Na Argentina, “A liberdade avança” tal qual a antidemocracia
por Maíra Vasconcelos, especial para Jornal GGN
Uma avalanche talvez seja uma boa imagem para resumir e representar estes primeiros meses de 2024 na Argentina. Seis meses de governo, e a motosserra do ajuste fiscal de Javier Milei avança, principalmente, sobre o setor de obras públicas, aposentadoria e retirada dos subsídios em transporte e energia. Com o Estado nas mãos da coalizão “A liberdade avança”, LLA, sua sigla em espanhol, também avançam as políticas antidemocráticas contra manifestações de rua e meios públicos de comunicação. Por exemplo, o que era a Agência Télam, a maior da América Latina, ficará restrita a uma agência de publicidade e propaganda. A repressão tem sido legitimada politicamente com o protocolo “anti-piquete” (proíbe bloqueio de ruas e avenidas), colocado em prática em diversos protestos pela ministra de Segurança Patricia Bullrich, com dezenas de detenções arbitrárias.
Mas não somente, Milei vai pro tudo ou nada e avança em todas as frentes, educação pública, um governo que fala em “doutrinação” nas escolas e pretende combater o que chamam de “marxismo cultural”, direitos humanos, lei do aborto e do matrimônio igualitário. Com seu afã de refundar o país, o presidente disse em seu discurso de assunção, “começa o fim da decadência argentina”.
Para provocar esgotamento, para impossibilitar o próprio debate público de todos os assuntos, sabe-se que é estratégico e proposital o ritmo vertiginoso com que o governo tem apresentado projetos de lei, eliminado organismos públicos, aberto discussões e tomado decisões que envolvem questões sócio-culturais.
Para citar dois exemplos, foi proibido o uso de linguagem inclusiva nos departamentos públicos. Foi fechado o ministério* de Mulheres, Gênero e Diversidade. Este último, com o argumento insólito de que o órgão tinha um “viés ideológico na defesa discriminatória das vítimas”. Quer dizer, há outras vítimas, além das mulheres, trans e travestis que não estão sendo assistidas, por isso, então, discriminadas. Além de ter atacado o governo anterior de usar o ministério para “propagar e impor uma agenda ideológica”. Quando o governo de ultradireita está caracterizado por uma ultra-ideologização, por justamente fazer da batalha cultural um dos pilares de seu mandato.
O disciplinamento daqueles que protestam nas ruas, faz parte da batalha cultural contra o “comunismo”. A ministra de Segurança é a funcionária do governo com melhor imagem positiva, 47%, seguida do ministro da Economia, Luis Caputo, 24%, segundo pesquisa de opinião, de maio deste ano. O índice de aprovação do governo é de 48% **.
Em abril, ao anunciar em cadeia nacional o superávit fiscal***, registrado no primeiro trimestre do ano, Milei se auto-elogiou por sua política da motosserra. O repasse de verbas às províncias sofreu um corte de 78%, “um sistema tóxico”, acrescentou, após citar os números. E a redução nas obras públicas, um corte de 87%. Este setor, “um festival de corrupção”, definiu o presidente. Nesse mesmo anúncio na rede de televisão, afirmou que “a era do suposto Estado presente chegou ao fim”. Grandilocuente é um adjetivo encontrado com frequência na mídia local, para definir o programa de governo de Milei, que tem posto em prática o maior ajuste da história do país.
A política da repressão a manifestantes e criminalização de protestos vai na mesma direção de um governo que também reivindica uma revisão da história recente do país, ao defender os responsáveis pelos crimes cometidos na última ditadura cívico-militar (1976-1985).
Durante a votação e aprovação da “Lei Bases”, principal projeto do governo, no último 12 de junho, a vice-presidente e presidente do Senado, Victoria Villarruel, enquanto conduzia a sessão, discutiu com o senador Eduardo “Wado” de Pedro, que pedia um intervalo devido à repressão que ocorria do lado de fora do Congresso. “Não me faça entrar em sua história pessoal”, ameaçou Villarruel. Wado de Pedro teve o pai e a mãe assassinados pela ditadura militar. Sem meias-palavras, Villarruel trouxe à sessão o passado do senador.
