A sedimentação da teoria evolutiva, entre rusgas, escaramuças e mal-entendidos, por Felipe A. P. L. Costa

Foram necessários quase 100 anos até que a teoria evolutiva se convertesse em espinha dorsal da biologia. O processo de sedimentação e integração, transcorrido entre 1918 e 1950, é comumente chamado de síntese evolutiva.

A sedimentação da teoria evolutiva, entre rusgas, escaramuças e mal-entendidos

Por Felipe A. P. L. Costa

Como um corpo de conhecimento individualizado e independente, a biologia tem uns 200 anos. Quando Lamarck nasceu, por exemplo, a palavra sequer existia [1]. Trata-se efetivamente de uma ciência jovem, embora algumas de suas premissas tenham sido elaboradas ainda na Antiguidade.

Curiosamente, a palavra biologia não é citada uma única vez no famoso livro de Darwin, Sobre a origem das espécies (1859). A despeito disso, não é nenhum exagero dizer que a obra é um dos pilares da disciplina.

Foram necessários quase 100 anos até que a teoria evolutiva se convertesse em espinha dorsal da biologia. O processo de sedimentação e integração, transcorrido entre 1918 e 1950, é comumente chamado de síntese evolutiva (= nova síntese ou síntese moderna).

Foi só depois disso que filósofos e historiadores da ciência passaram a se debruçar sobre a biologia mais seriamente, a exemplo do que já faziam com a física. Há quem estabeleça um paralelo entre Darwin e Isaac Newton (1643-1727), argumentando que a obra do primeiro representou para a biologia mais ou menos o que a do último representou para a física, quase dois séculos antes.

Duas gerações

Duas gerações de cientistas estiveram envolvidas com a síntese evolutiva. (O termo geração é usado aqui no sentido de afiliação intelectual, não tanto no sentido etário.)

A primeira geração foi responsável por incorporar o mendelismo ao darwinismo, usando para isso as ferramentas desenvolvidas pela então incipiente genética de populações. O desfecho desse processo foi marcado pela publicação de duas obras, a 1ª edição de A teoria genética da seleção natural (1930), talvez o livro mais influente do naturalista e estatístico inglês Ronald A. [Aylmer] Fisher (1890-1962), e As causas da evolução (1932), do naturalista e polímata britânico J. [John] B. [Burdon] S. [Sunderson] Haldane (1892-1964).

A segunda geração foi responsável por conectar os processos da microevolução (mutação, deriva e seleção, previamente incorporados aos modelos matemáticos da genética de populações, mas até então sem uma base factual consistente) aos padrões da macroevolução (definidos e caracterizados com base em dados de morfologia e biogeografia). A partir daí, os padrões macroevolutivos (e.g., especiação e irradiação adaptativa), em geral envolvendo mudanças fenotípicas expressivas (na forma, função ou comportamento), passaram a ser vistos como extrapolações de fatores microevolutivos a operar no fundo gênico de populações locais.

Em retrospecto, não é difícil perceber que os fundamentos teóricos foram assentados pela primeira geração. O trabalho da segunda foi em boa medida complementar, obtendo, reunindo e organizando evidências factuais a respeito de ideias e modelos que haviam sido formulados pelos antecessores.

Empreendimento literário?

A primeira geração incluía Ronald A. Fisher, J. B. S. Haldane e o biólogo estadunidense Sewall Wright (1889-1988), além de nomes menos conhecidos, como os matemáticos Vladimir A. Kostitzin (1883-1963), russo, e Gustave Maléecot (1911-1998), francês.

A segunda, a respeito da qual falaremos um pouco a partir de agora, era formada por um grupo mais numeroso, com destaque para seis autores (biólogos, todos eles): o inglês Julian S. [Sorell] Huxley (1887-1975), o alemão Bernhard Rensch (1900-1990), o estadunidense George G. [Gaylord] Simpson (1902-1984) e os já citados Theodosius Dobzhansky (1900-1975), Ernst Mayr (1904-2005) e G. Ledyard Stebbins (1906-2000).

Entre 1937 e 1950, os seis publicaram seis livros que são tidos como fundamentais na caracterização da síntese evolutiva. São eles (em port.): Genética e a origem das espécies (1937), de Dobzhansky; Evolução: A síntese moderna (1942), de Huxley; Sistemática e a origem das espécies (1942), de Mayr; Tempo e modo em evolução (1944), de Simpson; Evolução acima do nível de espécie (1947), de Rensch; e Variação e evolução em plantas (1950), de Stebbins.

