O abandono da verdade na delação premiada, por Salah H. Khaled Jr.

Jornal GGN – Em artigo para o Justificando, o doutor e mestre em Ciências Criminais, Salah H. Khaled Jr, questiona o instrumento da delação premiada e enumera os motivos pelos quais não vê a solução com bons olhos. “Penso que ele introduz enormes distorções no processo penal e ameaça fazer dele um balcão de negócios”.

Para o jurista, a delação: reforça a seletividade do sistema penal; introduz a lógica de que é preciso prender para obrigar a fazer acordo; faz daquele que se recusa a delatar um obstáculo para a persecução penal; não coloca limites claros para o que é ou não negociável, nem com quem.

“Finalmente, por que confiar na palavra de um delator? Ele é obrigado a dizer o que os negociadores querem ouvir. Se nada tem a dizer, obviamente não tem com o que negociar e, logo, é preciso inventar”.

Abaixo, a íntegra do artigo:

Do Justificando

Na República dos delatores, a verdade é o que menos interessa

Por Salah H. Khaled Jr.

Dediquei boa parte da minha formação acadêmica ao tema da busca da verdade no processo penal, enfrentado na graduação, mestrado e doutorado, sob a orientação de Aury Lopes Jr. Sustentei que o processo penal deve abrir mão da ambição de verdade, ou seja, que a centralidade do processo penal não deve estar vinculada ao que o julgador define como verdade alcançável – e desejável – com base em sua própria subjetividade. Redefini o regime de verdade do processo penal e defendi que um conceito de verdade como correspondência é absolutamente inadequado para a reconstrução narrativa que é feita pelo juiz, com base em rastros do passado. No entanto, embora tenha proposto um conceito substancialmente distinto do que é rotineiramente empregado pela maioria dos autores que discutem o processo penal, deixei claro que não defendia – como jamais defenderei – uma verdade exilada, isto é, expulsa do sistema processual penal. [i]

São muitas as razões para que a verdade não possa ser inteiramente deixada de lado: princípios como a presunção de inocência e o in dubio pro reo exigem uma concepção de verdade, ou perderiam completamente o sentido, como perderia sentido a ideia de que a carga da prova cabe à acusação. É comum que concepções narrativistas de processo flertem com a insólita ideia de atividade probatória desvinculada de uma conexão com a verdade, como ocorre também – ainda que não de forma tão flagrante – em conceitos como verdade formal e verdade processual. A verdade não pode ser substituída por efeitos retóricos de sedução, como também não basta o mero preenchimento formal de hipóteses legalmente estabelecidas. [ii]

De qualquer modo, não é propriamente essa a discussão que interessa aqui e sim o que a delação premiada representa enquanto manifesto e inaceitável abandono da verdade pelo processo penal. Como já referi em outras oportunidades, o instituto não me agrada por inúmeros motivos. Penso que ele introduz enormes distorções no processo penal e ameaça fazer dele um balcão de negócios. Não vejo como isso possa servir a qualquer propósito nobre, por mais que alguns possam dar ouvidos ao canto da sereia. São muitos os motivos para não ver a delação premiada com bons olhos. Relaciono rapidamente alguns deles:

a) Reforça a conhecida seletividade do sistema penal, uma vez que somente os eventuais autores de crimes complexos terão a possibilidade de fazer delação premiada, que “não é para ladrão de galinhas”, como foi inclusive abertamente dito alguns anos atrás.

b) Introduz a lógica de que é preciso prender para obrigar a fazer acordo, tornando a prisão um expediente da própria negociação, de modo semelhante ao corpo objetificado do herege, que era manipulado como coisa pelo inquisidor.

c) Potencialmente pode fazer com que aquele que se recusa a negociar seja transformado em inimigo, visto como obstáculo para a persecução penal e, logo, merecedor de tratamento “diferenciado” no pior sentido do termo.

d) Não existem limites claros para o que é ou não negociável, nem com quem se negocia e com quem não se negocia, o que possibilita uma margem enorme de seletividade, que potencialmente maximiza anomalias como a chamada criminalização seletiva da corrupção.

e) Penas sui generis decorrem da delação, o que é uma verdadeira aberração em nosso sistema penal: é comum que a figura da “prisão domiciliar” seja rotineiramente empregada, novamente demonstrando que somente alguns terão a sorte de não ter que se submeter ao martírio que é nosso sistema penitenciário, apesar de terem praticado crimes de enorme gravidade. 

f) Finalmente, por que confiar na palavra de um delator? Ele é obrigado a dizer o que os negociadores querem ouvir. Se nada tem a dizer, obviamente não tem com o que negociar e, logo, é preciso inventar.

