Uma ditadura de novo tipo, por Marcio Sotelo Felippe

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Marcio Sotelo Felippe

Na Revista Cult

O regime da Constituição de 1988 acabou. Vivemos uma ditadura dissimulada, de novo tipo, com a aparência espectral de formas jurídicas e políticas de um Estado de direito.

O fim desse regime não seguiu o padrão histórico. Nós nos habituamos a ver uma ruptura quando uma Constituição é revogada e surge outra, seja por padrões democráticos, como a convocação de uma constituinte, seja por atos de força, como a outorga de um texto constitucional. Assim, por exemplo, o Estado Novo em 1937, a 5º República francesa em 1958, a Constituinte de 1945, a Carta de 1967 e sua alteração em 1969 e a própria Constituição de 1988.

Mas esta foi uma ruptura contra a qual ainda não temos defesa porque fomos surpreendidos: o fim de um regime político com a preservação formal do texto constitucional desprovido de eficácia. A Constituição passou a ser aquilo que o núcleo de poder real diz que deve ser em cada momento, conforme sua conveniência política. Não existe. Um estado de anomia constitucional mascarado, em que a vigência inócua da Constituição tem o papel de conferir a aparência de legitimidade de um Estado de Direito clássico.

O que vimos, portanto, não foram violações pontuais da Constituição que podem ocorrer em Estados de Direito. Foi um processo sistemático em que se feria a letra clara e o espírito incontroverso da norma constitucional, revogando-a na prática, com um sentido e uma direção definidos.

A anomia constitucional pode ser facilmente identificável em dois momentos cruciais, sem prejuízo de outros menos impactantes. A deposição da presidenta constitucional por fundamento nenhum; a prisão do candidato indesejado por força de um processo judicial que beirou o surrealismo, por um juiz que confessadamente ignorava a Constituição alegando conveniências políticas, sob o olhar cúmplice ou omisso da corte constitucional. Quando a conduta do juiz (hoje significativamente alçado à condição de superministro) foi submetida a apuração disciplinar, a decisão que o absolveu invocou Carl Schmitt, teórico alemão nazista cuja obra, já antes da ascensão de Hitler, sustentava a legitimidade de medidas de exceção em situações excepcionais. Nada mais simbólico e expressivo para representar uma ruptura de regime.

A decisão do STF de manter Lula no cárcere foi tomada sob ameaça de intervenção militar (ainda que fosse altamente improvável, depois de tudo que o STF fez, a decisão de soltá-lo). O comandante do exército Villas Bôas já se sente à vontade para confessar que mandou recado naquele momento, no seu célebre tweet: “Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática (…) temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”.

O remate foi uma eleição presidencial marcada pela fraude das mensagens eleitorais, pela desinformação, por uma violência imaterial que atingiu em cheio a consciência da massa, deformando-a. Uma eleição ilegítima, um presidente ilegítimo, identificado com a parcela mais tenebrosa das Forças Armadas, aquela saudosa da repressão porque queria continuar operando nos porões, torturando e matando e que nunca se conformou com o regime de 1988.

A anomia constitucional permitiu afastar do processo político-eleitoral forças que eram obstáculos a um projeto político, social e econômico regressivos. Abriu caminho para uma ditadura do capital, sem o conteúdo incômodo da Constituição de 1988, que tem (tinha) as características de um Estado de bem-estar social ao modo dos regimes sociais-democratas europeus do pós-guerra:  direitos e garantias sociais, bens públicos – saúde, educação, habitação, previdência. Ainda que entre nós isto tudo não tivesse tido a eficácia desejada, eram normas explícitas na letra da Constituição ou implícitas em seu espírito e marcos para uma sociedade mais justa.

O objetivo é um processo de transferência de renda, de sobreacumulação de capital pela aniquilação de direitos sociais, de garantia de apropriação do orçamento público por meio da reforma da previdência e pelo congelamento dos investimentos sociais em benefício do rentismo.

Uma ditadura do capital, com a forma política do neoliberalismo, que preserva, apenas como espectros, as instituições políticas e jurídicas do clássico Estado de Direito, mas as esvazia de substância democrática e social.  Para isso é necessário também intensificar os aparatos repressivos do Estado, seja para controle da massa de despossuídos com o instrumento do punitivismo penal, seja, como se anuncia agora, para deter movimentos sociais criminalizando-os, ou pelo exílio e prisão de seus líderes.

