O velho art. 11 da DUDH versus o novo desrespeito à presunção de inocência no Brasil

O Judiciário não tem que ser ágil, tem que ser justo! Se puder ser, além de justo, ágil, melhor ainda. O que não se admite é colocar a agilidade na frente da Justiça

Foto: STF

do Prerrô

O velho art. 11 da DUDH versus o novo desrespeito à presunção de inocência no Brasil

por Dora Cavalcante e Paula Sion 

1. A Declaração Universal dos Direitos Humanos – contexto histórico

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi proclamada em 1º de dezembro de 1948, com o objetivo de ser seguida por todos os povos e nações, na defesa dos direitos humanos, protegendo o ser humano em todas as suas dimensões.

Sua elaboração ocorreu no pós-guerra, quando nazistas eram julgados no Tribunal Militar de Nuremberg, desvendando os detalhes de como os alemães exterminaram 6 milhões de judeus. O mundo tomava conhecimento da dimensão e dos horrores do holocausto.

Fabio Konder Comparato vincula a gênese dos direitos humanos a períodos de violência extrema, apontando que “a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da história, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas; as mutilações em massa, os massacres coletivos e as explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos” (COMPARATO, 2001, p. 36-37).

Foi neste cenário, por meio da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), que as grandes autoridades mundiais resolveram criar um documento enumerando direitos básicos para toda a humanidade. Durante a Assembleia de 1948, em Paris, 48 países assinaram o compromisso, dentre eles o Brasil. Atualmente, a ONU é composta por um total de 193 países-membros, todos signatários da declaração.

A DUDH é hoje o documento mais traduzido no mundo. Já alcança 500 idiomas e dialetos. Inspiradora de outros documentos internacionais, penetrou nas constituições de novos e velhos países por meio do instituto dos princípios e direitos fundamentais. Teve como uma de suas principais preocupações a positivação internacional dos direitos mínimos dos seres humanos, em complemento aos propósitos das Nações Unidas de proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais de todos, sem distinção de sexo, raça, língua ou religião. Trata-se do instrumento considerado o “marco normativo fundamental” do sistema protetivo das Nações Unidas, a partir do qual se fomentou a multiplicação dos tratados relativos a direitos humanos em escala global (MAZZUOLI, 2017, p. 60).

Ao tratar do momento histórico que deu ensejo à declaração, observa o professor Maurício Zanoide que “essa indispensável criação de paradigmas universais de direitos humanos e sua força vinculativa tinham uma função preventiva imanente, qual seja forçar os vários Estados-membros a aceitarem uma pauta mínima e indispensável de respeito aos direitos elementares do ser humano a fim de que, já ao nível interno de suas legislações, fossem neutralizados eventuais e futuros focos de autoritarismo e abusos contra o ser humano: germes indefectíveis de violências e guerras internas e internacionais” (ZANOIDE, 2010, grifo nosso).

As diretrizes constantes deste importante documento internacional surgem para evitar que as legislações internas desrespeitem indivíduos e perpetrem perseguições políticas, bem como violações a direitos essenciais aos cidadãos, como acontece em Estados autoritários. Da doutrina de Norberto Bobbio, extrai-se: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele estado, mas no mundo” (BOBBIO, 1992, p. 1).

A DUDH, composta por 30 artigos, protege a liberdade religiosa; a liberdade de expressão e o direito à propriedade. Condena práticas como tortura e escravidão e prestigia a presunção de inocência.

2. O art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Reza o art. 11, primeira parte, da DUDH que: “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a Lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (grifo nosso).

O princípio reverberou em outros importantes tratados internacionais como, por exemplo, no Pacto de São José da Costa Rica, firmado em 1969. Sua origem histórica, contudo, remonta ao período da Revolução Francesa, sendo assegurado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. Há, no entanto, quem atribua a Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, a primeira menção à presunção de inocência, em 1215.

Importante entender o alcance e o conceito da palavra “inocência”, em sua concepção, primeiramente, religiosa e, posteriormente, jurídica.

Inocência vem do latim innocentia e, em seu sentido vulgar, significa inteireza ou simplicidade de costume, candidez, virgindade, ausência de malícia, pureza ou ingenuidade. No campo religioso, seria a qualidade de quem nunca pecou e ignora o mal.

