Cinema e política, por Carolina Maria Ruy

Histórias de romances, catástrofes, terror, comédias, de maneira explícita ou não, trazem uma mensagem, um ideal de sociedade

Cinema e política

por Carolina Maria Ruy

A relação entre política e cinema é longa. Mas não há consenso sobre esta relação pender para a esquerda. Parece óbvio, mas fui provocada a refletir sobre o assunto ao participar[1] de um PodCast, do Canal Claquete, com o tema: O cinema é esquerdista?

Embora a premissa soasse irreal, ela rendeu um debate interessante.

Conclui que a questão colocada, possivelmente, surgiu a partir de impressões baseadas no comportamento histriônico da extrema direita.

Nos últimos anos um pensamento conservador radical cresceu em todo o mundo, impulsionado, em linhas gerais, pela crise de 2008, pela crise migratória na Europa e pela disseminação do negacionismo, das notícias falsas e dos discursos de ódio nas redes sociais. Esse pensamento, que se impôs de maneira agressiva, considera as expressões culturais (salvo obras em linha com as teorias que defende) subversivas e destruidoras de valores que considera “tradicionais”.

É uma postura intolerante, que condena as artes, a intelectualidade e até a ciência. E isso não é novo.

No nazismo alemão dos anos de 1930, o governo de Adolf Hitler repudiava a arte moderna, classificando-a como degenerada.

Nos Estados Unidos, durante o macartismo, na década de 1950, artistas foram perseguidos, censurados e constavam em listas de pessoas consideradas inimigas da nação por terem qualquer relação, real ou fruto de paranoia, com o comunismo[2]. O senador Joseph McCarthy instituiu um clima de medo e terror com base em mentiras sobre a URSS, que repercutiram pelas gerações seguintes. E isso afetou a produção cultural daquela época[3].

São exemplos que mostram a negação da extrema-direita com relação à cultura ao longo da história.

De Serguei Eisenstein a Sylvester Stallone

Mas o cinema pode assumir diferentes discursos e expressões.

O cineasta soviético, Serguei Eisenstein, registrou aspectos da Rússia pré-revolucionária, exaltou a Revolução de 1917 e falou sobre o papel dos operários na sociedade. 

Entre as décadas de 1920 e 1950, Charles Chaplin assumiu um discurso politizado e social ao tratar do povo e dos trabalhadores, como em Tempos Modernos (1936), e ao se opor ao nazismo em O Grande Ditador (1942). Assim como Eisenstein, Chaplin influenciou gerações.

São muitas as obras que denunciam injustiças sociais e valorizam o povo trabalhador. Como: Ladrões de Bicicleta (de Vitorio de Sica, 1948), que denuncia a pobreza na Itália Pós Guerra, A Classe Operária Vai ao Paraíso (de Elio Petri, 1971), que fala sobre a vida do operário fabril, e Norma Rae (de Martin Ritt ,1979), que traz a questão sindical e da mulher operária. Mais recente, o cineasta britânico, Ken Loach aborda esse debate ao tratar da classe operária e suas dificuldades no mundo capitalista.

No Brasil, este tema também é profícuo: vai de Leon Hirszman, com Eles Não Usam Black Tie (1981), que trata da greve dos metalúrgicos de São Paulo de 1979, passando por cito Gaijin, Caminhos da Liberdade, de Tizuka Yamasaki, até produções da Globo Filmes, como Zuzu Angel (de Sérgio Rezende, 2006) e Olga (de Jayme Monjardim, 2004).

A propaganda de valores conservadores também foi e é usada.

Uma referência neste campo é O Nascimento de uma Nação, (de D. W. Griffith, 1915) que, de forma abertamente racista, atribuiu heroísmo à Ku Klux Klan, apoiou a escravidão e o ódio aos negros.

O caráter de imperialismo cultural durante a Guerra Fria ficou evidente em produções como a franquia 007, em especial Moscou contra 007 (de Terence Young, 1963), Rocky, o Lutador (de John G. Avildsen, 1977) e Rambo (de Sylvester Stallone e outros, 1982).