A tensão entre capitalismo e democracia (em suas mais puras expressões, inconciliáveis) ganha um novo momento. O Estado não paira sobre a sociedade como um ente que resolve contradições. Ele é parte da contradição, da contradição fundamental que estrutura todas as relações sociais capitalistas.

É fácil ver a relação de causalidade entre Estado moderno burguês e relações capitalistas. Após o aparecimento destas surgem as formas estatais que as garantem. O direito que iguala formalmente sujeitos desiguais em uma relação contratual em que um, o despossuído, nada pode fazer a não ser submeter-se às condições do outro. Esse Estado não existe, pois, para resolver as contradições da sociedade civil, como quer certa tradição, particularmente após Hegel, como quer o senso comum jurídico. É parte necessária da estrutura de dominação

Mas ao longo dos dois últimos séculos, lutas sociais e a consciência democrática abriram espaço para o exercício da política, entendida como possibilidade de expressão e conquistas sociais da parcela oprimida da sociedade, para a proteção universal sob a forma de direitos e garantias fundamentais, para o exercício das liberdades públicas, da liberdade de opinião e de participação na esfera política da sociedade, para regras constitucionais que significam algum  limite do  exercício do poder, o que é, clássica e singelamente, o conceito que distingue o Estado de Direito constitucional e ditadura

Isto, não tendo operado uma transformação ontológica do Estado, significou a conciliação possível da dominação de classe capitalista com algo de bem-estar social, mesmo que sem prejuízo da miséria em que está ainda mergulhada grande parte da população mundial. Tais conquistas democráticas não são desprezíveis. A diferença entre ter algum conteúdo democrático sob o capitalismo (a chamada democracia burguesa) e uma ditadura é que nesta o mal social é imenso e profundo: mais pessoas morrem, tem a alma destruída, são torturadas, perdem o mínimo de garantias, perdem o espaço da política e perdem direitos. Fecha-se a possibilidade de conquistas e de aprofundamento das lutas sociais.

A ditadura do capitão está no quadro desta etapa do capitalismo, o momento em que desaparece a convivência possível entre modo de produção capitalista e formas democráticas que concediam algum bem-estar social. Uma ditadura de novo tipo do capital, dissimulada, sob a forma política do neoliberalismo: aparentemente se tem uma Constituição, mas ela é forma vazia. E se a Constituição não existe tudo é permitido. Com a indefectível presença dos militares que, se em 1964 exerciam diretamente o poder, hoje governam pelo Twitter.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

8 Comentários

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  1. Ótimo texto. Há mais de dois

    Ótimo texto. Há mais de dois anos que esse cenário vem se desenhando, um novo tipo de totalitarismo. A manutenção da constituição federal apenas no sentido formal é a grande mudança em relação ao golpe de 1964.  Na verdade, o Brasil tornou-se um laboratório do grande capital e nosso povo a cobaia.  Será preciso conservar e proteger um espaço de análise do que está ocorrendo no Brasil, tal como o presente post, que permita estabelecer modos de resistência,  de denúnica e de proposições para um novo tipo de sociedade.

  2. Uma coisa importante também

    Uma coisa importante também pode ser dita. Isso não está ocorrendo apenas no Brasil. 

    Acabei de falar com um colega inglês que participa do movimento de rebelião dos ecologistas que está travando o transito nas cidades da Inglaterra. Disse-me ele:

    “The cops have introduced a new tactic: charging us with the offence of “Public nuisance”. This offence is harder to prove but the punishment is more severe.”

    Como disse a ele, me parece evidente que a Inglaterra também está trocando o método de governo de Locke pelo de Hobbes. No liberalismo, as normas penais devem ser bem definidas e aplicadas com o devido rigor técnico, pois é isso que permite a expanção da liberdade de ação dos cidadãos e a limitação do poder do Estado de cometer abusos. No autoritarismo o que predomina é a desconfiança e o medo do governante. No sistema de governo de Hobbes as normas de direito penal passam a ser criadas e utilizadas com a finalidade política de restringir a liberdade dos cidadãos e ampliar o poder do Estado de reprimir de maneira seletiva aqueles que os juizes quiserem considerar inimigos do Estado, do governo ou de um governante.