Entretanto, na laicização do racionalismo iluminista, rompeu-se com a concepção vulgar e católica do termo, inserindo-o no sentido filosófico de um estado ideal e hipotético a ser conferido ao cidadão. Não se podia tomar alguém como autor de um crime sem que antes houvesse a certeza de seu cometimento. O termo inocência, então, se distancia do seu conteúdo religioso ou vulgar para ser usado sob uma perspectiva racional. Importante notar que a expressão inocência está sempre ligada a um indivíduo e à visão de “um” sobre o “outro”.

Nos sistemas autoritários, o “outro” é sempre um criminoso potencial, enquanto nos regimes democráticos é ele um inocente até que se prove legalmente a sua culpa.

3. A presunção de inocência no Brasil

Em nosso país, com a promulgação do Código de Processo Penal (CPP) em 1941, durante um período de contexto autoritário, fixou-se um juízo de antecipação da culpabilidade. Isso implicava que apenas uma denúncia já era o suficiente para prender alguém. Para recorrer desta decisão, somente estando preso.

O cenário começou a mudar em 1973, ocasião em que foi decretada a prisão preventiva do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Líder do chamado “Esquadrão da Morte” em São Paulo, Fleury atuou como delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) durante a ditadura militar. Com o decreto de sua prisão, a lei processual foi alterada em regime de urgência, dando origem à Lei no 5.941/1973, conhecida como Lei Fleury. Esta lei abriu a possibilidade de um réu primário e de bons antecedentes aguardar o julgamento em liberdade.

Anos mais tarde, a Lei Fleury foi substituída pela Lei no 6.416/1977, que deu nova redação ao art. 310 do CPP, prevendo a fiança apenas para casos excepcionais.

No âmbito constitucional, apesar de as Cartas anteriores abraçarem o princípio da não culpabilidade, a Constituição Federal (CF) de 1988 foi a primeira a garantir expressamente a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, em seu art. 5o, inciso LVII: “Por ‘trânsito em julgado’ entende-se a passagem da sentença da condição de mutável à de imutável. […] é, pois, fato que marca o início de uma situação jurídica nova, caracterizada pela existência da coisa julgada” (MOREIRA, 1971, p. 145).

A garantia da presunção de inocência até o trânsito em julgado não é observada apenas no Brasil, mas também em outros países. A Constituição italiana de 1948, por exemplo, em seu art. 27, comma 2o, assegura que “o imputado não é considerado culpado até a condenação definitiva”. Na mesma perspectiva se assenta a Constituição portuguesa, de 1974, prevendo no art. 32.2 que “todo o arguido se presume inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

Em que pese a clareza solar do dispositivo constitucional brasileiro, desde a promulgação da nossa Carta Magna, em 1988, já tivemos três momentos distintos em nosso país.

Nos primeiros 20 anos, ou seja, até 2008, o Judiciário não se curvou ao mandamento e ainda se permitia a execução provisória da pena.

A partir de 2009, por ocasião do célebre julgamento do Habeas Corpus no 84.078, o Supremo Tribunal Federal (STF) fincou posição prestigiando a presunção de inocência e condicionando o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O placar apertado da decisão proferida pelo Pleno, relator o ministro Eros Grau, externava uma vez mais o caráter sensível, para não dizer tormentoso, da interpretação desse princípio basilar no seio de nossa mais alta Corte.

Entretanto, em 2016, durante o julgamento do HC no 126.292, em um dia de flagrante retrocesso, a Suprema Corte do país, cedendo ao coro da impunidade, resolveu suprimir a garantia e decidiu, novamente, pela possibilidade de execução provisória da pena. Foram sete votos contra a presunção de inocência, apenas quatro resistiram à tentação de ceder à Lava Jato.

Foi o que bastou para que milhares de pessoas passassem a ser presas quando ainda pendentes recursos que poderiam mudar o rumo de suas histórias.

Há quem sustente que a DUDH não garante a liberdade do processado até o julgamento do último recurso cabível. Sua leitura atenta, porém, nos remete inexoravelmente a esta conclusão, na medida em que seu art. 11 registra textualmente que a presunção de inocência somente cessa quando a pessoa é considerada culpada em um processo público em que “todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas” (grifo nosso).

Ora, é evidente que os recursos cabíveis fazem parte, todos eles, sem exceção, do nosso devido processo legal. Tem o acusado direito de ingressar com estas impugnações como forma de perseguir a mudança, em algum aspecto, do provimento que lhe foi dado, já que recurso se define como “meio voluntário de impugnação das decisões judiciais, utilizado antes do trânsito em julgado e no próprio processo em que foi proferida a decisão, visando a reforma, invalidação, esclarecimento ou integração da decisão judicial” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2001, p. 29, grifo nosso).

