Quando a “liberdade econômica” promove a morte, por Erick Kayser

Prefeitura ampliou o autolicenciamento, dispensando fiscalização em diversas áreas, que passou a ser apenas a “boa-fé do empreendedor”

Incêndio na Avenida Farrapos causou a morte de 10 pessoas. Fotos: Corpo de Bombeiros/Arquivo Pessoal

Quando a “liberdade econômica” promove a morte: o caso do incêndio na pousada Garoa em Porto Alegre.

por Erick Kayser

Na madrugada de sexta-feira do dia 26 de abril, um incêndio matou dez pessoas e deixou outras 15 feridas na pousada Garoa, no centro de Porto Alegre. O local hospedava pessoas em situação de vulnerabilidade e mantinha parceria com a prefeitura para compra de vagas. O tamanho da tragédia pode ser mensurado pelo fato de este incêndio ser aquele com o maior número de mortes na capital gaúcha desde 1976. O horror de uma dezena de pessoas morrerem com seus corpos carbonizados exige a compreensão de como isso pôde ocorrer.

Conveniada com a Prefeitura desde 2020, a pousada estava amparada em recentes mudanças nas legislações, tendo seu contrato renovado sucessivamente, mesmo com flagrantes problemas em seu funcionamento. Em nome da “liberdade econômica”, essas mudanças eliminaram dispositivos de fiscalização, permitindo (ou mesmo estimulando) que a busca por lucros prevalecesse em detrimento de cuidados elementares com a segurança de estabelecimentos. É nesse contexto permissivo que devemos entender a tragédia ocorrida na capital.

Sem precisar de alvará de funcionamento – bastando enquadrar-se como atividade de baixo risco –, a “lei da liberdade econômica”, propagandeada por seus autores como a solução para atrair investidores e combater a burocracia, permite que o “empreendedor”, por exemplo, abra uma pousada sem que se faça qualquer fiscalização. A origem desta desregulação radical foi durante o governo Jair Bolsonaro, quando o ex-ministro Paulo Guedes elaborou um projeto de lei, aprovado pelo Congresso em 2019, de flexibilização de controles públicos em diversas áreas econômicas. Uma das questões foi acabar com a exigência de alvará para o funcionamento de pensões.

Porto Alegre ganhou sua versão da lei, aprofundando muitos dos desatinos da versão federal. Os autores da lei municipal foram Ricardo Gomes (PL-RS) – atualmente vice-prefeito –, Felipe Camozzato (Novo) e Pablo Mendes Ribeiro (MDB). A lei local acabou sendo regulamentada por um decreto do prefeito Sebastião Melo (MDB), assinado em abril de 2021. Os autores defendiam, em seus discursos eivados de uma perspectiva ultraliberal, que quanto menos fiscalização do poder público e da sociedade, melhor seria para os negócios e para a prosperidade de todos. Inserido dentro de um projeto ideológico que concebe a sociedade ideal como uma espécie de “anarquia capitalista”, ao Estado caberia apenas as tarefas de segurança pública e algumas outras poucas áreas. Assim, a prefeitura passaria a ser apenas um mero entreposto garantidor das atividades comerciais.

Foi sob esta lógica que a prefeitura ampliou o autolicenciamento, dispensando qualquer tipo de fiscalização em diversas áreas e atividades econômicas. A garantia passou a ser apenas a “boa-fé do empreendedor”. A prefeitura só fiscaliza, assim, a partir de denúncias de alguma irregularidade. Mas, mesmo havendo denúncias, a ação do poder público municipal é inercial, já que seu projeto político acredita que a “mão invisível do mercado”, de alguma forma, tudo resolverá.

No caso da tragédia na pousada Garoa, a prefeitura não poderá se desresponsabilizar alegando surpresa com o ocorrido. Não faltaram denúncias sobre a situação do local. Já em 2022, o jornal Boca de Rua – publicação que existe desde 2000 feito por pessoas em situação de rua – denunciava as condições precárias da pousada. Mesmo com as denúncias sobre as condições insalubres e irregulares, o proprietário do local da tragédia permaneceu à frente de uma rede de pousadas com a qual a prefeitura possui contrato de R$ 2,7 milhões até o fim do ano para alocar pessoas em situação de rua.

O incêndio na pousada Garoa e as vidas ali perdidas é exemplar de como a “liberdade econômica” promove a morte, no caso de pessoas em situação de precariedade social, a qual o poder público deveria ser responsável. Elevada a uma condição dogmática de um fim em si mesma, essa “liberdade” permitiu que um empresário ganancioso habilitasse sua pousada sem nenhum plano de prevenção e combate a incêndio – portanto, sem qualquer fiscalização –, firmando lucrativos contratos com a prefeitura. Este caso nos ensina que, mascarada pelo discurso da “liberdade econômica”, uma sinistra visão de mundo onde o capital é mais importante que a vida ganhou respaldo público e institucional na capital gaúcha.

Erick Kayser é historiador

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