A manipulação da Selic e a atuação de Campos Neto, por Luís Nassif

Ou seja, não é uma jogada do “mercado” como um todo, mas de um grupo que atua sincronizadamente, como um cartel.

É bem vinda a ação popular proposta pelo deputado Boulos, para apurar os interesses por trás da inação do Banco Central, em relação à explosão especulativa da semana passada. Talvez tenha algum efeito didático, para a opinião pública – e especialmente os órgãos de controle – entenderem os impactos não apenas no mercado, mas na economia como um todo. E tem-se, aí, os fundos offshore e os fundos de investimentos de Roberto Campos Neto a serem investigados.

Mas dificilmente se chegará a uma conclusão devido a dois fatores. 

O primeiro, a enorme ignorância-cumplicidade da cobertura financeira da mídia. Os grandes veículos não dispõem de cobertura especializada e, quando dispõem, os repórteres são reféns das fontes. E nem buscam fontes alternativas, como os departamentos técnicos dos órgãos de regulação, que poderiam vazar e explicar manobras de mercado.

Na outra ponta, há uma infinidade de novos veículos financeiros, mas ligados aos principais bancos de investimento do mercado. E há, principalmente, uma férrea ideologia, plantada no fundo do cérebro da opinião pública, contra qualquer forma de regulação econômica.

Um caminho de controle seriam as agências reguladoras. Mas as multas aplicadas pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) ou pelo CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico) são trocados para os infratores. 

No entanto, é enorme o poder das autoridades em influenciar o mercado, com portarias pouco explícitas ou com declarações dúbias, que provocam volatilidade dos ativos. Pequenas variações, resultantes dessas atitudes, representam milhões, às vezes até bilhões, quando multiplicadas pelo número de operações afetadas no mercado.

Antecedentes

Nos tempos das privatizações do governo Fernando Collor, por exemplo, uma jogada para reduzir preços de ativos consistia em utilizar uma taxa de desconto maior, sobre o fluxo esperado de resultados previstos pela empresa. Quanto maior a taxa utilizada no cálculo, menor o valor presente da companhia.

Tenho a vaga lembrança de que minha primeira coluna, quando voltei à Folha nos anos 90, foi sobre essa manipulação, praticada por uma grande empresa de consultoria contratada para a modelação das privatizações. Foi nessa coluna que cunhei a expressão “moeda podre” para denunciar a inclusão de TDA (Títulos da Dívida Agrária) e outros papéis adquiridos na bacia das almas pelos futuros compradores.

No período de privatização das estatais de telefonia, no governo FHC, havia uma dobradinha entre o Ministro das Comunicações e operadores do PSDB que atuavam no mercado. Qualquer declaração bem colocada provocava oscilações no mercado.

No período de Maílson da Nóbrega, no governo Sarney, banqueiros como Salvatore Cacciola se orgulhavam de “acertar” todas as cotações de taxas nos leilões do Banco Central, algo estatisticamente impossível de ocorrer, sem vazamento. No período Lula-Palocci, o Pactual tornou-se campeão absoluto de acertos nos leilões do BC.

Nem se fale do período Bolsonaro-Paulo Guedes, dos negócios de vendas de créditos do BB para o BTG Pactual. Ou da foto de Paulo Guedes em seu gabinete, tendo ao fundo um terminal de operação da Bloomberg.

No caso de Roberto Campos Neto, dá para se intuir sua participação no jogo dos mercados futuros  – mas será difícil comprovar.

Como se deu?

O jogo de opções é simples. 

Um investidor se compromete a “vender” determinado papel por, digamos, 100 em um contrato em que o mercado à vista é apenas um balizador de preços. Outro investidor compra o contrato. No final da operação, se o papel estiver valendo mais, o vendedor paga a diferença para o comprador. Se o papel estiver valendo menos, a diferença é paga pelo comprador.

Ou seja, o ganho dos compradores dependerá da queda no valor do papel. E essa variação do papel está diretamente ligada às expectativas das taxas de juros praticadas pelo Banco Central. 

  • Se as taxas caírem, o valor do papel aumenta – e os vendedores ganham. 
  • Ao contrário, se as taxas aumentarem, o valor do papel cai, e aí o lucro é dos compradores.

Vamos fazer o cálculo por um ano, para facilitar a explicação.