São os recursos, portanto, garantias “necessárias de defesa”. Distinguem-se das ações autônomas de impugnação que servem para se insurgir contra decisões, mas dão causa a um novo processo, com procedimentos e relação jurídica processual próprios.

Assim sendo, ao estabelecer que a culpa somente fica provada depois de se assegurarem todas as garantias, leia-se: “depois de todos os recursos”, ou quando transcorrer o prazo de algum deles e o réu não mais se insurgir, operando-se, então, o trânsito em julgado.

Não é demais lembrar que, em consonância com a DUDH, a nossa CF igualmente garante a ampla defesa com todos os meios e recursos a ela inerentes.

Assim, todo e qualquer recurso com força para mudar ou melhorar a situação do acusado, sob qualquer prisma – capitulação legal; culpabilidade; quantum da pena; punibilidade; regime de cumprimento, entre outros –, se insere dentro da garantia à ampla defesa.

4. O desrespeito ao estado de inocência pelo próprio guardião da Constituição

O art. 5o, inciso LVII, da CF é taxativo, e totalmente estreme de dúvidas, ao estatuir que “ninguém será considerado culpado, até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (grifo nosso). Vale invocar, aqui, mais do que nunca, o brocardo latino In claris cessat interpretatio (“Uma vez clara a norma, não há o que interpretar”).

Mais do que isso, tamanha a importância desta garantia ao acusado, que o art. 5o, inciso LVII, tem status de cláusula pétrea. Com efeito, o art. 60, § 4o, da CF enumera que não pode haver deliberação sobre emenda constitucional tendente a abolir (i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos poderes e, por fim, (iv) os direitos e garantias individuais (previstos pelo art. 5o da CF).

Como bem salientou o professor Geraldo Prado, em artigo publicado no website especializado Justificando,
“Não há espaço para analogias de signo restritivo na seara dos direitos fundamentais, ainda que se trate de processo penal, porque não se consente com o discurso de pânico da ‘impunidade’ e do medo e eles não funcionam como cláusula de exclusão/suspensão/exceção da normatividade constitucional” (PRADO).

O que mais choca na leitura dos votos que levaram à mudança de entendimento pelo STF durante o julgamento do Habeas Corpus no 126.292 é que os argumentos não são jurídicos, nem poderiam ser, diante da taxatividade do princípio constitucional. São argumentos ideológicos.

O entendimento que autoriza a execução antecipada da pena vem permeado de apego à chamada “incongruência social”, assim entendida como um vínculo negativo entre as decisões judiciais e as expectativas da população (não daqueles indivíduos que sentem na pele os dissabores de estarem sentados no banco dos réus, mas dos cidadãos em geral).

Não seria mais correto reformar o sistema recursal ou as regras de interrupção da prescrição, em vez de fazer tábula rasa de uma cláusula pétrea? Aliás, os últimos anos foram pródigos em alterações que limitaram o escoamento do lapso prescricional, fazendo desaparecer a chamada prescrição retroativa entre a data dos fatos e o recebimento da denúncia, por exemplo. Na mesma direção, tornou-se ainda mais difícil ver admitido um recurso especial ou um recurso extraordinário, aumentando-se gradativamente as exigências formais para o seguimento dos ditos apelos raros. Medidas como essas são duras e limitam a amplitude do exercício do direito de defesa, mas cumprem um papel sem ferir de morte garantia fundamental. O mesmo se diga da fixação de metas para os tribunais como forma de alcançar a prestação jurisdicional em tempo razoável, para acusado, vítima e também para a coletividade.

Mas nada disso tem importância no julgamento de 2016. As razões para rasgar a letra da lei são fundadas pura e simplesmente no clamor público, na necessidade de combater a impunidade.

Cita-se também, é verdade, a redução da seletividade do sistema penal e a funcionalidade do sistema de justiça. Com todo o respeito, o fio condutor desses argumentos é frágil, para dizer o mínimo, pois, ao invés de perseguir o respeito integral à Constituição e às normas de Direito Internacional por ela recepcionadas para todos os cidadãos brasileiros, sugere um nivelamento por baixo da régua das garantias como forma de aproximar os desiguais, em sentido diametralmente oposto ao que seria almejável. Menos direitos para todos.