Quatro desses livros – os de Dobzhansky, Mayr, Simpson e Stebbins – foram publicados como volumes da Columbia Biological Series, uma coleção da Editora da Universidade Columbia (cup, na sigla em inglês). Os autores haviam participado das Morris K. Jesup Lectures, um ciclo de palestras promovido pela universidade. E as obras foram encomendadas. O livro de Mayr, por exemplo, foi encomendado em 1941 e o de Stebbins, em 1945, depois que o convidado anterior falhou, não entregando nenhum manuscrito [2].

Só não foram inicialmente publicados pela cup os dois livros de autores residentes na Europa (Huxley e Rensch). Em 1959, porém, versão em inglês do livro de Rensch (o original foi escrito em alemão) apareceu como o volume 19 da coleção.

Neste ponto, a pergunta parece inevitável: e se a cup não publicasse essas obras, será que a síntese evolutiva teria tomado o rumo que tomou? A questão é das mais intrigantes, mas não temos como examiná-la aqui. Antes de prosseguir, no entanto, cabem dois comentários a respeito de dois dos livros mencionados acima.

Genética e a origem das espécies. O livro de Dobzhansky logo se tornou uma referência-chave. Além de ter sido o primeiro a sair, a obra era bastante inovadora, tanto em termos conceituais como na abordagem. As inovações tinham a ver com o fato de o autor ter reunido evidências experimentais a respeito de conceitos e modelos que haviam sido desenvolvidos pelos integrantes da primeira geração, especialmente Sewall Wright. E mais: talvez tenha sido a primeira obra a mostrar que, além de trabalhos teóricos e pesquisas de laboratório, o desenvolvimento da genética de populações dependeria da realização de trabalhos de campo.

Evolução: A síntese moderna. O livro de Huxley fixou e popularizou o rótulo síntese evolutiva. A partir de então, vários autores (dentro e fora da academia) passaram a usar o mesmo rótulo – ou variantes dele (e.g., nova síntese e síntese moderna) – para se referir àquele momento histórico.

Sobre o uso da palavra síntese, no entanto, cabe aqui uma advertência: os nove autores citados acima (três da 1ª geração e seis da 2ª) nunca formaram uma equipe ou sequer trabalharam juntos, ao contrário do que o termo síntese possa dar a entender. E não foi por falta de oportunidade. Simpson e Mayr, por exemplo, trabalharam em uma mesma instituição (amnh e Universidade de Harvard) durante quase três décadas, mas um jamais se envolveu ou interferiu na pesquisa do outro.

Fogueira das vaidades

Rusgas e escaramuças eram relativamente comuns, como é regra na arena científica. Todavia, à medida que a síntese se impôs, as animosidades se acentuaram. Em algum momento, todos os principais integrantes se queixaram de que as suas ideias estavam sendo deixadas de lado. Ainda assim, prevaleceram os modos de convivência civilizada. Fisher e Wright, por exemplo, defendiam opiniões distintas sobre vários assuntos, e assim permaneceram até a morte do primeiro. O clima entre os dois, porém, nunca foi de mal-estar.

O mesmo nem sempre ocorria quando Mayr estava envolvido.

Com exceção talvez de Dobzhansky, em relação a quem mantinha uma atitude respeitosa [3], Mayr costumava combater opiniões com as quais não simpatizava, valendo-se para isso muitas vezes da posição que ocupava na burocracia acadêmica. E o seu envolvimento nesses imbróglios nem sempre era proporcional ao grau de discernimento que tinha a respeito do assunto.

Sua animosidade era pública e notória.

Exemplo famoso ocorreu em 1959. Desgostoso com a crescente importância atribuída à genética de populações, e incomodado com a profusão de modelos matemáticos (respeito dos quais manifestava ter pouco ou nenhum interesse ou conhecimento), Mayr se voltou contra o trabalho de alguns pioneiros, notadamente Fisher, Haldane e Wright. Em um artigo amplamente lido e divulgado, Mayr (1959, p. 2; tradução livre) escreveu:

A mudança evolutiva foi apresentada [pela genética de populações] essencialmente como uma entrada ou saída de genes, como o acréscimo de alguns feijões em um saco de feijões e a retirada de outros. […]

A mim me parece que a importância principal da teoria matemática foi que ela deu rigor matemático a afirmações qualitativas feitas muito anteriormente. […] Contudo, eu talvez devesse deixar que os próprios Fisher, Wright e Haldane mostrassem o que eles julgam que sejam as maiores contribuições deles.

Passou a se referir ao trabalho dos três como um exemplo de genética do saco de feijões (beanbag genetics).

Não foi a primeira nem seria a última vez que uma opinião enviesada sua daria origem a uma acalorada discussão [4].

O calcanhar de aquiles de Darwin?

Diferentemente de outros integrantes de sua geração, o papel de Mayr não foi bem o de um inovador, como ele próprio parecia estar ciente.

