Água, Fogo e Inércia: Lula e a Distopia Climática, por André Cunha e Alessandro Miebach

Os incêndios de 2024 têm sido particularmente marcantes, tendo em vista a ocorrência da maior seca no país dos últimos setenta anos.

Marcelo Camargo – Agência Brasil

Água, Fogo e Inércia: Lula e a Distopia Climática

por André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach

O Brasil em Chamas

Seca extrema e proliferação de grandes incêndios florestais: o Brasil está em chamas. O Instituto Nacional de Estudos Espaciais (INPE) monitora, por satélite, as queimadas no Brasil. Em 2024, já foram atingidos 224 mil Km2 até o final de agosto, o que equivale a quase o dobro da média histórica (2003-2024) de 137 mil Km2, sempre considerando-se o acumulado dos oito primeiros meses de cada ano. Para o consolidado anual, a média do período 2003-2023 foi de 330 mil Km2/ano. Em termos de ciclos políticos, a média dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2015) foi de 357 mil Km2/ano; nas gestões Michel Temer e Jair Bolsonaro (2016-2022) atingiu 273 mil Km2/ano; e no primeiro ano do atual governo, ficou em 372 mil Km2.

Os incêndios de 2024 têm sido particularmente marcantes, tendo em vista a ocorrência da maior seca no país dos últimos setenta anos. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais convive-se com o pior valor do Índice Padronizado de Precipitação e Evapotranspiração desde 1951 e a maior área atingida pela estiagem: 59% do território nacional. Seus efeitos também se fazem sentir na intensa deterioração da qualidade do ar em regiões atingidas ou não, no país e no exterior.

Sobre as causas da seca, o INPE registra haver a interveniência de aspectos não diretamente controláveis por políticas públicas locais e nacionais, como o aquecimento global, com outros, que resultam de dinâmicas que poderiam ser objeto de ação governamental, como a expansão da fronteira de exploração econômica em diversos biomas.

O Fogo Incontrolável e a Inércia do Poder

O Brasil ainda preserva importante parcela de suas coberturas florestais, primárias (originais) e secundárias (reflorestamento), e de sua biodiversidade, que se constituem em ativos estratégicos. O MapBiomas apurou que as florestas ocupam 58% do território do país. Há importante concentração desse manancial de recursos nas regiões que são mais sensíveis aos fenômenos adversos derivados da elevação das temperaturas médias e o avanço da fronteira econômica.

Em relatório recente, a UNEP (United Nations Environment Programme) indica que os grandes incêndios florestais se originam da “… interação complexa de fatores biológicos, meteorológicos, físicos e sociais que influenciam sua probabilidade, comportamento, duração, extensão e resultado (ou seja, gravidade ou impacto).” (p. 8). Os modelos de simulação utilizados sugerem que algumas regiões serão particularmente mais afetadas pela maior incidência desses eventos, dentre as quais o sul da Amazônia, o Ártico e a Indonésia (p.10). Para a UNEP, os governos, isoladamente, possuem pouco controle direto sobre vários dos fatores que influenciam os grandes incêndios, como o aquecimento global ou as secas prolongadas. Ainda assim, poderiam atuar para mitigar seus efeitos e alterar determinados processos sociais, como a exploração econômica de biomas sensíveis.

No caso do Brasil, as políticas governamentais das últimas décadas, priorizaram a ocupação do hinterland e a expansão da fronteira econômica da agricultura e da mineração, inclusive em regiões como Serrado, Pantanal e Amazônia. Tal vetor de crescimento une os períodos de ditadura e de democracia, bem como os governos de direita e de esquerda. Não foi diferente nos anos 2000, quando a crise climática ganhou maior relevo.

O Desenvolvimentismo Motoserra

No anúncio do Novo PAC, evidenciou-se que a gestão Lula prioriza aspectos estratégicos que também orientaram a ocupação econômica do centro-norte do país desde os governos militares. Os problemas climáticos contemporâneos ou os potenciais positivos da “economia verde” seguem em posições hierarquicamente inferiores na agenda governamental. São priorizadas grandes obras de infraestrutura que, assim como no exemplo da usina hidroelétrica de Belo Monte,  aprofundam os corredores de acesso aos biomas mais sensíveis e expostos, como Pantanal e Amazônia, particularmente: “… a Hidrovia Araguaia-Tocantins e a Ferrogrão, projetadas para o transporte de soja do cerrado brasileiro para portos do Pará e outros estados do Norte, e a pavimentação da BR 319, que liga Rondônia ao Amazonas …”. A exploração de petróleo na Margem Equatorial Norte reafirma o modelo energético responsável pela emergência da crise climática.

As políticas de recuperação e/ou de preservação dos recursos naturais são por demais tímidas. Assim, por exemplo, o “Plano Floresta + Sustentável” tem a meta de plantar 4 milhões de hectares de florestas comerciais até 2030, vale dizer, ou 667 mil hectares/ano. Isso equivale a cerca de 1/3 do desmatamento médio anual do período 2019-2023, conforme relatado pelo RAD 2023 do MapBiomas. Trata-se de um objetivo incompatível com a reversão da trajetória atual de destruição, que está sendo potencializada pelas queimadas recorrentes e mais intensas.

