Conselhos Tutelares e o fim da laicidade, por Rui Martins

Dominar o pensamento juvenil, extirpando o risco das revoltas e rebeliões contra velhas crenças e tabus e a discussão de novos padrões sociais, sempre foi o desejo dos líderes de países totalitários.

no Observatório da Imprensa

Conselhos Tutelares e o fim da laicidade

por Rui Martins

O constante crescimento dos evangélicos logo colocará em questão uma das normas máximas da nossa República: a laicidade. Depois de terem descoberto sua força política nas últimas eleições, os líderes evangélicos parecem decididos a intervir em todos os setores do governo, podendo transformar o Brasil num país religioso, cujas leis precisarão passar pela aprovação das igrejas, como acontece na Polônia católica e no Irã muçulmano.

O primeiro sinal ficou evidente no domingo, na eleição dos membros dos Conselhos Tutelares, chamados a agir junto às crianças e jovens em idade escolar. A escolha dos candidatos a conselheiros e sua eleição, em todo o Brasil, foi preparada com bastante antecedência pelas igrejas evangélicas, com o objetivo de ganhar o controle desse setor importante e nele praticar a doutrinação conservadora.

À primeira vista, muitas pessoas podem considerar positivo o interesse das igrejas em agir no meio escolar, pois – imaginam – isso permitirá às crianças e jovens o conhecimento e acesso à doutrina e códigos morais cristãos, capazes de criar bons comportamentos sociais dentro da sociedade.

Entretanto, essa impressão inicial é enganadora. A intervenção religiosa e o fim da laicidade na área do ensino poderão, isso sim, criar uma sociedade formatada, submissa, pronta a obedecer e se sujeitar aos detentores do poder. Dominar o pensamento juvenil, extirpando o risco das revoltas e rebeliões contra velhas crenças e tabus e a discussão de novos padrões sociais, sempre foi o desejo dos líderes de países totalitários.

Toda religião é conservadora e tem em si o germe do totalitarismo, por uma questão simples: ela já detém nos seus dogmas o acesso ao absoluto. Por sua vez, o absoluto já possui um código moral rígido e bem definido e um sistema de gratificação e punição cuja consequência é a submissão devida pelos devotos.

No caso dos evangélicos, com a vulgarização populista ou a deturpação do pensamento dos líderes da Reforma, não é preciso ir muito longe e nem fazer um esforço intelectual para constatar a propagação do conformismo e do retrocesso moral com um objetivo: dar o respaldo necessário a um Estado reacionário, senão francamente fascista.

A influência religiosa se faz sentir principalmente em tudo quanto se relaciona com o sexo, numa negação nem sempre declarada da perniciosidade do prazer e, no caso dos evangélicos, numa inferioridade da mulher declarada no livro sagrado, a Bíblia. A condenação da liberdade sexual, da masturbação, da homossexualidade e a valorização da virgindade são os traços mais marcantes que se procuram impor às crianças e jovens, causando em muitas delas problemas na idade adulta.

Isso em termos de indivíduos. Em termos de sociedade, surge a repressão para se impor a boa conduta, as leis reacionárias e o cerceamento da cultura com a perseguição de artistas, proibição de filmes, peças de teatro, quadros e esculturas. E a literatura só sobrevive na clandestinidade.

A nossa República se definiu como laica e, mesmo com as intervenções religiosas católicas, permitiu a criatividade artística. Hoje, as ameaças são enormes com o objetivo de se criar filmes, peças de teatro e livros religiosos e de se influir na redação dos livros didáticos para se opor à evolução das espécies, aos pensadores enciclopedistas e, talvez, até ao formato da Terra no sistema solar.

Diante das notícias de que mesmo pastores disputavam as eleições para conselheiros tutelares, o Partido dos Trabalhadores e forças progressistas convocaram uma mobilização para evitar a evangelização dos conselhos. Na cidade de São Paulo, conseguiram obter a metade dos conselheiros, mas ignoram-se ainda os outros resultados.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de LisboaCorreio do Brasil e RFI.

Redação

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