Com os personagens Rocky e Drago representando EUA e URSS, Rocky 4, da série Rocky, o Lutador, é uma amostra contundente de propaganda antissoviética. Enquanto Rocky Balboa é um homem simples e honesto, que vence pelo seu próprio esforço, Drago é frio, implacável, usa equipamentos ostensivos e joga sujo para ganhar.

Importante apontar que o filme fez grande sucesso e mexeu com o imaginário popular. Muitos se identificaram com o personagem principal e, com isso, assimilaram toda a fantasia embutida no enredo.

O mesmo vale para a sequência “Rambo”, que vende uma imagem heroica do militar americano na Guerra do Vietnã e mostra os vietcongues, comunistas, como o exército do mal. Um enredo baseado em mentiras.

Todo filme pode ser analisado

Além apontar roteiros com discursos de diferentes, às vezes contrários, matizes ideológicos, emerge deste debate a definição sobre o limite entre o artístico e o comercial.

A crítica sobre a padronização da indústria cultural deve ser feita. Mas é arriscado determinar se um filme é totalmente arte ou totalmente produto já que se trata de um tipo de produção que resulta de trabalhos técnicos e artísticos como fotografia, música, teatro, literatura, moda, além do trabalho de marketing e das eventuais exigências dos estúdios. Profissionais qualificados e comprometidos com a arte, entram nesta indústria e acabam submetidos a esse esquema. Mas o trabalho deles está ali.

Isso é uma coisa. Esse caráter de síntese.

Outra coisa é a ideia de que qualquer obra cinematográfica pode ser “lida” já que transmite uma mensagem e o contexto de sua criação.

Neste sentido, histórias de romances, catástrofes, terror, comédias, de maneira explícita ou não, trazem uma mensagem, um ideal de sociedade e revelam os costumes de sua época.

O Massacre da Serra Elétrica (de Tobe Hooper, 1974), por exemplo, à primeira vista pode parecer desprezível em uma conversa séria. Mas o jornalista Henrique Artuni, no artigo “Como ‘O Massacre da Serra Elétrica’ sobreviveu à máfia do pornô e ao sol do Texas”[4], conseguiu ver a crise americana com relação à Guerra do Vietnã, através da matança sanguinária.

Artuni foi ainda mais fundo ao relacionar a violência de Leatherface ao desespero gerado pela crise do petróleo de 1973, que colocou fim na Era de Ouro pós-Segunda Guerra Mundial, abalando o capitalismo tão profundamente que o sistema jamais se restabeleceu por completo.

Em 2017, escrevi um prefácio para o livro “Desenhos Animados – Olhar além da Tela”, do pesquisador Cláudio Vieira, no qual ele analisa o histórico e a influência de desenhos animados na mentalidade. Sua pesquisa deixa claro que a produção artística, técnica e comercial é um processo complexo e que não são etapas excludentes.

No meu prefácio, citei o livro “Para o Ler Pato Donald – Comunicação de Massa e Colonialismo”, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart, escrito como um panfleto em 1971. O interessante é que, ao analisar a influência das histórias de Pato Donald sobre as crianças, os autores assumem que há nele uma forte mensagem sobre uma visão de mundo, e não apenas uma sequência animada de atos superficiais e efêmeros. Chamar a atenção para isso e instigar a curiosidade sobre qualquer obra é uma rica contribuição ao debate social.

A conversa sobre cinema vai longe e é fascinante. Ela traz questões, reflexões e memórias fomentando um olhar apurado, curioso e atento aos sinais. Sobre o PodCast do Canal Claquete a conclusão não poderia ser outra: seja de esquerda, de direita, arte ou indústria, o importante é desenvolver interesse e senso crítico para tirar de um filme tudo o que ele pode oferecer.

Carolina Maria Ruy é jornalista, pesquisadora e coordenadora do Centro de Memória Sindical.


[1] Junto com os jornalistas Gustavo Rego (Cine Olho), Pedro Amaro e Marcela Magalhães.

[2] Essa perseguição é mostrada em filmes como Testa de Ferro por acaso (1976), de Martin Ritt e Nosso Amor de Ontem (1973), de Sydney Pollack.

[3] Foi um contexto de ampla perseguição nos EUA, não apenas aos artistas, mas em toda a sociedade.

[4] Publicado na Folha de São Paulo em de 19/02/2023.

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