Será o fim da globalização?, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Ocorre que as moedas não são somente meios de troca, porém, parâmetros de comparação.

Será o fim da globalização?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A moeda norteou a contabilidade e a contabilidade proporcionou sua transformação de pedaços de metal precioso em meros papéis em que se poderia acreditar. Na Baixa Idade Média, resolvida a sequência de invasões em território europeu, criou-se um sistema de comércio internacional. Era a Liga Hansiática, que se estendia do norte da Inglaterra à Europa central. Muitos historiadores atribuíram-lhe a cidade de Lübeck como capital econômica. Esse sistema não suportaria os salteadores, muito parecidos com os cangaceiros que vagaram no Brasil entre os séculos XVIII e XX. Transportar metais em alforjes, em baús em carros de boi não era viável. Foi quando se criaram as letras de crédito, que permitiam que um importador viajasse com um papel, a ser descontado no destino, e voltasse com suas mercadorias pagas. Alguém tinha de controlar isso, daí o avanço da contabilidade. Mas foi justamente o seu desenvolvimento que multiplicou  os negócios.

Sem dúvida, eles eram traduzidos em unidades monetárias, mas, como elas eram baseadas em peso de metais preciosos, não havia mistério algum nos cálculos de câmbio. Era uma relação física somente. Era o nascedouro de uma economia-mundo, em que todos os participantes afetavam e eram afetados pelas condições econômicas dos demais. Chamar de mundo é fruto da arrogância europeia, que sempre primou pela visão eurocêntrica da História. Havia relações econômicas no resto do mundo, desde a China e o Império Mogol, até a América do Sul com seus “peabiru” (caminhos para o Peru). O que destacou a Europa foi a sistematização das transações que resultou nos bancos, como entidades de crédito e assunção de riscos. O volume de transações, assim como o fluxo de papéis, passando de mão em mão, induziram a adoção de um padrão monetário como referência. No século XIX era a libra esterlina. Era em libras que banqueiros e economistas se referiam a tudo o que acontecia no mundo, até na avaliação dos “negócios da China”, ela se manteve no topo até o período entre guerras, sendo substituída pelo dólar, graças ao acordo de Bretton Woods, no fim da II Guerra. Há quem diga que o acordo ruiu, em 1971, com o anúncio de que o dólar não seria mais conversível em ouro. Ao ver deste autor, isso não aconteceu, pois as transações continuaram medidas em dólares, mesmo entre países com moedas próprias.

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Foi então que os Estados Unidos viram que tinham em mãos uma arma muito mais devastadora que qualquer bomba, os papéis lançados contra sua dívida pública, que, por serem considerados sem risco, passaram a ser o porto seguro para indivíduos e países de toda a face da Terra. Começaram-se a bloquear reservas de quem descumpria uma ordem, ou que se comportasse mal perante os padrões estado-unidenses. O primeiro teste foi com Cuba, daí para a frente, a medida aplicou-se a um sem-número de países, sendo os mais atingidos Cuba, Venezuela e Irã, até que, com a guerra na Ucrânia, os estados Unidos ultrapassaram a linha vermelha, bloqueando reservas russas, além de outras sanções em âmbito financeiro. A Rússia estava em outro patamar, seja em volume, seja em poder bélico, e não aceitou o castigo. Passou a cobrar o petróleo em rublos. O mundo passou a ver como roubo alijar um país de reservas oriundas de pagamento por exportações. Acendeu-se a desconfiança de usar o dólar como meio de troca internacional, pondo-se em risco os valores amealhados com o esforço nacional. Pondo em outros termos, Venezuela, Irã e Rússia venderam petróleo e os compradores pagaram por ele e o refinaram, consumindo-o em seguida. Na crença de que estariam em lugar seguro, esses países depositaram o pagamento por suas exportações em bancos americanos, bem como compraram títulos do tesouro dos Estados Unidos. Tomar-lhes as reservas, independentemente da desculpa, é roubo. Não é calote porque a mercadoria foi paga por quem comprou, provavelmente, envolvendo muitos países, incluindo os Estados Unidos, mas não só eles.

A guerra só acelerou um processo de há vinte anos, induzindo os países a vender seus bens exportáveis em moedas outras, preferencialmente, nas próprias.

Ocorre que as moedas não são somente meios de troca, porém, parâmetros de comparação. Digamos que a multiplicidade de moedas nas relações internacionais sejam uma tendência inexorável. Levemos a ideia ao absurdo, considerando aproximadamente cento e noventa países com cento e noventa moedas distintas. Como ficaria a contabilidade? Como se comparariam empresas? Como se estimariam ativos? E os relatórios financeiros, que são base para as negociações em bolsas internacionais, como se fariam? Como ficariam as operações de crédito internacional? E a globalização seria substituída pelas negociações bilaterais? Como funcionariam o World Bank e o FMI?  Os registros ficariam tão complexos, as comparações tão inexequíveis que fica difícil imaginar, muito menos, prever os resultados de semelhante movimento.

Evidentemente, haveria sempre moedas preponderantes, mas mesmo elas não conseguiriam mitigar todas as dificuldades operacionais da desdolarização em massa. A História mostra que alguma outra moeda assumiria o papel do dólar, como ele assumiu o papel da libra esterlina, que tomou o lugar dos metais preciosos. A globalização, por sua vez, poderia até ter alguma inflexão, porém, nada significativo. Ela não depende somente da moeda, mas dos hábitos de consumo cuja tendência à pasteurização parece ter-se cimentado pela imensa maioria da humanidade. Sim, é de se esperar que o dólar perca o trono, porém, jamais que seu papel não seja substituído.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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