Escritor prolífico e longevo, Mayr talvez fosse mais bem descrito como um articulador, tanto em termos acadêmicos (e.g., reunindo e divulgando informações dispersas na literatura) como políticos (e.g., assumindo cargos de chefia e participando de comitês de avaliação). No âmbito da teoria sintética, sempre deu muita ênfase ao seu próprio feudo: o conceito de espécie e o processo de especiação.

Segundo Mayr, embora a expressão origem das espécies tenha sido usada por Darwin no título do seu livro mais importante [5], o britânico não teria oferecido nenhum modelo de especiação. Julgava assim ter descoberto o calcanhar de aquiles de Darwin. Tanto insistiu que a sua opinião terminou sendo acolhida por muita gente, incluindo autores de livros didáticos.

Um exame mais ponderado, no entanto, revela que o problema da espécie é, a rigor, um falso problema. Darwin adotou uma solução, ainda que esta, evidentemente, não tenha sido a solução defendida por Mayr!

Em primeiro lugar, devemos observar que o naturalista britânico – tendo se debruçado sobre as cracas (viventes e fósseis) durante oito anos (1846-1854) – tratava o conceito com ceticismo.

Nas palavras de Darwin (1859, p. 44-5; tradução livre):

Nem vou discutir aqui as diferentes definições que têm sido dadas ao termo ‘espécie’. Ainda não há uma definição que satisfaça a todos os naturalistas; todavia, todo naturalista sabe vagamente o que quer dizer quando fala em espécie. […] O termo ‘variedade’ é quase igualmente difícil de definir; mas aqui quase sempre está implícita a comunidade de descendentes, embora isso raramente possa ser demonstrado. Temos também o que são chamadas de monstruosidades; embora elas gradualmente se transformem em variedades. […]

[p. 45] Devemos nos lembrar que os sistematas não ficam exatamente felizes quando encontram variabilidade em caracteres importantes, e que não existem muitos seres humanos a examinar laboriosamente os órgãos internos importantes, comparando-os em vários espécimes de uma mesma espécie.

A distinção que se faz entre espécies ou variedades afins é arbitrária. Por conveniência prática, Darwin acolhia os táxons específicos (Geospiza fortis, G. fuliginosa etc.) que os especialistas reconheciam como espécies distintas, mas duvidava da existência da categoria espécie. O mesmo se aplicaria ao conceito de variedade.

O fundamento biológico da posição de Darwin não é difícil de entender: espécies afins – assim como qualquer outra categoria infraespecífica formada pela reunião de agrupamentos acima da população local – estão a divergir. São como galáxias em fuga.

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Notas

Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019), assim como os seis anteriores – ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] A palavra biologia apareceu pela primeira vez em uma publicação médica alemã, em 1800. Em 1802, ela apareceu de novo em obras de dois naturalistas, uma do francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829) e outra do alemão Gottfried Reinhold Treviranus (1776-1837).

[2] A série continuou depois disso. Banqueiro e filantropo estadunidense, Morris K. [Ketchum] Jesup (1830-1908) foi um dos fundadores do Museu Americano de História Natural (amnh, ny), e seu diretor entre 1881 e 1908.

[3] No livro Populações, espécies e evolução (Nacional & Edusp, 1977 [1970]), de Mayr, encontramos a seguinte dedicatória: “Ao meu amigo Theodosius Dobzhansky, principal arquiteto da genética evolutiva atual.” Entre 1943 e 1966, Dobzhansky esteve várias vezes no Brasil; o saldo dessas visitas, ao contrário do que costuma ser alardeado, parece ter sido negativo.

[4] Haldane respondeu; Wright ficou chateado e o relacionamento dele com Mayr, até então amigável, azedou; a expressão genética do saco de feijões continuou sendo usada. Em 1984, voltando de uma viagem à Itália, Wright – que não costumava falar mal de ninguém, ao contrário de Fisher – confidenciou a James F. [Franklin] Crow (1916-2012) que o valor do prêmio que acabara de receber diminuíra muito depois que ele soube que Mayr havia sido agraciado no ano anterior.

[5] O título das cinco primeiras edições é Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural, ou A preservação das raças favorecidas na luta pela vida – observando que a palavra raça foi usada aí no sentido de variedade, como na frase “Diversas raças de batata são cultivadas nos Andes”. (Foi uma sugestão do editor; o título originalmente dado pelo autor era Resumo de um ensaio sobre a origem das espécies e variedades por meio da seleção natural.) Na 6ª edição, o On (Sobre) inicial foi abolido, de sorte que o título mudou de Sobre a origem das espécies para A origem das espécies. (Alguns autores, tentando talvez contornar esta diferença, rotulam o livro de Origem das espécies.)

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