Por uma política nacional de combate ao Lawfare
por André Luiz de Carvalho Matheus
“O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, é geralmente usado para minar processos políticos emergentes e tende a violar sistematicamente os direitos sociais. A fim de garantir a qualidade institucional dos Estados, é essencial detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam de uma atividade judicial imprópria combinada com operações multimidiáticas paralelas.” Papa Francisco
O termo “Lawfare”, foi cunhado por Neville e Yeomans, em 1975, afirmando que “Lawfare substitui a guerra e o duelo é por palavras, não por espadas”[1], no entanto, a palavra ganhou notoriedade após texto do então Coronel da Força Aérea dos Estados Unidos, Charles J. Dunlap Jr. A partir disso o termo ganhou a academia nos EUA e mundo.
Em nossa leitura, o uso sistemático das leis para objetivos específicos sempre foi empregado por nações. O tema não é novo, mas a diferença é a metodologia de análise a partir de uma palavra. Como o sociólogo que observa a sociedade para interpretar um fato social, os pesquisadores começaram a analisar o uso da lei nacional e, principalmente, da lei internacional para um objetivo específico.
Um estudioso da criminologia crítica vai dizer que o fenômeno lembra a seletividade penal, mas a questão não apreende a realidade do fenômeno. Lawfare surge a partir de análises da ciência política, relações internacionais, geopolítica e ciências militares.
Em exemplo clássico é quando um Estado organiza um aparato legal para interferir na soberania de outro, sem passar necessariamente pela divisão clássica de poderes de um estado democrático de direito. Assim, um país pode ser sancionado sem que esse ato tenha que ser analisado por um juiz local.
No direito interno, esse fenômeno consiste em apresentar acusações ilegítimas de corrupção, manipular as leis, e influenciar o campo jurídico de forma frívola, a fim de condenar as vítimas antes mesmo de um julgamento, e tortura-las com o ônus de múltiplos processos judiciais e destruição de caráter, mas sempre em relação direta com questões geopolíticas. O caso do Almirante Othon e sua relação com o programa nuclear brasileiro é um exemplo dessa estratégia[2].
O tema lawfare tem ganhado atenção de cada vez mais países. O estado de Israel possui equipe de especialista em lawfare no seu ministério da justiça e trocam experiência com países da Otan[3]. A guerra da Ucrânia e Rússia tem demonstrado o uso oficial do lawfare no conflito, o governo da Ucrânia lançou em 2022 um site especializado para tratar do assunto[4]. O uso de lawfare pela Ucrânia envolve cinco tipos de lawfare, nas palavras da professora da Jill. Goldenziel[5]: (1)Lawfare de campo de batalha, que consiste em explorar o cumprimento de leis internacionais de guerra por um adversário, com o uso de escudos humanos, uso militar de hospitais, por exemplo; (2) Lawfare instrumental, que corresponde ao uso da lei como instrumento militar sem violência, como a aplicação de sanções; (3) Lawfare por proxy, que envolve a apresentação de ação judicial contra um procurador do adversário, como no caso da empresa Huawei, como representante da China; (4) Lawfare institucional, quando da criação de leis ou instituições nacionais para atingir um objetivo; e (5) Lawfare informacional, Em que a linguagem própria da lei é manuseada para minar a legitimidade do adversário. A Guerra da Ucrânia e Rússia antecipa a forma como o uso das leis podem moldar os conflitos ao redor do mundo.
Tendo essa realidade em conta, em novembro de 2022 o governo da França publicou um documento sobre os desafios da defesa e segurança[6]. O lawfare foi identificado entre as ameaças aos interesses do país, usado por países concorrentes para obter vantagens em termos econômicos. A ameaça tinha sido detectada pela Direção de Inteligência e Segurança de Defesa (DRSD), em 2017. O Diretor do órgão, por meio do Boletim Econômico, de novembro de 2023 (La lettre d’information économique, LIE 14) compartilhou informações e medidas tomadas no âmbito do governo francês para enfrentar o lawfare.
O lawfare é tratado como ameaça à soberania do país, e o esforço para resolvê-lo envolve todos os ministérios, órgãos do Estado e até empresas e operadores do direito. O documento cita três modalidades do uso do lawfare, que ameaçam os Estados: (a) lawfare normativo, quando um Estado aplica de forma unilateral sua lei fora do seu território, sendo um poderoso instrumento de interferência na soberania de países; (b) lawfare litígio, é a instrumentalização externa da jurisdição local para introduzir ações judiciais, sendo raro o êxito, mas servindo ao objetivo de intimidar e desacreditar; e (c) lawfare de influência, em que se busca influenciar a interpretação de norma internacional ou desenvolvimento de normas em áreas pouco regulamentadas.