  1. No título pré-fixado, o valor de resgate já é conhecido. Digamos que é 100.
  2. Se a taxa de juros paga for de 10%, o PU (Preço Unitário) do papel será 90,91. Ou seja, o investidor paga 90,91 e recebe 100 no vencimento, tendo direito, portanto, a uma remuneração de 10%. A cada dia que passa, o preço do papel é ajustado pelo novo prazo e pelas taxas de juros do dia.
  3. No mercado futuro, monta-se um contrato, tendo como referência os preços desses títulos. Um vendedor se dispõe a vender um contrato por 90,91. Na outra ponta, o comprador aceita pagar 90,91 pelo contrato. 
  4. Diariamente, é feito o ajuste no PU, para incorporar a taxa de juros diária. Suponha que a taxa anual caia para 9,5%. Nesse caso o PU sobe de 90,91 para 91,32. A ponta vendedora tem que pagar a diferença de 0,42 para a ponta compradora – porque aceitou vender o papel por um valor menor do que o valor de mercado. E vice-versa. Se a taxa subir para 12%, o PU cairá 1,62 e caberá ao comprador pagar a diferença.
Valor de resgate100,00100,00100,00
Taxa de juros10,00%12,00%9,50%
PU90,9189,2991,32
Diferença0-1,620,42
Lucrovendedorcomprador

A jogada de Campos Neto

As manobras que culminaram com a explosão da semana passada tiveram participação direta de Campos Neto.

No início do ano, o BC acenava para a possibilidade de continuidade da queda dos juros. Então, muito incauto saiu comprando opções. Aliás, as redes de consultores espalhados por todo o mercado – e ligadas a grandes bancos de investimento – transformaram os contratos de venda na galinha dos ovos de ouro. Eu vendo a 90,91. Se no vencimento o papel estiver cotado a 89,29, o comprador terá que me pagar a diferença.

Enquanto isto, os grandes operadores passavam a atuar na ponta compradora, aguardando um aumento nas taxas de juros. E definiram o dia do apito de cachorro – ou seja, do desfecho deste jogo. Seria no anúncio das medidas fiscais pelo Ministro da Fazenda.

A grande jogada consistiria em criar expectativas cada vez maiores, impossíveis de serem atendidas pelo pacote fiscal. Quanto maior a decepção com o pacote, maior a expectativa de alta de juros, maior a queda no valor dos contratos e maior o lucro da parte compradora.

Em abril, em evento da XP, Roberto Campos Neto deu as primeiras declarações consideradas “hawkish” pelo mercado – usa-se o termo quando as declarações indicam endurecimento da ação do BC. Dali para diante deu inúmeras declarações sobre a questão fiscal. 

Em 28 de outubro falou da necessidade de um choque fiscal positivo. Repetiu o alerta em 18 de novembro. Um dia antes deu entrevista à CNBC americana repetindo o mesmo alerta. Cada declaração – vindo da mais alta autoridade monetária do país – aumentava as expectativas em relação ao anúncio do pacote fiscal.

Na véspera do anúncio, os grandes players – liderados pelo JP Morgan, deram a ordem de venda maciça de títulos brasileiros. As vendas derrubaram os preços dos títulos no mercado à vista, permitiram enormes lucros nos contratos de swap para quem estava na ponta compradora, enormes prejuízos para a ponta vendedora e para os fundos multimercados.

Ou seja, não é uma jogada do “mercado” como um todo, mas de um grupo que atua sincronizadamente, como um cartel. Na Inglaterra, operação semelhante de manipulação da libor (a Selic britânica) gerou as seguintes consequências:

  1. Multas pesadas: Bancos envolvidos, como Barclays, UBS e Deutsche Bank, pagaram bilhões em multas.
  2. Perdas de confiança: A confiança pública no setor financeiro foi severamente abalada.
  3. Reformas regulatórias: Foram inovadoras mudanças nas metodologias de cálculo da Libor, com planos para sua substituição por taxas mais robustas, como a SONIA .
  4. Prisão de executivos: Alguns banqueiros enfrentam processos criminais.
  5. Impacto global: O escândalo levou a investigações semelhantes em outros mercados financeiros.

No Brasil, tudo terminará em samba..