Conforme indicamos em artigo anterior, as políticas creditícias e tributárias mantêm os incentivos existentes ao modelo primário-exportador, intensivo na exploração das novas fronteiras para a mineração e a agropecuária. Há abundância de fontes de fomento que não discriminam adequadamente atividades e/ou regiões onde há maior destruição dos ecossistemas. Já os recursos disponibilizados para instrumentos como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (Lei nº 11.284/2006), o Fundo Clima (Lei 12.114 em 09/12/2009), ou as captações de títulos verdes, nos marcos do Arcabouço Brasileiro para Títulos Soberanos Sustentáveis, seguem insuficientes. Diante da contundência dos incêndios de 2024, o Ministro da Fazenda admitiu ser necessário colocar o tema no orçamento.

Ao ser confrontado com o dilema entre a preservação do equilíbrio fiscal e a necessidade de combater a emergência climática, Fernando Haddad indicou que:  “Se é evento extraordinário que não vai se repetir, você tratar de maneira segregada não me parece que se desvia do foco do arcabouço fiscal … Agora, se você começar a ter ocorrência cotidiana disso, se isso se tornar despesa recorrente, vai ter que ser feita uma adequação do Orçamento federal.”

Trata-se da admissão do óbvio: a questão climática não foi prioritária até aqui e não possui espaço orçamentário adequado.

Um Pacto pelo Futuro ou Mais do Mesmo?

A sociedade civil e os governos, em seus diversos níveis, buscam reagir ao agravamento da crise climática. Lideranças empresariais vieram a público, por meio de manifesto, indicar a necessidade de articulação entre os setores público e privado. Essas lideranças assumem ser necessário “… colaborar com o Executivo na estratégia de combate ao desmatamento ilegal e na recuperação de áreas degradadas. Precisamos contribuir com o Legislativo na criação de leis que disciplinem o licenciamento ambiental e protejam as florestas. Precisamos incentivar um Judiciário atuante na defesa do direito constitucional ao meio ambiente …”. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) defendeu a importância de uma “… resposta imediata, robusta e coordenada entre todos os setores da sociedade e diferentes níveis de governo” por meio de “… ações integradas, envolvendo a prevenção ambiental e o fortalecimento da saúde pública…”.

Os governos locais e federais têm sido incitados a agir com maior intensidade no combate aos incêndios por força da intervenção do STF. Esse liberou o uso de créditos extraordinários para o enfrentamento das queimadas, o que motivou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a articular um “pacote de novas medidas”. Nos últimos dias, além de visitar as regiões mais atingidas, o presidente anunciou o desejo de criar “Plano Nacional de Enfrentamento aos Riscos Climáticos Extremos”. Para tanto “… vamos estabelecer uma Autoridade Climática e um Comitê Técnico-Científico que dê suporte e articule a implementação das ações do Governo Federal junto com o governo estadual e junto com as prefeituras.”.

Com a força incontrolável da “agenda negativa”, o presidente Lula parece querer se mover com maior força na direção de elevar o status político da temática ambiental. Ao fazer isso, no contexto atual, o governo parece reagir mais às pressões externas, do que por convicção de que a prioridade é necessária. Deixou-se escancarada a inércia do poder, tema explorado pelo jornalista Elio Gaspari, que indicou as razões para o adiamento da criação da Autoridade Climática. Para ele: “Contra a criação dessa entidade militaram dois grupos com interesses quase antagônicos. De um lado estavam os que pretendiam defender o meio ambiente, protegendo seus quadrados de poder na burocracia. De outro, estavam os interessados em preservar um estado de coisas que mantinha a defesa do ambiente no mundo do palavrório. Nenhum dos dois queria a Autoridade Climática. Prevaleceram e continuam detestando a ideia.”

Não faltam boas ideias e, possivelmente, intenções ainda melhores por parte de lideranças empresariais e políticas. Todavia, até aqui, os problemas se acumulam de forma mais rápida que as supostas soluções. A equação política não facilita a vida do governo federal. Há importante poder de veto de segmentos da sociedade que “ganham”, pelo menos no curto prazo, com o avanço da fronteira econômica em biomas ainda preservados. O próprio governo federal mira na geração de impostos, empregos e renda com esse prisma imediatista e contribui para manter o status quo. “Agendas positivas” e resultados rápidos são sempre preferíveis aos investimentos no futuro em temas tão complexos como o das mudanças climáticas.

O presidente Lula, com a habilidade que lhe é peculiar, conseguiu introduzir elementos novos e importantes na estrutura do Estado brasileiro para valorizar a questão ambiental, a despeito das pressões em contrário. Agora, trata-se de encarar uma realidade ainda mais desafiadora e que não cabe nos arranjos existentes. Para enfrentar os desafios que se colocam não bastam palavras ou novas estruturas estatais. Será necessário reorganizar as políticas públicas e alocar recursos orçamentários em volumes muito maiores, conforme já sinalizamos em artigos anteriores. As estruturas de incentivos fiscais, creditícios bem como os marcos regulatórios devem sofrer revisões no sentido de induzirem, de maneira efetiva, as atividades econômicas sustentáveis e, também, de punirem atividades incompatíveis com o adequado manejo dos recursos ambientais.

Cabe o questionamento em relação a capacidade da sociedade brasileira em prosseguir procrastinando o enfrentamento da crise climática. As evidências indicam que, ao longo do século XXI, o país enfrentará crescentes desafios ambientais, com impacto severo sobre a atividade econômica e o bem-estar de sua população. Os espaços para as estratégias de acomodação de interesses conflitantes estão sendo reduzidos pela força das águas e do fogo.

André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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