Lembranças de Raymundo Colares, por Nadejda Marques

Hoje se atribui a Raymundo Colares o elo entre os neoconcretistas e a arte pop brasileira. E isso não é pouca coisa não.

Lembranças de Raymundo Colares

por Nadejda Marques

Em abril de 1979, minha família foi uma das primeiras a voltar do exílio. Desembarcamos no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Há cinco anos, vivíamos exilados em Cuba, meus pais, meus irmãos e eu. Nossa volta, meses antes da Lei da Anistia assinada em agosto do mesmo ano, só foi possível graças ao incansável trabalho do Comitê Brasileiro pela Anistia, personalizados na figura saudosa de Iramaya Benjamin, fundadora do Comitê, e imensos sacrifícios de nossos familiares. 

Não sei quantas tantas horas passamos presos no aeroporto, mas a espera pareceu-me interminável. O que uma garotinha de sete anos, seu irmãozinho de dois e uma bebê de meses podem fazer presos em um aeroporto enquanto seus pais eram interrogados? Inspecionei as paredes, o teto, o chão… aliás, o aeroporto, para mim, era enorme, as janelas de vidro, gigantes. Lá fora uma multidão e cartazes coloridos acenavam para nós. Dentro, um ar tenso e cinza. Malas e caixas por toda a parte. Policiais aqui e ali. Um zumzumzum sem fim. Alguém me ofereceu um chicletes.

Saímos do aeroporto em caravana. Não sei quantos carros. Eram muitos. Deixamos o Rio e fomos para Montes Claros. Quando chegamos, éramos o assunto da cidade. Assunto murmurado e disfarçado porque todos ainda tinham medo e muito preconceito. Assim que estávamos instalados, Raymundo Colares veio nos visitar. Raymundo era de uma cidade vizinha, Gran Mogol e, naquela ocasião, passava uns dias em Montes Claros. Raymundo não teve medo. Foi no catálogo da sua primeira exposição, Nova objetividade brasileira (1967), que Hélio Oiticica redige o manifesto pós-neoconcreto. Ele e o amigo Oiticica traziam uma nova proposta artística que levava em consideração o momento político que vivíamos: um golpe militar, o AI5, assassinatos, prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, amigos presos, amigos sumindo assim, prá nunca mais…

Raymundo passou uns dias conosco e trouxe uma obra sua como presente. A obra era um Gibi assinado e datado pelo artista: Rio, 1976. Quando criança, pensava que o presente era um livro. Um livro que vai contando uma estória sem palavras ou desenhos mas formas geométricas e cores. Na minha cabeça, inventava estórias para cada página segundo a intensidade das cores. O Gibi começa com o preto e o vermelho. O papel não tem brilho e o preto e vermelho assim lado a lado são sombrios, um pouco tristes. A cada passagem de um recorte revela-se uma nova figura, uma nova emoção. Já na segunda página, o preto e o vermelho são interrompidos por um amarelo intenso, quase laranja. Parece um raio de sol. Um amanhecer. Esse laranja vai crescendo e solta um amarelo seguido de um branco puríssimo bem ao centro. Dois triângulos apontando um para cima e outro para baixo seguidos por retângulos e linhas retas que se justapõem em movimento. Em movimento e em um equilíbrio constantemente interrompido, mas também refeito. Enfim, é um trabalho belíssimo e de conceito muito difícil. Sua visita e seu Gibi me marcaram profundamente, tão profundamente que não me separei mais de sua obra. Se por um acaso não estivesse comigo fisicamente, a tinha comigo mentalmente.

Hoje se atribui a Raymundo Colares o elo entre os neoconcretistas e a arte pop brasileira. E isso não é pouca coisa não. Suas obras já foram expostas nos principais museus brasileiros e do mundo. Estiveram expostas na Bienal de Veneza e no Tate, na Inglaterra. Internacionalmente, está muito cotado, mas e no Brasil? No Brasil que renasce em 2023, lembrar Raymundo Colares é mais que celebrar a arte brasileira, é juntar os pedaços do que já fomos para podermos ser.  

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

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