Todas as situações acima demonstram de forma relativamente segura porque é necessário se acautelar contra a crença desmedida nas virtudes da delação premiada. Mas a letra “f” em si mesma conhece seu “ponto fora da curva”, que é o que particularmente interessa aqui. Um exemplo demonstra isso claramente: recentemente foi divulgado pela imprensa que “a delação de sócio da OAS trava após ele inocentar Lula”. [iii]

É surpreendente que a notícia não tenha provocado maior espanto na comunidade jurídica. Mesmo para um processo como “balcão de negócios” deve existir limites. A margem de discricionariedade que é dada aos negociadores faz das delações em questão um reflexo direto de suas próprias preferências, potencializando práticas punitivas absolutamente sui generis: não só consagram de forma velada um direito penal do autor – voltado para pessoas transformadas em alvos específicos e não para fatos – como elegem uma moldura restrita e previamente definida do que representa a “verdade” desejável. O resultado é claro: somente consumam a barganha mediante o preenchimento do déficit que aparentemente eles mesmos estabelecem. A exigência de correspondência entre o que se deseja ouvir e o que deve ser dito é tão grande que a insuficiência do relato para confirmar a convicção previamente definida do negociador basta para que a oferta seja imediatamente retirada da mesa.

O instituto já conspira para fazer do país uma República de delatores. Todos devem gravar não só o que é dito, como induzir eventuais peixes a comerem a isca, para que eventualmente tenham algo a oferecer no “mercado” caso se tornem potenciais clientes do sistema penal. Isso em si mesmo já seria suficientemente assustador e passível de fazer com que a vida diária se transforme em um exercício constante de paranoia. Mas o que mais impressiona é a guinada que a institucionalização da delação provoca na conexão do processo com a verdade, que ganha uma nova dimensão de sentido: se os inquisidores do passado investigavam a alma do acusado e dela pretendiam extrair sua essência, os atuais engaiolam passarinhos para que cantem em coro uma ópera já ensaiada e que ameaça fazer do eventual acusado um convidado para a filmagem de um roteiro previamente escrito. Ele deixa de ser o ingrediente principal e se torna a cereja do bolo, enquanto a verdade é esquecida, entulhada. Simplesmente não merece atenção e, logo, não desperta maior interesse, já que está fora da moldura.

Vou confessar uma coisa. Sempre detestei dedo-duro. Desde criancinha. Por mais dividida que fosse uma turma, sempre tínhamos um princípio de solidariedade. Ninguém contava quem atirou a bolinha de papel amassado em sala de aula. Essa regra raramente era contrariada. Mas acima de tudo, a professora jamais oferecia nota para que alguém dissesse que foi um aluno específico – do qual por algum motivo ela não gostava – quem atirou a bolinha… e muito menos deixava de dar nota quando o candidato ao prêmio o inocentava. Talvez algo tenha se perdido no meio do caminho. Terá sido a verdade?

Mais do que nunca, Carlos Drummond de Andrade é oportuno:

A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os dois meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram a um lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em duas metades,

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

As duas eram totalmente belas.

Mas carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Abraços e bom fim de semana!

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.


REFERÊNCIAS

i Ver KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

ii Ver KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.

iii http://m.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1776913-delacao-de-socio-da-oas-trava-apos-ele-inocentar-lula.shtml?cmpid=compfb

Redação

16 Comentários

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  1. É um estupro aos direitos

    É um estupro aos direitos fundamentais do cidadão, apenas ficarei nos mais relevantes: o devido processo legal, direito à ampla defesa e do contraditório, além da presunção da não culpabilidade. Ou seja, essas delações fere de morte todos os ensinamentos básicos que tivemos na academia à época da nossa graduação em direito.

    Por fim, é um absurdo, simples assim.

    PS: Porque o Cerveró somente agora abriu o bico, afirmando que na época de FHC a propina era muito maior? Ademais,  as provas desses bandidos confessos existe? Ou é que nem o Lombardi, que todo mundo sabe que um dia existiu, mas ninguém nunca viu, a não ser o Sílvio Santos.

    1. sinal de que com FHC ninguém lhe fez mal…

      teve toda liberdade, e não só em relação a ele, de parte a parte, hja vista que FHC nunca foi investigado

      e nem será (?)

  2. Nassif;
    Aqui no Brasil o

    Nassif;

    Aqui no Brasil o crime compensa.

    Um ponto que o autor não analisou: Na negociação o juiz concede ao delator a possibilidade de permanecer com parte do valor do crime.

    O seja o juiz tem poder de legalizar a posse de parte do bem roubado. É um absurdo!!!

    Temos como exemplo o caso do corrupto descarado paulo roberto costa.

    É revoltante, e péssima lição para as futuras gerações.

    Genaro

  3. Extremamente oportuno, embora

    Extremamente oportuno, embora parte da nossa sociedade já esteja fatalmente doente pelo efeito do veneno global. De imediato me veio à mente a delação de Delcídio (que foi premiado com prosão domiciliar com direito a entrevistas); quando saiu o aúdio do ex-senador, havia a citação a alguns ministros do STF. Quando a delação foi firmada com o STF, essa parte saiu, segundo consta, o próprio Delcídio recuou e disse que era só bravata. Acredita quem quer nisso; outros podem pensar que, se não era bravata, ele fez um grande negócio em recuar.  O que assusta é que o negócio tenha sido bem sucedido; por que a parte que ficou na delação é confiável? Porque o STF diz que é?

