A política do ódio e as tentativas de assassinar presidentes. O caso Cristina Kirchner.
por Maíra Vasconcelos
Cristina Fernández de Kirchner era vice-presidente da Argentina, quando no dia 1 de setembro de 2022, Fernando Sabag Montiel, 37, apontou uma arma a poucos centímetros do seu rosto, apertou o gatilho e o disparo falhou. Mas ele não agiu sozinho. Apesar de afirmar que sim e que também não foi a mando de terceiros. Mas, logo, estaria em todos os jornais, “a quadrilha do algodão-doce”. Em recente depoimento, nos tribunais de Comodoro Py, localizado na avenida homônima, no bairro de Retiro, em Buenos Aires, Sabaj Montiel justificou o ato e, pela primeira vez, confessou sua intenção de matar a ex-presidente.
Há pouco mais de um mês, a notícia da tentativa de magnicídio envolvendo os vendedores de algodão-doce voltou aos jornais. “A doutora Kirchner é corrupta, rouba e prejudica a sociedade”. E completou, Sabag, “qualquer pessoa sente o mesmo que eu”. Como quem dá a entender que, além do mais, agiu em prol de outros, uma espécie de justiceiro. Afinal, disse que foi por um motivo “ético”, e que cometeu “um ato de justiça”. A fórmula presidencial, Alberto Fernández e Cristina Kirchner, ganhou as eleições de 2019 com 48,24% dos votos.
Naquele então, e mesmo anteriormente, o país já vivia um cenário político polarizado, kirchneristas versus macristas. Estava instalada a política do ódio, ainda que pouco comparável aos níveis alcançados com a retórica violenta do atual governo de Javier Milei. Era comum ver os meios de comunicação massivos reproduzirem o modo como Cristina Kirchner era chamada por opositores, “égua”, “terrorista”, “senhora atrás do botox”. Esse cenário que já era polarizado, entre a centro-esquerda e a direita, com a extrema-direita de Javier Milei, se aprofundou.
Tornaram-se cada vez mais recorrentes os debates, os artigos, os estudos, os editoriais que falam sobre a política do ódio. A manutenção e organização da política partidária acontecem, cada vez mais, através das emoções. Sustentam alguns analistas. Quer dizer, o ódio como possibilitador da opinião política e do pertencimento social. Milei e Bolsonaro são dois claros exemplos, de êxito, do uso político do ódio. O ódio gera laços sociais.
A tentativa de assassinato à Cristina Fernández voltou à cena, recentemente, com o início do julgamento oral dos três acusados. Nomeados na mídia como vendedores de algodão-doce, trabalhavam na porta de escolas e em praças. “Brenda Uliarte queria ser espectadora daquele momento, mais do que participante”. Assim foi como Sabag Montiel falou sobre a atuação da sua ex-namorada, também presa e acusada como co-agressora. Ainda no mesmo dia, após a tentativa frustrada do magnicídio, Brenda enviou as seguintes mensagens de celular: “Da próxima vez, eu vou e gatilho. Eu, sim, sei disparar bem. A minha mão não vai tremer”.
Essas mensagens foram dirigidas ao terceiro envolvido, Gabriel Carrizo, 28, acusado como participante secundário, que teria dado a arma a Sabag. Os três continuam presos, desde setembro de 2022. Nos jornais, uma diferença para as manchetes foi que Carrizo, segundo consta, é o “chefe da quadrilha do algodão-doce”. Ele seria o dono do carrinho de venda dos “copitos”, em espanhol também se diz “copos de azúcar”. Por isso, “copitos”, no diminutivo. Se essas manchetes dos algodões-doces e “los copitos” foram capazes de atrair mais clicks, isso é algo que talvez seja possível supor que sim.
Nesse primeiro testemunho, Brenda se apresentou aos tribunais de Comodoro Py visivelmente debilitada e não concluiu o depoimento. Errou a própria idade, disse ter 24 anos, e tinha feito 25, alguns dias atrás. Ficou em dúvida ao responder data e local de nascimento. Quando foi perguntada sobre com quem morava, quando da tentativa de assassinato, respondeu olhando para Fernando Sabag: “com um condenado e um manipulador”. Há uma semana, enquanto acompanhava o depoimento de um secretário privado de Cristina Kirchner, via Zoom, Uliarte riu, bocejou e fez outros gestos em frente à câmara. Por essa razão, a sessão foi interrompida, mais de uma vez.
Naquele 1 de setembro, há quase dois anos, no momento em que Sabag atentou contra CFK, acontecia apenas mais uma jornada de vigília da militância na porta da casa de Cristina Kirchner, no bairro de Recoleta, em Buenos Aires. Nesse dia, a ex-vice-presidente também autografou seu livro, “Sinceramente”, publicado em 2019. A peronista CFK, ao longo de sua jornada política, é uma figura que tem despertado tanto amores como ódios extremos.