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5 Comentários

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  1. A mesma imprensa que apoia a manipulação da Selic para garantir a concentração de renda e impedir o governo Lula de implementar uma política industrial tolera (e algumas vezes até mesmo incentiva) a manipulação da PM/SP por grupos bolsonaristas que a transformaram numa milícia extremamente letal. Controlar a manipulação da política pelas Big Techs é algo inconstitucional aos olhos dos editorialistas dessa imprensa que foi paradoxalmente engolida pelas plataformas de internet. Ao que parece a liberdade de imprensa constitucionalmente garantida se tornou a maior e mais terrível inimiga da constituição de 1988. Não seria o caso de começar a rediscutí-la?

    1. Recentemente Nassif planilhou a movimentação do caixa da rede global em comparação com os resultados do negócio. Ali se vê, claramente, tratar-se de um negócio deficitário que sobrevive às custas das taxas de juro e as diversas manipulações acima descritas. É, ao que me parece, só uma das grandes corporações sobreviventes à má administração e, certamente, fonte de jogadas bilionárias às custas das “contenções da gastança” propaladas, na realidade jogo de cena para esconder a verdadeira gastança do BC e seus “amigos”. RC é apenas o último de tantos e – será ? – o mais descarado. Mas com certeza seguirá livre, leve e solto. A casa grande não pune seus bandidos.

  2. Antigamente os ladrões usavam máscaras, luvas e pés de cabra. Escondiam-se em porões e localidades sombrias. Reuniam-se bem longe das vistas do público, e quando conseguiam roubar sempre havia uma autoridade em seu encalço.
    De uns tempos pra cá ( uns duzentos anos, mais ou menos) chamar um grupo de pessoas que se reúne para furtar bens e direitos do próximo de ladrões é risco de prisão ou desaparecimento. Pessoas que se utilizam dessas práticas, são notáveis cidadãos, honoráveis e dignas de menções e reverências. São autoridades respeitáveis e em vez de pés de cabra usam promessas de vantagens e lucros enganosos. Roberto Campos de Concentração de safadezas deixa seu legado e sai mais rico e sorridente, porque rico ri à toa.

  3. 𝙋𝙚𝙨𝙦𝙪𝙞𝙨𝙖 𝙙𝙚 𝙨𝙖𝙩𝙞𝙨𝙛𝙖𝙘̧𝙖̃𝙤 𝙙𝙤 “𝙢𝙚𝙧𝙘𝙖𝙙𝙤”
    Incrível o espaço e as manchetes que a imprensa majoritária, empregada e sustentada pela rica publicidade, dá aos interesses e insatisfações dos operadores do que chamam de mercado, na verdade umas poucas centenas de indivíduos, se tanto, que vivem da exploração financeira da população brasileira, e controlam os meios de fazê-lo.
    Estão tentando, a qualquer custo, sabotar a política econômica do governo,manipulando os juros e o dólar com a finalidade de provocar criminosa e artificialmente um aumento da inflação, ganhando ainda mais dinheiro em suas “aplicações” ( e põe “aplicação” nisso) nas costas da população, durante esse processo, inclusive via dívida pública.
    Se e quando conseguirem seu intento nefasto ao país, com grande anúncio e repercussão, através dessa imprensa subalterna e argentária, tentarão passar por arautos da verdade e do futuro, desgastar ou mesmo desestabilizar o governo federal.
    O que essa gente merece é outra coisa, por exemplo, estatização e/ou forte regulação dos setores financeiro e de comunicação, e em casos de abusos, processos criminais.

  4. Bem, e quem garante que os fundos multimercados não estejam nas duas pontas, como todos os envolvidos com esses tipos de transações..?

    Na crise subprime houve um negócio engraçado.

    Industriais que se diziam vítimas do mercado, quer dizer, quem dizia que era, como o CEO da Sadia e o dono da Votorantim, que tinha um banco, Antônio Ermínio, quebraram porque estavam até o talo comprometidos com as “tranches” (que Margot Robbie ensinou, na banheira,no filme The Big Short, que era m “shit”).

    Agora eu leio esse texto e fico imaginando como uma ação predatória (criminosa) dessas acontece só com uma parte do mercado.

    Ora, mesmo que assim seja, todos concordarem com o “jogo” (uma espécie de BET para rico), então, legitimam-no.

    Mercado financeiro tem que ser proibido de atuar.

    Só deve permanecer o sistema de crédito, que nada tem a ver com essa orgia de algoritmos e fluxos em meios digitais de valores.

    O fim do dólar como padrão de troca universal não é só urgente, dessa medida depende a continuidade da humanidade.

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