De outra banda, a questão da impossibilidade de se revolver matéria fática nos chamados apelos raros – também invocada como subterfúgio para se defender a prisão após condenação em segundo grau – em absolutamente nada altera o direito do acusado de buscar reverter o julgado perante os tribunais superiores.

Rememorando o voto do ministro Teori Zavascki, favorável à execução provisória da pena, extrai-se o seguinte trecho, “ressalvada a estreita via da revisão criminal, é, portanto, no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado. É dizer: os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutilidade, já que não se prestam ao debate de matéria fático-probatória. Noutras palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. Os recursos ainda cabíveis para instâncias extraordinárias do STJ e do STF – recurso especial e extraordinário – têm, como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instâncias extraordinárias, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado” (grifo nosso).

Ora, parece que a ideia é alçar os recursos raros à categoria de vias recursais extraordinárias, extrínsecas ao processo penal, já que neles não se pode discutir a prova ou os fatos. Mas – em que pese a nomenclatura – os recursos especial e extraordinário fazem parte das vias ordinárias de impugnação e estão inseridos no devido processo legal.

Segundo a melhor doutrina, o que distingue as vias recursais ordinárias das extraordinárias é a existência da coisa julgada. Os recursos ordinários são aqueles utilizados antes da formação da coisa julgada, impedindo-a. Já os extraordinários são recursos utilizados para impugnar decisões já transitadas em julgado (TORNAGUI, 1991, p. 309).

Ademais, ao contrário do que se prega, não é só através do exame de fatos que se fixa a “responsabilidade penal do acusado” ou a sua não responsabilidade, mas também, e em muitos casos, através da apreciação de matérias de Direito.

Sobre os resultados que poderão advir do julgamento dos recursos para os tribunais superiores, no recurso especial e extraordinário, em regra os tribunais superiores realizam tanto o juízo rescindente (cessam ou revogam a decisão anterior) quanto o juízo rescisório (proferem nova decisão de mérito, substituindo a anterior). Já se a decisão recorrida caracteriza-se como error in procedendo, o tribunal deverá realizar apenas o juízo rescindente, anulando a decisão e determinando que se baixem os autos para que outra seja proferida, sob pena de suprimir um grau de jurisdição.

Badaró é, como sempre, didático: “Como não são cortes de cassação, cabe tanto ao STF quanto ao STJ aplicar o direito – constitucional e federal – respectivamente – ao fato, julgando o processo. Assim, admitido e provido o recurso, caberá ao STF e ao STJ exercer o juízo de revisão, com a reforma do acórdão do tribunal local. Por outro lado, o recurso especial e extraordinário poderá ser conhecido, mas improvido, hipótese em que não será aplicado o direito à espécie, na medida em que terá o tribunal local aplicado corretamente o direito federal ao caso concreto” (BADARÓ, p. 391, grifo nosso).

Na realidade, o que menos importa para a temática da presunção de inocência é a extensão da matéria a ser discutida no recurso, mas essencialmente o que desta impugnação pode advir como resultado. A pergunta é a seguinte: É justo submeter alguém ao cumprimento de uma pena ainda suscetível de mutabilidade, inclusive com possibilidade de aquela pessoa ser, ao final, absolvida, por uma questão de Direito?

Ao contrário do que afirmou o saudoso ministro Teori Zavascki, fosse o duplo grau de jurisdição suficiente para garantir a ampla defesa, não haveria possibilidade de recurso aos tribunais superiores.

Simplesmente não é razoável que se disponibilizem, por um lado, ferramentas para a defesa impugnar o julgamento de segundo grau, mas, ao mesmo tempo, se determine o cumprimento daquele provimento que ainda não é definitivo. Lembrando que casos há em que a decisão de primeiro grau é absolutória, sobrevindo condenação equivocada em segundo grau, cenário ainda mais complexo para a defesa.

Ao discorrer sobre o argumento da morosidade e do intrincado sistema recursal como justificativa para a inconstitucional “relativização” da presunção de inocência, o ministro Celso de Mello, com a lucidez que lhe é peculiar, pontificou em seu voto: “A solução dessa questão, que não guarda pertinência – insista-se – com a presunção constitucional de inocência, há de ser encontrada na reformulação do sistema processual e na busca de meios que, adotados pelo Poder Legislativo, confiram maior coeficiente de racionalidade ao modelo recursal, mas não, como pretende, na inaceitável desconsideração de um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos desta República fundada no conceito de liberdade e legitimada pelo Princípio democrático” (grifo nosso).(1)

O processo penal não pode mais ser visto como “um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é o caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite a sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)” (LOPES JR., 2010, grifo nosso).

