Será a Vez da Venezuela?, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Antes de Chavez assumir o poder, a produção de petróleo era de 3,12 milhões de barris por dia, em grande parte entregue para os EUA

Será a Vez da Venezuela?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Notícias recentes dão conta de que, a partir de julho, a Venezuela poderá começar a suprir a União Europeia com petróleo, devido ao boicote que a região pretende fazer à Rússia. Será isso possível? Se for, em que medida? Não é uma questão de futurologia, porém, de realismo. Para isso, é preciso entender como funcionou o boicote americano ao fato de Maduro ter permanecido no poder.

Antes de Chavez assumir o poder, a produção de petróleo na Venezuela era de 3,12 milhões de barris por dia, em grande parte entregue para o maior consumidor do mundo, seu quase vizinho Estados Unidos. Isso que deixava o país entre os maiores produtores do mundo, numa posição geográfica privilegiada. A partir daí, a produção estagnou-se, assim como as vendas, graças à entrada agressiva da Rússia nesse mercado. Contratos de fornecimento de longo prazo, bem como a construção de oleodutos e gasodutos tornaram a Europa cliente cativa da produção russa.

Alardeou-se que o dinheiro do petróleo estaria financiando ganhos sociais. De fato, as estatísticas mostram que as camadas mais humildes da sociedade melhoraram de vida em vários quesitos, cujo relato não faz parte do tema desta matéria. O que aqui importa é que o consumo per capta excede os 4 l por dia, como mostra a tabela 1. Isso deixa o consumo dos venezuelanos semelhante ao dos países europeus que, além de deficitários em petróleo, ainda precisam enfrentar um inverno que, sem aquecimento, pode ser mortal. Esse consumo chega a ser surpreendente, posto que o país conta com hidrelétricas de grande porte, como é o caso da Simon Bolivar, que rivaliza  com a nossa Itaipu. Era para 85% da energia elétrica advir dos recursos hídricos, garantindo um consumo per capta de petróleo semelhante ao do Brasil, que fica ao redor dos 2,4 litros por dia, como demonstra a mesma planilha. Parte do alto consumo interno está na decisão de Chavez por investir em termoelétricas, mais ou menos como pretende nosso governo atual com a privatização da Eletrobras. O consumo interno não seria problema se a Venezuela não tivesse sofrido com uma extrema baixa na sua extração, que caiu para 788.000 brl/d e, como o consumo interno excede os 734.000 brl/d, sobram pouco mais de 45.000 brl/d para exportar.

Essa baixa deveu-se a que o petróleo venezuelano é um dos mais pesados do mundo, piche puro, necessitando de petróleo mais leve para aumentar sua fluidez e facilitar a extração. Com o boicote americano, esse material mais leve não chega ao país, obrigando a desativarem-se muitos poços. A ajuda com combustíveis e material para injetar nos poços tem vindo do Irã, muitas vezes, com transferência “ship to ship” (S2S), como o que provocou o acidente ambiental no Nordeste, entre 2019 e 2020.

Ao mesmo tempo, tanto as reservas como as contas do país estão bloqueadas por ordem dos Estados Unidos, impedindo que o país invista na recuperação de sua indústria petrolífera. É claro que, quando essas medidas asfixiantes foram tomadas, não se imaginava que a Rússia viesse a reagir com violência à expansão da Otan e que outra saraivada de bloqueios viesse a conturbar ainda mais ojá frágil mercado de petróleo. A rigor, não dá para prever quanto tempo será necessário para que o país retome sua produção original, mesmo contando com as maiores reservas conhecidas do mundo. O que se pode depreender é que qualquer apelo pelo aumento na produção deverá vir acompanhada por afrouxamento nas sanções  Aliás, não é possível saber quanto tempo a guerra vai durar e se a Europa, cujo consumo per capta fica entre os quatro e os cinco litros por dia, pode, politicamente, prescindir do produto russo, muito mais próximo e com custo transporte muito inferior. Na medida em que o conflito aproxime-se do inverno o clamor popular por combustível barato exacerba-se e fica difícil sustentar o boicote.

Também contar com a China não parece ser uma solução segura porque, com o boicote, a Rússia tende a dirigir sua produção a ela, exportando-a via oleodutos, já existentes ou em construção.

Sim, a guerra pode ser uma grande oportunidade para a Venezuela levantar-se economicamente, porém, mais pela possibilidade do afrouxamento das sanções do que pela assunção do mercado pretensamente vago pelo boicote da União Europeia à Rússia que, cabe lembrar, tem uma produção equivalente à da Arábia saudita e um consumo pouco maior que o brasileiro, permitindo exportar algo como oito milhões de barris por dia, cifra difícil de ser substituída a curto prazo. Resta saber como isso será trabalhado politicamente, na esperança de que o povo deixe para trás tamanho sofrimento.

2022-06-07-sera-a-vez-da-venezuela-a

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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1 Comentário

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  1. Considerando a baixa dependência externa do Brasil, como se analisa a propalada necessidade de referência cambial na formação de preços dos derivados para consumidores?

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