A Estratégia Feminista Para Além da Representatividade, por Nadejda Marques

Congresso Americano tem um número recorde de mulheres, com 144 mulheres congressistas (120 mulheres na Câmara e 24 no Senado).

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A Estratégia Feminista Para Além da Representatividade

por Nadejda Marques

Em janeiro de 2021, no seu histórico discurso de posse como vice presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris ressaltou: “Embora eu seja a primeira mulher neste posto, não serei a última.” Aliás, além de ser a primeira mulher vice-presidente, Harris é a primeira mulher afro-americana e de descendência indiana no segundo posto mais alto no país mais poderoso do mundo.

O Congresso Americano tem um número recorde de mulheres. No Congresso, atuam 144 mulheres congressistas (120 mulheres na Câmara e 24 no Senado). Ao todo, as mulheres são mais de um quarto do número total de congressistas, o maior percentual de toda a história dos EUA. No Supremo, são três mulheres: Sonia Sotomayor (latina), Elena Kagan (judia) e Amy Coney Barret (a mais jovem da Corte) e, a partir do segundo semestre deste ano, quando Ketanji Brown Jackson (primeira ministra negra do Supremo Americano) toma posse, serão quatro mulheres. Mais um recorde histórico.

Temos representatividade recorde no executivo, no legislativo e no judiciário americano. No entanto, a diversidade e representatividade no legislativo, judiciário e executivo embora importantes não foram suficientes para avançar ou assegurar os direitos das mulheres nos EUA. Focar as energias somente em representatividade é entrar num jogo de cartas marcadas pois as instituições dos três poderes são fundamentalmente elitistas, patriarcais e anti-democráticas. Graças ao voto indireto, dois dos quatro últimos presidentes americanos foram eleitos sem a maioria do voto popular (George W. Bush e Donald Trump). Cinco dos nove ministros do Supremo foram nomeados por presidentes que não foram eleitos pela maioria do eleitorado (2 nomeados por George W. Bush e 3 por Donald Trump). Foram confirmados por um Senado que atribui mais poder e importância aos interesses de pessoas que vivem em estados com baixa densidade populacional pois cada estado é representado por dois senadores independente do número de habitantes (notem, a Califórnia, estado mais populoso dos EUA, tem uma população 68 vezes maior do que a população de Wyoming, estado menos populoso e os dois estados são representados por dois senadores, cada). Esse desequilíbrio é exacerbado quando se considera a composição da população dos estados sendo que os estados menos populosos são predominantemente representados por eleitores brancos. O resultado é uma super-representação dos interesses de eleitores brancos de regiões rurais no Senado.

Nesse contexto, desde o início deste ano, nove estados americanos aprovaram leis proibindo o aborto. Sendo assim, se juntam aos mais de 20 estados que estão em fase de aprovação ou já aprovaram leis criminalizando o aborto. Mais recentemente, na semana passada, o jornal Politico publicou o rascunho de uma opinião (cuja a autenticidade foi reconhecida pelo presidente do Supremo)  que revertería a decisão de 1973 que garante o direito ao aborto a nível federal (Roe v. Wade). Os cinco ministros que votariam a favor dessa reversão são precisamente os cinco nomeados pelos presidentes Trump e George W. Bush que chegaram à presidência apesar de perderem o voto popular. Vão em contramão a opinião da maioria dos americanos que apoia Roe v. Wade, quer dizer, o direito ao aborto.

Não é a primeira vez que a decisão Roe v. Wade corre o risco de ser revertida. Grupos conservadores trabalham há décadas para conseguir isso. A decisão Webster v. Reproductive Health Services, de 1989 e, em 1992, a decisão Planned Parenthood v. Casey eram, na verdade, decisões sobre se estados poderiam legislar restrições ao direito ao aborto. Mas, Roe v. Wade vai além da garantia de acesso ao aborto pois a decisão se constrói com base em uma interpretação da Constituição Americana que não se limita aos direitos expressamente reconhecidos pelos autores da mesma nas últimas décadas do século XVIII. Assim, embora a questão do acesso ao aborto nos Estados Unidos tenha se tornado o centro das atenções não é a única expressão dos ataques dos conservadores e os reacionários aos direitos básicos. A reversão de Roe v. Wade poderia derrubar todas as outras decisões do Supremo sobre direitos reprodutivos como o direito ao planejamento familiar e direitos relacionados à privacidade como o direito ao casamento interracial e ao casamento homoafetivo uma vez que todas elas dependem do direito à privacidade, direitos eviscerados no rascunho da opinião vazada ao público.

No passado, sempre que a reversão da decisão sobre Roe v. Wade era uma possibilidade, protestos em massa e mobilização de setores influentes  teriam convencido os ministros (justices) a manter a decisão e, consequentemente,  a “integridade” do Supremo. Não está claro que os protestos seriam suficientes hoje em dia. Como todos os movimentos progressistas, as feministas americanas são atacadas por movimentos conservadores responsáveis por campanhas que mobilizam bases reacionárias e contam com o apoio de instituições que foram criadas para manter a distribuição desigual de riqueza e de poder a nível local, estadual e federal. A diferença agora é que, nos Estados Unidos, a radicalização anti-democrática do partido Republicano e de tantos cidadãos estadunidenses é uma realidade que se intensifica a cada dia. Mesmo aqueles políticos Republicanos que se opoem a Trump em algumas questões políticas parecem não se importar muito com os rumos da democracia americana e/ou em defender os direitos das mulheres. Vale lembrar que Trump se elegeu com uma campanha que pregava abertamente o fim de Roe v. Wade e a nomeação de uma maioria conservadora anti-aborto ao Supremo. Mas, a desmobilização é um luxo que o movimento feminista não pode se dar. Pelo contrário, feministas precisam se mobilizar ainda mais e de forma estratégica. Não basta avançar na representação nas instituições existentes, pois, nunca houve tanta representação feminina com resultados tão nocivos para as mulheres. A mobilização estratégica, contudo, é uma mobilização de transformação das instituições. É preciso mobilizar o Congresso para que este aprove legislação que garanta o direito ao aborto (como o Women’s Health Protection Act) em todo o país. É preciso pressionar o Congresso para que aumente o número de ministros do Supremo e acabe com o cargo vitalício (que, aliás não está determinado na Constituição) e, aproveitando, promover uma emenda que permita eleições presidenciais diretas, elemento básico de qualquer democracia moderna. Doa a quem doer, é preciso tornar os Estados Unidos num país democrático.

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

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