    Pior: Delcídio pode virar precedente; nas gravações do homem do PMDB também há referências ao STF. Elas desaparecerão após a consumação do golpe? 

    Mais grave ainda: a Lava Jato começou com a delação de um delator reincidente (Youssef), coisa que me parece proibida por lei. O mesmo juiz, o mesmo delator, o mesmo promotor do caso Banestado: coincidências? Se Youssef não poderia mais fazer acordo de delação, porque todos os yribunais superiores aceitaram ao arrepio da lei? Em breve Youssef estará livre para reincidir no crime; vai reincidir na delação também, se for o caso?

     

  4. delação é aceitação da justiça privada…

    faz com que o delator seja direcionado para a vingança ou para a desforra

    pior ainda, muitas vezes o delator é movido por reação instintiva para sua defesa com a colaboração

    além disso, muitas vezes, ao apontarem crimes, estão apontando tão somente um mal que o delatado tenha lhe causado

    sendo o mal a alegação de que era para atender políticos, mas de crime mesmo, só o praticado por ele, o delator

    é por aí que se faz a exploração política, impedindo a defesa inicial ou imediata de quem é delatado

  5. No dicionário Aurélio (o meu

    No dicionário Aurélio (o meu é a 2a. edição de 1986) a definição de corrupção é o ato de corromper; e corromper, segundo Aurélio, significa também subornar, peitar, comprar e o dicionário ainda exemplifica com a seguinte frase: “Corrompendo a testemunha, obteve depoimento falso”. Nada como um bom dicionário na vida.

  6. À Comunidade Jurídica, pelo

    À Comunidade Jurídica, pelo que vimos assistindo pouco interessa se Lula está sendo, desde sempre, um perseguido declarado por Moro e Gilmar, e até por outros ministros do Supremo. Há que se dar autoridade com autoritarismo a Moro, porque ele está sendo aplaudido pela população brasileira, em geral, e o Brasil tem sido visto como um país a passar a limpo toda a corrupção. Assim pensam eles, e é assim que tem que ser, e pronto.

    O esquema montado por Temer, que não esconde seu sentimento de ódio e inveja contra Dilma, que, apesar de tudo, ainda tem fôlego para atrair pessoas por onde passa a lhe aplaudir, enquanto pedem Fora Temer, contém gente graúda de todas as instituições, incluindo as do Judiciário, com o fito único de chegarem a ela, passando por Lula, ou vice-versa, de tal forma que nãos e encerre esse processo de impeachment sem que ambos sejam presos. 

    Hoje mesmo li que tem delator garantindo que Dilma se valeu de caixa 2 para se reler em 2014. Tendo em vista que foi esse caixa 2 que conduziu o julgamento do mensalão, não o tucano, resultando no desgaste indescritível do PT, com Joaquim Barbosa à frente de uma justiçamento sem rpecedente na história do brasil, é por vias como essa, de delação sem provas, que poderá em breve esses golpistas coneguirem traçar melhor suas linhas de conservadorismo no governo ilegítimo.

  7. Sempre que se fala em

    Sempre que se fala em delação, parece que o essencial é desprezado, jogado fora: a delação, em si, não constitui prova para coisa alguma, por mais que os desmoronados e os persecutórios procuradores queiram. A delação serve, apenas, como referência para o encaminhamento das investigações. Portanto, para ser acatada, a deduragem precisa estar fundamentada em documentos e outros quetais que levem à comprovação dos crimes delatados. No caso da lava-jato, no entanto, após a delação tanto faz se a mesma é comprovada ou não, a pf afirma a veracidade (mesmo sem comprovação), o que faz com que o mpf “corra” a fazer a denúncia ao juiz (de sempre). Só ler alguns inquéritos, denúncias e pronúncias na dita lava-jato…

  8. com refinamento, revigorado

    com refinamento, revigorado ainda mais por drummond,

    o mestre colocou de forma técnica todos os absurdos que ocorrem na famigerada lava-jato,.,..,

    brilhante!!!

  9. Nunca é demais falar: Dilma e

    Nunca é demais falar: Dilma e Lula sancionaram leis que abriram a possibilidade de uso da delação premiada na forma como está sendo feita. Não foi só nas indicações para o STF que erraram.

  10. Letra “G”

    Entre os motivos para se ver com reservas a delação, citaria mais um: o vazamento da delação é o primeiro crime evidente na própria delação.  Todo o restante terá que ser comprovado.  Entretanto, não ví até agora nenhuma providência para apurar os autores dos vazamentos, que atingem a honra de dezenas de pessoas e parecem ter nítida direção política. Que tal acabar com o segredo de justiça? Que segredo?

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