Para a DRSD, empresas tornam-se vulneráveis pelo uso extraterritorial da lei de países estrangeiros. O documento cita como exemplo o uso que certos Estados podem fazer do direito como instrumento de coerção econômica para forçar empresas concorrentes de outros países a adotar certos comportamentos. O direito é usado como ferramenta de política externa para restringir atividade econômica de um país adversário, por exemplo, a adoção de sanções econômicas e a proibição da exportação de mercadorias econômicas. O documento elenca três países em que o uso de equipamentos militares ou de produtos de uso não militar pode acarretar sanções: Estados Unidos, China e Alemanha.
Na história recente o termo “adversário” não abarca somente a seara militar, mas também a relação econômica. A França possui dois casos recentes de lawfare, o caso Alstom, em que acusações infundadas de corrupção contra executivos da empresa fizeram a França perder o controle de boa parte de suas centrais nucleares para os Estados Unidos[7], e o veto da venda de submarinos para a Australia[8].
Ainda o documento francês propõe medidas para identificar e lidar com o lawfare: 1) melhorar o conhecimento para detectar o lawfare sensibilizando empresas e profissionais do direito para monitorar leis e regulamentos em andamento; 2) reduzir as vulnerabilidades jurídicas que podem ser exploradas controlando a influência estrangeira exercidas nas leis locais (França), eliminando leis, se for o caso; e 3) se equipar com ferramentas de respostas adequadas para conter efeitos negativos infligidos pelas normas internacionais.
No Brasil os estudos sobre lawfare são recentes e abarcam um círculo acadêmico restrito. A PUC-Rio, através da iniciativa da professora Gisele Cittadino, criou uma disciplina eletiva e um grupo de pesquisa. Quando se pensa em políticas públicas sobre o assunto, as inciativas são inexistentes.
O uso do lawfare tem por objetivo solapar a soberania, expropriar riquezas, aniquilar direitos e enfraquecer uma nação a fim de submetê-la a interesses externos.
Uma política nacional para detectar o lawfare no País, a fim de formular leis e políticas públicas destinadas a neutralizá-lo deve perguntar e responder: quais os impactos desta guerra jurídica na economia? Na soberania nacional? Na democracia?
Dessa forma, é necessário o Estado brasileiro criar uma política nacional sobre lawfarecom as atribuições de elaborar diagnóstico do problema, sugerir alterações legislativas e políticas públicas que envolvam a defesa nacional, inteligência estratégica, ministérios, empresas públicas e privadas e congresso nacional.
Por outro lado, a educação pública e a conscientização sobre os impactos do lawfare são igualmente importantes. Isso pode ser alcançado através da divulgação de informações sobre táticas comuns de lawfare, suas consequências sociais e políticas, e estratégias para indivíduos e organizações poderem identificar e resistir a esses abusos. Ao promover essas medidas, uma política pública sobre lawfare pode ajudar a garantir que o estado de direito seja preservado como uma proteção efetiva contra a manipulação política e a intimidação internas e externas.
André Luiz de Carvalho Matheus, vice-presidente da Comissão Especial de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB/RJ, doutorando em direito (PUC-RIO), mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), advogado com atuação em liberdade de expressão, litígio estratégico e direito penal.
[1] CAMPOS, Eduardo Nunes. Diálogo com o conceito de lawfare. In: FEITOSA, Maria Luiza Alencar Mayer; CITTADINO, Gisele; LIZIERO, Leonan (orgs.). Lawfare: o calvário da democracia brasileira. Andradina: Meraki, 2020. p. 38
[2] Artigo do Conjur com detalhes: < https://www.conjur.com.br/2024-ago-05/janot-e-lava-jato-teriam-atuado-contra-brasil-em-disputa-sobre-programa-nuclear/>. Acesso em 14.08.2024
[3] A reportagem pode ser acessada nesse link: < https://perma.cc/8LQF-PXP4 >. Acesso em: 14.08.2024.
[4] O site na época se chama “projeto lawfare”, < https://perma.cc/75Q3-JKLE >. Acesso em: 14.08.2024.
[5] GOLDENZIEL, Jill. An alternative to zombieing: Lawfare between Russia and Ukraine and the future of international law. Cornell Law Review: < https://www.cornelllawreview.org/2023/01/23/an-alternative-to-zombieing-lawfare-between-russian-and-ukraine-and-the-future-of-international-law/> Acesso em: 14.08/2024.
[6] O documento completo pode ser acessado em: < https://www.drsd.defense.gouv.fr/sites/default/files/inline-files/lie/Lettre-d-information-economique-14.pdf >. Acesso em 14.08.2024.
[7] O caso pode ser conhecido em: < https://kotter.com.br/loja/mais-vendidos/arapuca-estadunidense-frederic-pierucci-e-matthieu-aron-trad-vivianne-de-castilho-moreira/> Acesso em: 14.08.2024.
[8] Detalhes em: < https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/por-que-franca-esta-zangada-com-acordos-de-submarinos-nucleares-da-australia-negociados-com-eua-e-reino-unido/> Acesso em: 14.08.2024
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