A terceira via: Algumas notas sobre o método científico, por Felipe A. P. L. Costa

Podemos definir método como um procedimento (regular, explícito e passível de repetição) para se obter algo (material ou conceitual)

A terceira via: Algumas notas sobre o método científico.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

RESUMO. – Para conhecer a natureza, nós devemos consultar a natureza, não os escritos de Aristóteles ou a Bíblia. Confiar na primazia das observações pode ser enganoso. Assim como pode ser enganoso atribuir primazia a ideias desenfreadas. Há uma terceira via. É o chamado método hipotético-dedutivo. Trata-se de um modo de resolver problemas em duas etapas: (1) a formulação livre de palpites explicativos a respeito do mundo, e (2) a condução de experimentos controlados visando confrontar e escolher entre os diversos palpites disponíveis.

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Podemos definir método como um procedimento (regular, explícito e passível de repetição) para se obter algo (material ou conceitual) [1]. A noção de método é anterior aos gregos, ainda que a generalização em torno do seu uso seja um avanço bem mais recente na história do conhecimento.

A crença de que um mesmo método pode ser usado para resolver problemas diferentes e obter avanços só se consolidou no século 17, com os escritos de filósofos como Francis Bacon (1561-1626), inglês, e René Descartes (1596-1650), francês.

1. A PRIMAZIA DO MUNDO EXTERIOR.

Para conhecer a natureza, dizia Bacon, nós devemos consultar a natureza, não os escritos de Aristóteles ou a Bíblia. De acordo com ele, o método científico seria tão somente um conjunto de regras (simples e acessíveis) para se usar na observação de fenômenos naturais. Se aplicadas corretamente, as regras permitiriam a qualquer um – e não apenas aos cientistas – extrair conclusões de suas observações empíricas. O método científico deveria ser indutivo – i.e., certas regras podem ser aplicadas às observações empíricas, de modo a se obter generalizações.

Duas premissas sustentam o raciocínio indutivo. Em primeiro lugar, a ideia de que a ciência deve começar a partir de observações puras (i.e., desprovidas de algum viés conceitual). Em segundo lugar, a ideia de que tais observações produzem uma base segura e objetiva a partir da qual se poderá erguer o edifício do conhecimento. Em razão da primazia dada às observações empíricas, a filosofia de Bacon passou a ser rotulada de empirismo.

A crença de que há um método por meio do qual todo e qualquer observador atento e imparcial seria capaz de converter dados brutos (i.e., observações empíricas) em conclusões relevantes a respeito do mundo é suficientemente atraente e poderosa, a ponto de ter ainda hoje os seus adeptos e defensores.

Exemplo. Imagine que um sem número de objetos do tipo A tenha sido observado sob uma ampla variedade de circunstâncias. Imagine ainda que, em todas as circunstâncias, todos os objetos exibiam a propriedade X. Por indução, estaríamos autorizados a concluir que X é uma propriedade universal de A.

Muito daquilo que o senso comum rotula de ciência ou de método científico costuma estar calcado no raciocínio indutivo.

2. A PRIMAZIA DO PENSAMENTO.

Para Descartes, no entanto, o conhecimento avança por meio da análise e da dedução. Para ele, o objetivo último da ciência é descobrir os princípios gerais que regem o mundo – i.e., um conjunto de princípios universais e irredutíveis, a partir do quais nós seríamos capazes de deduzir afirmativas particulares a respeito de determinados objetos ou fenômenos. A veracidade das afirmativas poderia ser verificada por meio de observações empíricas ou de algum teste.

De acordo com Descartes, o método científico não deve ser indutivo, mas sim dedutivo: com base em alguns princípios gerais previamente estabelecidos, nós podemos deduzir afirmações a respeito de casos particulares. Um exemplo: Seja X uma propriedade universal de objetos do tipo A. Se a é um exemplo particular de objeto do tipo A, então a possui a propriedade X.

Em razão da primazia dada à formulação de ideias e à busca de princípios universais, essa escola passou a ser rotulada de racionalismo [2].

3. SUPERANDO A DICOTOMIA.

A partir de meados do século 17, tornou-se hábito classificar filósofos e naturalistas em duas categorias: empiristas ou racionalistas.

Entre os empiristas daquela época, além de Bacon, caberia lembrar os nomes de Thomas Hobbes (1586-1679), John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753), David Hume (1711-1776) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). O filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873) foi outro defensor dessa corrente de pensamento.

Entre os racionalistas, além de Descartes, podemos mencionar Baruch Spinoza (1632-1677) e Gottfried Leibniz (1646-1716).

Embora os defensores das duas escolas adotassem perspectivas conflitantes a respeito de como a ciência avança, todos eles reconheciam a importância do comportamento metódico. A diferença fundamental era que uns sobrevalorizavam o papel das observações, enquanto outros sobrevalorizavam os pensamentos especulativos.

Foi Galileu quem superou essa dicotomia [3].

Na opinião dele, sem a confrontação com o mundo real, a especulação teórica é uma trilha que não leva a lugar algum. Por sua vez, sem uma moldura teórica, a montanha de resultados reunidos pelos cientistas seria algo meramente arbitrário e incompreensível.

Superar esse impasse exigiria (1) doses equilibradas de ideias e observações; e (2) uma adequada interação entre teoria e prática. Neste contexto, o empreendimento científico pode ser resumido em um processo em duas etapas: (1) a formulação livre de hipóteses (i.e., palpites explicativos a respeito de fenômenos naturais); e (2) a condução de experimentos controlados, por meio dos quais o observador pode confrontar as hipóteses disponíveis, selecionando uma delas como a melhor explicação (ainda que temporária).

Este modo de promover uma interação produtiva entre teoria e prática – referido muitas vezes como método hipotético-dedutivo – constitui o chamado método científico. Trata-se, em grande medida, dos frutos que estamos a colher da árvore que foi plantada por Galileu. Não é à toa, portanto, que a obra dele – ainda hoje a influenciar as novas gerações – seja vista como um divisor de águas na história da ciência.

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NOTAS.

[*] O presente artigo, assim como oito artigos anteriores (ver Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada? e Do que é feito o Universo?), foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em desenvolvimento).

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[1] Para detalhes e discussões, ver Bunge (1987).

[2] Foi Descartes quem formulou o famoso aforismo Penso, logo existo (Cogito ergo sum, no original em latim).

[3] Estou a me referir ao astrônomo e inventor italiano Galileu [di Vincenzo Bonaiuti de’] Galilei (1564-1642).

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REFERÊNCIA CITADA.

Bunge, M. 1987 [1980]. Epistemologia, 2ª ed. SP, TA Queiroz.

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Redação

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