chacinas no Rio de Janeiro – RJ[8] (incluída a recente no complexo alemão no último dia 22/07).

Esse breve percurso de apresentação de alguns dados de violências físicas que resultam em mortes não excluem outras dimensões da violência que se fazem presentes nessas diferentes realidades, considerando sua complexidade temática e sua diversidade conceitual na relação com situações concretas. Elucida a profundidade das diversas violências que perpassam a luta pelo direito de existir e de acessar condições de vida digna dos grupos sociais no campo e na cidade.

No que se refere ao papel do Estado brasileiro frentes a situações de violências agravadas, os fatos recentes apontam que sua atuação vai na direção oposta ao respeito e promoção da dignidade humana. De modo a operar contra os direitos coletivos, agravando situações de violência e confirmando sua dimensão estrutural. Nesse sentido, Minayo e Souza (1998, p. 520) esclarecem que:

Os adeptos da força repressiva do Estado, tergiversando sobre as complexas causas da violência, reduzem sua concepção desse fenômeno à delinquência e tendem a interpretá-la como fruto da conduta patológica dos indivíduos. Ao mesmo tempo, absolutizam o papel autoritário do Estado no desenvolvimento socioeconômico das sociedades. As ideias desses intelectuais combinam com o senso comum, que advoga a força repressiva como condição de “ordem e progresso”.

Os fatos recentes impulsionados pela cúpula do atual governo brasileiro que incita a violência ancorada no falso discurso de ordem e progresso é exemplo nítido e atenta contra o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido cabe pontuar a função da violência como emblemático instrumento de domínio econômico e político sobre os grupos sociais nas suas diferentes constituições de classe trabalhadora. E que se enraíza em diferentes setores da sociedade que perpetuam essas violências nas suas diferentes realidades.

Violência estas que se alargam no processo eleitoral que atravessa o Brasil, como a violência contra cidadãos brasileiros no seu exercício de livre escolha de representação politica democrática, a exemplo do caso do assassinato de Marcelo Arruda. Consequentemente contra candidatos ou pré-candidatos e representantes de cargos eletivos, destaco aqui a memória do assassinato de Mariele Franco. Respectivas situações têm como pano de fundo impossibilitar o fortalecimento de um projeto democrático no país conquistado por meio de árduas lutas coletivas organizadas. O caminho sinalizado, conforme manifestações públicas, é o de inviabilizar liberdades asseguradas pelos pilares da democracia e que podem resultar em mais mortes, perseguição, ameaça e intimidação.

O alerta que nos move para o enfrentamento a violência nesse contexto, nos provoca situar que a recorrencial violência no Brasil é fruto das relações desiguais constitutivas da sociedade brasileira fomentada por uma politica de autoritarismo, exclusão e abandono que perpassa a dimensão de raça, classe e gênero. Nas mais diferentes formas de silenciamento onde a violência é utilizada contra a luta pela possibilidade de se constituírem defensores e defensoras de direitos humanos, interlocutores no processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas para efetivação de direitos numa sociedade democrática.

Essa reflexão nos mobiliza para o efeito pedagógico de considerar os pontos sinérgicos da causa e da reprodução da violência oponente a histórica luta dos povos numa ação de curto, médio e longo prazo. Possibilita ainda, situar estas lutas constitutivas de direitos, numa dimensão regional e sua inter-relação com as resistências construtoras da Paz no ambiente da América Latina.

Euzamara de CarvalhoPesquisadora, Jurista integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).


[1]     Pesquisadora, Jurista integrante da Executiva Nacional da ABJD.

[2]     https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/6002-cpt-divulga-relatorio-sobre-conflitos-

[3]     https://www.brasildefato.com.br/2022/07/15/em-emboscada-mais-um-indigena-guarani-kaiowa-e-assassinado-em-amambai-ms

[4]     Dados https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/9619-pb8atlasviolenciaversaodivulgacao.pdf

[5]     https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/negros-somam-80-das-mortes-violentas-de-jovens-no-pais-aponta-estudo/

[6]     https://who.canto.global/s/KDE1H?viewIndex=0

[7]     https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/quase-320-pessoas-lgbti-morreram-no-brasil-em-2021-diz-entidade/

[8]     https://www.brasildefato.com.br/2022/05/25/rj-governo-claudio-castro-tem-39-chacinas-e-178-mortes-em-um-ano-de-gestao-revela-estudo 

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