    Eu também disse ao meu amigo inglês outra coisa. Quando o método de Locke é substituído pelo de Hobbes predominantemente através do Poder Judiciário (como está ocorrendo no Brasil) há bem pouco a se esperar dos juízes locais. As vítimas do regime devem necessariamente se adaptar à realidade e adotar uma estratégia jurídica agressiva, recorrendo às Cortes internacionais.

    Esta semana o presidente do STF disse que a farsa do Impeachment de Dilma Rousseff e a absurda e injusta condenação e prisão de Lula ocorreram “totalmente dentro da legalidade”. Dias Toffoli subiu pela esquerda, chutou a escada e se tornou um juiz opressor da direita. Esse fato confirma minha tese de que quando o método de governo de Hobbes já foi implantado pelos juizes locais é uma estupidez recorrer a eles. Eles são a causa e não a solução do problema. Em breve, os ingleses também serão obrigados a recorrer às Cortes de Direitos Humanos tanto da União Européia quanto da ONU. Caso contrário, eles começarão a lotar os presídios ingleses. 

    Meu amigo inglês concordou comigo. Disse ele:

    I agree these kinds of appeals may be necessary. Heavy custodial sentences are already being handed out to environmental protesters, though the last sentences of this kind were repealed after it was revealed the judge had a conflict of interest (his family have employment and investments in fracking and fossil fuels).

    O juiz inglês mencionado deveria ter se considerado impedido de julgar essas pessoas. A atuação dele é repugnante, revoltante mesmo. Ao julgar e condenar os réus sabendo que tinha interesse no caso o juiz destruiu qualquer limite entre uma “tirania pessoal” e o “governo das leis” e o “devido processo legal”. A conduta dele lembra muito a de Sérgio Moro no caso do Triplex. É digno de nota o surgimento de um padrão internacional de conduta judicial abusiva. Mas ao contrário do que ocorre no Brasil, na Inglaterra esse padrão ainda não contaminou as cortes de apelação.

    1. Surpreendente.
      O que esse

      Surpreendente.

      O que esse fenômeno global nos indica?

      Ainda falta muito para a besta do capital morrer… Estaria agonizando lentamente?

  3. Claro que é um texto

    Claro que é um texto explêndido, nessa fase em que a maioria das análises têm apoio nos resultados eleitorais como se estivéssemos num Estado Democrático de Direito. Estamos passando pela evolução de um golpe de estado. Alerto que o Capetão não passa de uma peça menor, eleito não tendo sido exatamente escolhido pelos golpistas, que desejavam um político experiente, ligado ao PSDB, no caso Geraldo Alckmin. Ao que parece, o PT não acreditava, ou pagou para ver, se o Presidente Lula seria preso, e mesmo assim ainda acreditou na possibilidade de eleger Fernando Haddad em seu lugar. Se acreditavam que o golpe aceitaria entregar o poder através do voto erraram feio, já que tudo estava preparado para um avanço mais à direita, caso a eleição não funcionasse (Bolsonaro mostrou claramente,quando atacou as urnas e Justiça Eleitoral),agora com o uso da força, quando criaram o Ministério da Segurança Pública, legalmente ligado ao Ministério da Defesa, para intervir em qualquer unidade da Federação. Bolsonaro é o segundo Presidente do golpe de estado de 2016, essa a realidade. Agora, desconheço algum caminho que ponha termo a um golpe de estado através somente de eleição.  

  4. Totalitarismo

    Enquanto pensamos em formas de retirar o Brasil e o mundo das mãos do capitalismo aliado aos governos autoritarios, parte da população acredita que elegeu um “mito”, que vai salvar o Brasil. A ruptura democratica aconteceu quando o STF condenou Genoino, Dirceu e outros pelo que eles não fizeram. Em seguida, foi facil retirar a presidenta eleita pelo truque das pedaladas, depois colocar Luiz Inacio na prisão e para não haver duvidas que o PT pudesse voltar, uma eleição apoiada na fraude. Não vai ser com slogans que vamos conseguir mudar o que temos ai. Se eles cairem, sera mais por eles mesmos do que por nossa luta dentro dos limites republicanos. 

  5. O que os idiotas no poder

    O que os idiotas no poder querem de verdade?

    Um “feudalismo capitalista” alimentado por uma ideologia fracassada?

    Em pleno século XXI, com a Internet?

    Sinceramente, acho que não dura muito e o tombo será grande.

     

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