Troca de favores no Congresso
O governo Milei, o primeiro de extrema-direita da Argentina, desde a volta da democracia, é um experimento “libertário” que tem conseguido colocar em prática seu projeto de país, muito menos por reconhecimento eleitoral de um partido com força legislativa, já que “A Liberdade Avança” (LLA) prima por uma parca representação no Congresso, e sim muito mais pelas alianças, conchavos e troca favores entre os partidos de centro e de direita para aprovação do mega-pacote de novas leis impulsionado pelo Executivo, a “lei Bases”. O governo não conta com nenhum prefeito e governador eleitos.
Um caso de troca de favores foi o da senadora Lucila Crexell, da província de Neuquén, Sul da Argentina, que votou a favor da “Lei Bases”, contradizendo suas ações até aquele momento. Um dia antes da votação, Crexell confirmou que aceitaria, do poder Executivo, o cargo de embaixadora da UNESCO em Paris. “Não tem a ver com a lei Bases”, disse.
Após a vitória do governo e aprovação definitiva nas duas câmaras, triunfo inegavelmente importante para sua governabilidade, com isso, o presidente já pode colocar em marcha o modelo de país que pretende, como é o caso da alardeada diminuição ou “destruição” do Estado, nas palavras do próprio Javier Milei.
Na newsletter diária do jornal digital “Letra P”, enviada aos inscritos, via e-mail, o jornalista Marcelo Falk apontou um dos pontos polêmicos da lei Bases, que diz respeito aos poderes legislativos concedidos ao Executivo.
“O projeto de lei original – frustrado – dava poderes ao presidente para governar por decreto em onze áreas – praticamente todas as imagináveis – o que constituía uma violação flagrante da divisão de poderes. Na lei que acaba de ser aprovada, “apenas” quatro áreas foram mantidas: administrativa, econômica, financeira e energética. Isso ainda é muito”.
A aliança “A Liberdade Avança” foi composta em 2021, nascida na pandemia, formada para as eleições legislativas daquele ano. Há de se considerar o salto que os “libertários” deram de uma eleição a outra. O “Partido Libertário” passou de três a 37 deputados, sendo que 34 foram eleitos no ano passado. Dentre as minorias na Câmara dos Deputados, o partido do governo representa, hoje, a primeira minoria.
Qual o rumo da motosserra
Diante desse cenário violento comandado por um presidente histriônico, alguns se perguntam aonde irá desembocar todo esse vertiginoso cotidiano imposto pela extrema-direita de Javier Milei e sua “liberdade avança”. Em seus posts nas redes sociais, Milei repete como um mantra, “viva a liberdade, caralho”.
Sem que se possa, sequer, arriscar um cenário a curto prazo, fato é que a Argentina tem adentrado ao período de crise mais conturbado dos últimos anos. Após ter conseguido passar pela crise de 2001, parece que este é o momento onde o país volta a se perguntar como sairá desta crise. Se o pós-2001 significou a retomada de bandeiras como a dos direitos humanos e a efervescência de novos movimentos sociais, o atual momento político prima por um Executivo que tem feito o possível para inculcar na sociedade uma nova cultura, que esteja distanciada da luta pelos direitos e justiça sociais. E que, além do mais, deve fazer o possível para abafar essa espécie de revanche social contra as inúmeras injustiças que assolam não somente a Argentina, mas todos os países da América do Sul.
* Na Argentina, 101 pessoas foram mortas por violência de gênero, entre janeiro e abril, deste ano. E 106 crianças e adolescentes ficaram órfãos de mãe. Segundo o Observatório de Feminicídios “Adriana Marisel Zambrano”. Em 2023, foram registrados 250 feminicídios no país, segundo dados da Corte Suprema.
** Pesquisa de opinião realizada entre 17 e 23 de maio, pela “Universidad de San Andrés”.
*** No primeiro quadrimestre deste ano, a Argentina registrou superávit fiscal: “A queda real nas pensões e aposentadorias representou 35,3% do ajuste total do governo nacional, na comparação com os primeiros quatro meses de 2024 e igual período do ano passado”, segundo o site chequeado.com. O superávit fiscal é quando o Estado gasta menos do que arrecada, em caso contrário se diz déficit fiscal.
Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).
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