É preciso, portanto, compreender que a observância estrita do princípio da presunção de inocência não significa, em hipótese alguma, uma afronta à segurança pública, nem aos direitos individuais.

A observância estrita do princípio da presunção de inocência não significa uma afronta à segurança pública.

O que se quer, apenas, é assegurar o estado de inocência, até que o Estado, por meio do devido processo legal, demonstre o contrário, através de um veredicto final, o que somente ocorre com o trânsito em julgado da decisão condenatória. A presunção de culpa, que acarreta a antecipação de pena, precisa ser expurgada do cenário processual penal brasileiro, pois “constitui um paradigma da ilegalidade e, por consequência, a antítese do Estado Democrático de Direito” (NUCCI).

Há uma grande confusão entre efetividade da jurisdição e a busca de celeridade por meio do atropelamento do devido processo legal. Não é preciso suprimir instâncias, mas sim criar mecanismos que assegurem uma justiça mais rápida e efetiva. Deve-se dar ao processo maior velocidade, mas sem que isto envolva retirar garantias.

O culto ao sagrado princípio do devido processo legal é o que garante o sistema democrático. A inconstitucional antecipação da pena, na contramão, é o preço alto que estamos pagando em troca do imediatismo do mundo atual.

O pior de tudo é que a execução provisória da pena, que fere de morte o disposto na DUDH e na nossa CF, ao contrário do que se alardeou, não servirá para desafogar o Judiciário.

Um estudo feito em 2016 mostrou que, dos 160 mil processos que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça naquele ano, menos de 30% foram distribuídos para a 3a Seção, que julga casos criminais. Dos 258 mil casos julgados na corte de janeiro a agosto, só 21% (56 mil) são da área penal (DE VASCONCELOS; RODAS).

O Judiciário não tem que ser ágil, tem que ser justo! Se puder ser, além de justo, ágil, melhor ainda. O que não se admite é colocar a agilidade na frente da Justiça. É aí que vem a Injustiça. Deveríamos estar discutindo o melhor aparelhamento do Judiciário para que o tempo até o julgamento final, pelas três instâncias, diminuísse, mas o que se está fazendo, por aqui, é cortar caminho, por uma via transversa e perigosa. Ou, ainda, como adjetivou com propriedade o ministro Celso de Mello: via esdrúxula.

Via, esta, infelizmente chancelada pela maioria da nossa Suprema Corte, mas que deverá ser revista em um futuro próximo. Afinal, lembrando as mais atuais do que nunca palavras do grande jurista Ruy Barbosa em sustentação oral histórica dirigida ao STF, “aqui não podem entrar as paixões que tumultuam a alma humana; porque este lugar é o refúgio da Justiça”.

(1) HC no 126.292, j. 17/2/2016, publ. 17/5/2016.


Bibliografia
BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
DE VASCONCELOS, Marcos; RODAS, Sérgio. Prisão antecipada não resolve processos que abarrotam o Judiciário. Conjur. Disponível em: www.conjur.com.br.
GRINOVER, Ada Pelegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no processo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Direito Processual Civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro: Borsoi, 1971.
NUCCI, Guilherme de Souza. Presunção de culpa, pena antecipada e paradigma da ilegalidade: as antíteses do Estado Democrático de Direito. Disponível em: www.guilhermenucci.com.br.
PRADO, Geraldo. Em ano inglório para a Constituição, STF dá enorme passo para trás na presunção de inocência. Justificando. Disponível em: www.justificando.com.
TORNAGUI, Helio. Curso de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
ZANOIDE, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Lumen Juris, 2010.

Artigo publicado originalmente na Revista do Advogado.

Redação

1 Comentário

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  1. Nassif: posso até tá enganado. Mas acho que o Judiciário tem razão. Desde quando Povo é “Humano”? Dizem que a “classe” não passa de mercadoria pro escambo entre políticos e instituições financeiras. Portanto, essa de “art. 11” do DUDH é coisa só pra acadêmico e Kummunista. O AI-10 (o dobro de eficiência) vem ai, pra corrigir esses desvios de finalidade. Um certo general já até aoutorizou DaBalinha a “estudar o caso”. Tanto tempo treinando no Haiti pra quê?

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