Dona Joanita e a prática da Lezeira familiar, por Eduardo Pontin

“Queria sê um truvão / Pra de longe’ustremecê  / Pra fazê pena e saudade / Ô linda rosa! / Pra vê meu benzim sofrê”

Dona Joanita sorri ao lembrar da Lezeira de sua juventude | Foto: Francisca Sousa

Série Piauí Cultura Regional (XVI)

Dona Joanita e a prática da Lezeira familiar

Cantadeira aprendeu a brincadeira com os pais e ensina filhos e netos

por Eduardo Pontin

Dona Joanita (Joana Maria da Conceição, 12/1/1961) é cantadeira de Lezeira do Assentamento Pinga, município de Itainópolis (cerca de 400 km de Teresina). No povoado onde reside, ela e sua irmã mais velha, Dona Conceição (Maria da Conceição Neta, 13/7/1945), são as responsáveis por levar adiante a brincadeira da Lezeira para as novas gerações. Com rodas que acontecem espontaneamente, a brincadeira tem permanecido viva por meio da voz de Dona Joanita.

A Lezeira andava esquecida há alguns anos atrás, porém, cada vez mais vem ganhando reconhecimento cultural e hoje pessoas de outras regiões que visitam o Assentamento Pinga logo pedem para que Dona Joanita e Dona Conceição apresentem uma roda de Lezeira. Para isso muito contribui as atividades religiosas que acontecem na capela do assentamento. A Lezeira é uma brincadeira tão ingênua que após as obrigações religiosas, logo o povo do Pinga trata de afastar as cadeiras da igreja para que uma roda se forme a fim de que as pessoas presentes possam se divertir. No mesmo local onde se alimenta a alma com a palavra de Deus, se alegra o espírito com a dança da Lezeira.

Dona Joanita (esq.) na igreja do Assentamento Pinga: palco de rodas de Lezeira

O Assentamento Pinga fica localizado no topo de um morro, a pouco mais de 20 km do centro da cidade de Itainópolis. Para chegar lá, é preciso percorrer uma estrada estreita que beira um penhasco. O Pinga é formado quase por uma família só, por isso, quando se quer brincar a Lezeira, rapidamente uma roda é formada. Esse fato possibilita uma continuidade da prática cultural da Lezeira de modo ancestral. Afinal, a Lezeira passa a ser quase uma brincadeira familiar, passada de geração para geração.

É Dona Joanita mesmo quem comprova esse fato. Quando eu e a jornalista Francisca Sousa estivemos no Pinga em 2021, Dona Joanita embargava facilmente a voz ao entoar cantigas de lezeira. E logo se justificava: “É que a Lezeira faz parte da família da gente que não existe mais”. Porém, o gesto de Dona Joanita e sua irmã Conceição de ensinarem a Lezeira as pessoas mais novas de suas famílias faz com que essa história seja continuada.

O difícil é se esquecer das rodas de Lezeira dos tempos de juventude, quando os pais, irmãos e primos de Joanita brincavam todos juntos, numa harmonia que não existe mais nos dias de hoje. A tristeza da partida de entes queridos é algo que envelhece a alma. Entretanto, quando as netas e os netos chamam Dona Joanita para brincar Lezeira, naquele momento a cantadeira ganha alma nova e seu espírito se renova.

A voz de Dona Joanita aliada a de Dona Conceição é de um entrosamento sonoro raro. As cantadeiras sabem o que fazem, inclusive, entoam cantigas de Lezeira que não se escutam em mais nenhum pedaço de chão do sertão do Piauí:

“Queria sê um truvão / Pra de longe’ustremecê  / Pra fazê pena e saudade / Ô linda rosa! / Pra vê meu benzim sofrê”.

Com Dona Joanita e Dona Conceição, a continuidade da Lezeira como prática familiar está garantida.

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