Em 2015, uma edição da “Revista Notícias”, conhecida por sua perseguição à figura de Cristina Fernández, exibia na capa a ex-presidente apontando o dedo para a própria cabeça, como se fosse uma arma. E o titular dizia, “O jogo suicida de Cristina”. Quando da tentativa de magnicídio, muito se discutiu sobre o papel dos meios de comunicação como difusores do ódio na política. E também as redes sociais como lugar de estímulo de tais práticas.
Ainda no mês do atentado, em 2022, as notícias circulavam insistentemente citando “a quadrilha do algodão-doce”. A foto de Cristina Kirchner com a arma apontada a centímetros do seu rosto, assunto que também ocupou os principais jornais do mundo, ainda dominava o debate público local.
Canais de televisão estavam eufóricos, naqueles primeiros dias de setembro. A imagem, uma captura de vídeo dos vendedores de algodão-doce, “los copitos”, sua seriedade e pose em uma imagem tirada da televisão, vista por milhões. “Urgente: fala a namorada do detido”, anunciava em vermelho o programa Telefé Noticias, menos de 24 horas após o ocorrido. E Brenda Uliarte, ao vivo, respondia ao apresentador, “fiquei sabendo pela tevê”, que o namorado Sabag tinha disparado contra CFK. Continuava o apresentador com suas perguntas, “E como foi esse momento?”. Dois dias após sua participação no Telefé, e passados três dias da tentativa de magnicídio, Uliarte foi pega pela polícia em uma estação de trem, em Palermo, Buenos Aires, e levada presa.
Enquanto isso, desde então, se investiga as possíveis ligações dos três participantes do atentado com outros grupos políticos. “Revolución Federal”, grupo de extrema-direita, tidos como neonazis, ficaram conhecidos por seus escrachos na Praça de Maio e arredores. Com tochas e uma guilhotina de madeira, esse grupo de jovens, liderado por Jonathan Ezequiel Morel e Leonardo Franco Sosa, de 25 anos, protestava contra o governo peronista, com cartazes que diziam, “todos presos, mortos ou exilados”. A guilhotina, claramente, estava ali para demonstrar o que se deveria fazer com os políticos.
Gabriel Carrizo, chamado de chefe dos “copitos”, estaria vinculado ao grupo da guilhotina, que, aliás, é de fabricação caseira. Há fotos de Ezequiel Morel, em sua oficina, sorridente, ao lado de seu artefato construído para os protestos. A pedido da defesa de Cristina Kirchner, os membros do “Revolución Federal”, investigados por participação no atentado, estão proibidos de se aproximarem da ex-presidente e de sua família. No entanto, os três implicados na tentativa de assassinato a CFK, Ezequiel Morel, Franco Sosa e Gastón Ángel Guerra, participaram de manifestações a favor do governo Milei e foram convidados para a Câmara dos Deputados pelos deputados de “A Liberdade Avança” (LLA), partido do governo.
Longe de tantas possíveis redes e tramas entre diferentes envolvidos, Adélio Bispo dos Santos, o autor da facada contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, em plena campanha, em 2018, agiu sozinho. Ele discorda da conclusão final do caso que conclui “insanidade mental”. Disse que “nunca concordou com a tese de defesa de seu advogado, que alegou sua insanidade mental” e que “é réu confesso e gostaria de ter sido tratado como tal somente”.
As palavras que nunca se saberão de uma tentativa de magnicídio, serão as de Thomas Matthew Crooks, 20, autor dos disparos contra Donald Trump, durante ato de campanha no estado da Pensilvânia. O menino, “o atirador”, foi morto no momento dos disparos pelo Serviço Secreto dos Estados Unidos. O bolsonarismo sustenta um discurso de ódio. O discurso do trumpismo é, igualmente, um discurso violento.
Sintonizar com sentimentos de ira, ódio, agressividade e raiva é uma estratégia política. As ultradireitas têm conduzido seu eleitorado, não somente, mas também através dessas emoções. Enquanto o surgimento das extremas-direitas é um fenômeno ainda relativamente recente, e, portanto, em vias de se saber os resultados de seus programas sócio-culturais e econômicos, as tentativas de assassinar presidentes têm atravessado séculos.
Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).
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No caso do Adélio gostaria de saber qual foi o congressista que ficou marcado a visita do Adélio no dia do atentado.
E se os advogados queriam só exposição e trabalharam “pro bono”.
Pararam de chamar o autor do atentado a CK de “brasileiro” ? Bom.